Em torno da poesia de Anchieta
Homero Silveira
Anchieta é uma figura bastante
curiosa para a poesia nacional. Tendo florescido como poeta em pleno Renascimento e filho dileto da Contra-Reforma, nada deve
nem a um nem a outro dos grandes movimentos da História, seja do ponto de vista filosófico ou político, ou simplesmente do ponto
de vista estético, que nos interessa.
Sua formação mental se deve às universidades européias de seu
tempo; no entanto, tendo se desenvolvido na América e em contato não só com a natureza como principalmente com o homem americano
e em estado selvagem, Anchieta acabou revelando-se um estranho poeta. Estranho em mais de um sentido. Dominado pela missão
catequética a que se devotara de corpo e alma no Brasil, sacerdote antes de tudo, seria de se esperar que entregasse às suas
Musas uma poesia inteiramente catequética e sacerdotal, imbuída do barroquismo que foi a pedra de toque da ordem a que
pertencia. Se é verdade que em muitos pontos ele assim procedeu, não menos certo é que, na maioria das vezes, fugiu às
dominantes de seu estado e da estética jesuítica.
Em primeiro lugar, não fez poesia barroca nem apenas catequética.
Em segundo lugar, poetou com certa liberdade de estilo e de gosto, dedicando alguns poemas a saudar os visitadores apostólicos,
a dizer da natureza brasílica e até, com alguma ironia, a falar de certo manto português que um pobre moleiro perdeu (e era um
manto domingueiro): o interessante poema O pelote domingueiro, que alguns críticos advertem talvez não seja original do
padre, mas adaptação feita de alguma composição anterior. São todos pontos a dizer muito mais coisas que era pouco de se esperar
de um poeta jesuíta.
Examinando-se com mais cuidado a produção poética de Anchieta
vê-se bem que, antes de ser um artista preso ao espírito da época, ele esteve sempre mais ligado à Idade Média. Todo o seu
teatro é vicentino. Sua poética está vincada do sabor medieval. Encontramos freqüentemente vilancetes, vilanelas (por vezes
adaptadas ao gosto do poeta, mas com inegável presença dessa forma fixa). A repetição de versos, quase sempre em forma de glosas
a motes preestabelecidos, é obsessiva nele. No mais, as outras formas habituais em Anchieta se prendem à quadra, às quintilhas,
às oitavas, não se achando em sua poesia nenhum ressaibo dos mestres da arte como seria, antes de outros, Petrarca.
A poesia Da Ressurreição é talvez a única em que se possa
descobrir acentos da "arte maior". É possível então suspeitar-se do conhecimento que o poeta possuída do ritmo italiano, mas
nada faz prever que haja perlustrado Petrarca nestas longínquas terras da América. Nenhum soneto existe na obra anchietana.
Ademais, Anchieta é o homem das redondilhas, por excelência. A maior, muitas vezes, embora não descuidasse também da menor. E
isto é facilmente explicável, sendo ele poeta que prezava o povo a quem dirigia de preferência seus poemas. E o verso de sete
sílabas é popular na sua essência.
Pouca coisa informa sua conduta rítmica. Anchieta gostava das
rimas entrecruzadas, mas não desprezava as intercaladas ou mesmo misturava as rimas com certa liberdade. Por vezes mesmo, fugia
um tanto da necessidade de rimar. O que quer dizer que não era homem de se prender muito a determinadas constantes, a não ser a
das glosas de que gostava imensamente.
Sílvio Romero confessava não o apreciar muito pelo fato de, sendo
ele jesuíta, estar preso à disciplina. Mas é que Sílvio Romero não examinou detidamente a poesia anchietana. Veria ele que essa
decantada obediência à ordem, se em Anchieta era um imperativo sacerdotal, não o era muito um imperativo poético.
Aliás, a maioria dos críticos que estudou a poesia anchietana se prendeu
excessivamente a certos aspectos formais de pouca valia para o conhecimento real dessa poesia. Anchieta era mais um
revolucionário do que nem suspeitavam os examinadores da sua poesia. A preocupação de exaltar o taumaturgo desviou a crítica do
exame objetivo do texto. Há no âmago da produção anchietana (que é vasta se pensarmos na imensidão de trabalhos a que o padre
foi obrigado nestas terras bárbaras da América) verdadeiros "achados" que é preciso ressaltar.
Temos hoje material excelente para o exame em profundidade da obra
de Anchieta: é a monumental obra da dra. Maria de Lourdes de Paula Martins, em boa hora publicada pela Comissão do IV Centenário
da cidade de São Paulo - José de Anchieta. S. J. - Poesias, manuscrito do século XVI, em português, castelhano, latim e
tupi, com transcrição, traduções e notas dessa notável pesquisadora. Faz parte do Boletim IV do Museu Paulista -
Documentação Lingüística, 4. São Paulo, 1954.
