Partida da esquadra de Estácio de
Sá de Bertioga para o Rio de Janeiro, em 1565
Tela de Benedito Calixto
Poema histórico de Anchieta
Ernesto de Souza Campos
"DE GESTIS MENDI DE SAA"
Súmula e comentários
Algorta é uma pequena aldeia situada
nas proximidades de Bilbao, capital da Biscaia, na Espanha. Lá residia a senhora Feliza Zuazola, descendente da família
Anchieta. Conservava-se ali, carinhosamente guardada, uma relíquia avoenga. Era um manuscrito: o poema heróico De Gestis
Mendi de Saa, de autoria do Padre Joseph de Anchieta, S.J. - o Apóstolo do Brasil. Durante mais de um século, este documento
era considerado como perdido. Como o precioso códice foi ter às mãos daquela senhora, não está perfeitamente esclarecido.
Acredita-se que tenha sido levado para a península ibérica por algum jesuíta, quando ocorreu a extinção da Companhia, por obra
do marquês de Pombal, em terras de Portugal e de suas dependências estatais ou coloniais.
Em 1928, um inaciano - o Padre Florentino Ogara -, ao visitar
aquele solar, surpreendeu-se ao tomar conhecimento do códice. Embora não houvesse assinatura, era sem dúvida, como depois foi
amplamente provado, mediante detida análise, o poema desaparecido e dedicado a Mem de Sá, com a "Epistola Nuncupatoria"
(Dedicatória) dedicada a "Mendo de Saa Praesedi". A descoberta do Padre Florentino foi narrada em duas revistas: a Estrela do
Mar, de 15 de agosto de 1928, e Civiltá Cattolica, de 17 de fevereiro de 1934.
O superior dos Jesuítas do Brasil Central solicitou e obteve cópia
fotográfica do manuscrito. Foi providencial a iniciativa, porque logo depois, em 1938, a casa de Algorta incendiou-se e com ela
reduziu-se a cinzas o precioso documento. Verificou-se mais tarde que este não era o autógrafo original do poeta e sim uma
cópia, pois continha erros incompreensíveis, em se tratando de um humanista da envergadura de Joseph de Anchieta. Foi o Padre
Zabala que, em análise profunda, verificou tratar-se de uma cópia antiga do século XVI ou XVII. A Epístola dedicatória contém 54
dísticos ou 108 versos. O poema contém 2.946 versos hexâmetros ou heróicos sistematizados em três livros. O 1º tem como epígrafe
o título de toda a obra: "De Gestis Mendi de Saa, Praesidis in Brasilia".
Em 1958, o Arquivo Nacional, sob a dedicadíssima e competente
direção de Vilhena de Moraes, publicou, em belo volume, todo o poema em latim, acompanhado de tradução vernácula pelo Padre
Armando Cardoso S.J. e uma "Introdução Histórico Literária" da lavra do tradutor referido; finalizando o volume com
excelentes "Anotações ao Texto".
Litografia Entrada de
Villegaignon no Rio de Janeiro, de Chavane; Museu Histórico Nacional, RJ
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Na "Introdução Histórico Literária", o P. Armando Cardoso
faz estudo e comentários exaustivos sobre o poema, em relação aos mais diversos aspectos, assim classificados: história e
autoria do poema, o manuscrito, o conteúdo da obra, cronologia, fontes e valor histórico, classicismo, originalidade. E termina
dando notícias sobre a edição do Arquivo Nacional que abrange 255 páginas tendo, face a face, o texto latino e a tradução. Os
versos são numerados, na sua parte latina e na portuguesa, como é de hábito em casos semelhantes, somando um total de 3.054,
compreendidos epístola e poema. Este, propriamente dito, abrange 2.946 versos sistematizados em três livros, o primeiro com 701
versos, o segundo com 922 e o terceiro com 1.323.
Preferimos nestes comentários usar a tradução do P. Cardoso, para
maior facilidade dos que nos lerem, pois o inteiro significado do texto latino não é acessível a todos.
A epopéia narra os feitos épicos de Mem de Sá desde o início do
seu governo até a tomada do forte de Coligny, em 16 de março de 1560.
Na Epístola "Nuncupatoria" - oferta de Anchieta a Mem de Sá
-, composta sob a invocação de Jesus, o poeta enaltece a figura do governador do Brasil e acena-lhe com altas recompensas
espirituais (91 a 92 - pg. 51):
Ao peso do teu braço, os altivos Brasis esqueceram
seus ferozes costumes e seus sangrentos ritos.
Para composição do poema propriamente dito, Anchieta utilizou como
fontes notícias de seu direto conhecimento, assim como de informações escritas e orais.
A leitura meditada do poema nos conduz ao conceito assim expresso
pelo P. Cardoso (pg. 