Agora o que cabe aos críticos é remanejar essa contribuição de
inestimável valor e publicar a edição crítica da mesma. O material é imenso e muito variado. Merece um estudo sério e adequado
ao momento atual da crítica de textos, que de há muito deixou de ser impressionista para se ater a normas da mais absoluta
presença científica. Ver-se-á, depois que esse trabalho for feito, que manancial de surpresas será a poesia anchietana!
Anchieta escrevendo na areia,
óleo de Benedito Calixto
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Sem possibilidades materiais de adentrar essa floresta
maravilhosa, a um simples exame da obra anchietana através da publicação citada da dra. Maria de Lourdes de Paula Martins,
deparamos, logo de saída, com duas das mais interessantes produções do padre jesuíta e que ainda não vimos comentadas, pelo
menos dentro da bibliografia que nos foi permitido consultar até esta data. São dois pequenos poemas em castelhano: No!,
que se encontra à página 442 (Op. cit.) e A Pero Dias, que se lê à página 481 (Op. cit.).
Vamos transcrever o primeiro poema e depois examina-lo-emos com
vagar.
NO!
Quién murió por darnos vida,
muchas veces me llamó,
mas yo díjole de ¡no, no, no, no no!
***
Díjome que no pecase,
pues por me salvar murió,
mas yo díjole de ¡no, no, no, no no!
***
Estar siempre en el pecado,
por vida lo tengo yo,
no puedo dejar ¡no, no, no, no no!
***
A la hora de la muerte,
llamé a Dios, que me llamó,
no me quiso hablar ¡no, no, no, no no!
***
Pregunté a mi conciencia
si podré salvarme yo,
ella dijo que ya ¡no, no, no, no no!
***
Quién pecó tan sin vergüenza,
contra Dios, que lo creó,
que no tenga vida ¡no, no, no, no no!
***
Al que "¡no!"siempre decía
al que siempre le llamó,
que también le diga ¡no, no, no, no no!
À primeira vista, um poeminha sem grande novidade: de fundo
religioso, de edificação espiritual e advertência, alguns tercetos simples (como aliás tudo que saía da pena do santo
sacerdote). Pobreza de rimas: apenas o que rimasse com o tema que é o terrível "no!". E aí repousa toda a arte de Anchieta ao
compor o poeminha em exame.
Outro jesuíta famoso - o Padre Vieira - já comentou com a verve
habitual a palavrinha que serve de tema a Anchieta. Em verdade, o "não!" é uma palavra tremenda! - disse-o admiravelmente Vieira
servindo-se dela em latim, que vista de todos os lados é sempre non. Non de diante para trás e non de trás
para diante é sempre uma negação. E negação da graça divina (como no poema de Anchieta), uma condenação terrível! Pois o
padre-poeta lança mão do artifício simplíssimo da sua repetição para pôr em destaque toda a força punitiva que ela encerra.
O curioso é que sendo a repetição uma das formas preferidas de
Anchieta, só neste poema se valeu dela de maneira diferente (pois que não é a repetição do mesmo verso, mas apenas de uma
palavra), pondo-a em especial relevo. E relevo tanto maior porque servindo de base rítmica de todo o poema. Note-se bem:
vida, pecase, pecado, muerte, conciencia, vergüenza, decía não rimam. Rimam, porém, e todas com no: llamó, murió, yo,
creó. O esquema rítmico sobre o qual se assenta a composição é tirado da palavra título. E note-se ainda como o poeta joga
bem com as vogais: a, e, i, o.
O outro poema é
A PERO DIAS
Si quieres
firmeza y luz,
como
el Padre Pero Dias,
sigue
al Salvador Mesías.
Pero Dias piedra fué,
miembro de la piedra viva
en que el edificio estriva
de toda la santa fe,
que los sentidos cautiva
***
No sea tu alma esquiva
contra la penosa cruz
abrazada de Jesús,
piedra mármol y luz viva,
si quieres firmeza y luz
***
Si fué "Pedro" por ser piedra,
día fué por resplandor,
con tal gracia del Señor,
que con él no tuvo medra
el oscuro tentador.
***
La fuerza y luz del amor
nacen de Iesú Mesías.
Pues amadlo, entrañas mías,
si queréis luz y vigor,
como el Padre Pero Días.
***
Como seguió en su vivir
a Jesús, su buen amigo,
que por el tan fiel testigo,
que por él vino a morir
en manos del enemigo
***
Por amigo tan antiguo,
trabaja noches y dias,
Y si lo quieres contigo,
sigue al Salvador Mesías.
A evidência desta poesia é o jogo com as palavras piedra e
dias, ambas tiradas do nome do padre a quem Anchieta dedica o poema. A princípio, nada parece demonstrar muito
virtuosismo do padre-poeta. O trocadilho era de moda e aqui até sentimos um pouco de barroquismo. Mas é preciso dedicar um pouco
mais de atenção ao poema e se verá que alguma coisa mais ele encerra que o simples trocadilho. E então vamos buscar em Dante um
exemplo curioso sobre o qual Anchieta edificou o seu poema. Não que o canarino se inspirasse do florentino ilustre.
Não se pode afirmar que Anchieta ignorasse Dante. Devia tê-lo
lido, indiscutivelmente. Mas não é o Dante da Commedia que aqui transparece a um exame mais detido. É antes o Dante das
rime petrose, o Dante anterior ao gênio que todo o mundo conhece e admira, o Dante poeta de vanguarda (que ele o foi e
com que força!). Haroldo de Campos, num trabalho magnífico inserto no número especial do Suplemento Literário de O
Estado de São Paulo (22 de maio de 1965, consagrado ao VII Centenário do nascimento do Poeta) - "O Dante das Rimas
Pedrosas" - transcreve e traduz magistralmente "Amor, tu vedi ben che questa donna", poema curiosíssimo e inteiramente ignorado dos pretensos dantólogos que por aí abundam e que por primeira vez
foi vertido para a língua portuguesa.
Ora, é precisamente nesse poema que se nota o jogo que o Poeta fez
com a palavra "pedra", a qual acabou denominando as rimas dantescas. Poema de grandes dificuldades de leitura, compreensão e
tradução, inteiramente ao reverso de tudo quanto se tem divulgado de Dante (fora Beatriz que foge a esta quadra dos amores
sensuais do divino Poeta) dá esta "pedra" como sendo a representação simbólica da Igreja.
Efetivamente, é a Igreja a pedra angular sobre a qual Cristo
edificou a sua doutrina, dando-lhe a chefia a Pedro. A célebre passagem do Evangelho de Mateus, XVI, 18: "Pois eu também te digo
que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela". Se em Dante
persistem as dúvidas de interpretação, o mesmo não se dá com Anchieta, para o qual a "pedra" é a Igreja, indubitavelmente. Ele o
afirma:
Pedro Dias pedra fué,
miembro de la piedra viva,
imagem bastante feliz da permanência da Igreja através dos tempos:
"la piedra viva". E aqui, o jogo de palavras derivado da analogia entre "Pedro" e "piedra" se faz excelente.
Examine-se o que o poeta disse. Pedro Dias era de pedra porque
Pedro Dias era membro da pedra viva. A História nos conta que Pedro Dias chefiava 14 jesuítas vindos de Portugal ao Brasil e
foram mortos em 13 e 14 de setembro de 1571, pelos piratas de Capdevile. Pedro Dias, morto a estocadas, foi atirado ao mar.
(Conforme nota de pé de página no trabalho de Maria de Lourdes de Paula Martins). Portanto, Pedro Dias é um mártir da Igreja,
como tal faz parte da pedra angular sobre a qual se assenta a fé. O que está dito claramente por Anchieta nos 5 primeiros versos
do seu poema.
De onde se conclui que ao poeta, menos que a preocupação fútil do
trocadilho por demais fácil, se prendeu a intenção de uma exaltação de um mártir da fé, ligando-lhe o nome à própria Igreja,
pela qual morreu. Pedro e pedra indissoluvelmente ligados. Tão ligados que o sobrenome "Dias", diminuído nos versos seguintes
para "día", serve-lhe para demonstrar que a luz da fé lhe serviu de "resplandor", como está no poema em exame.
Claro como um "dia", que é "luz", outra palavra posta em evidência pelo poeta.
Mesmo tirando-se estas conclusões do poema anchietano, alguma
coisa ainda fica por ser dita. É que, embora usual na poesia da época, o trocadilho não era feito como o praticou aqui o
canarino, por analogia. E com fundo simbólico inegável. O barroco se perdeu em manejos de frases nem sempre claros nem de bom
gosto. Talvez Anchieta se inspirasse no gosto da época, demos de barato, ao compor seu poema "A Pero Dias", mas, mesmo
assim, excedeu em mestria esse gosto discutível.
E podemos então, sem muita violência, alinhá-lo agora no que de
melhor adotou para si a poesia moderna, que reabilitou Gongora. Se o poema anchietano tem ressaibos gongóricos (o que é
discutível), o que não resta dúvida é que os adotou na melhor forma e tradição. A tal ponto que sem grande esforço podemos
saudar em Anchieta um dos mais antigos precursores não só de nossa poesia como da poesia de nossos dias. |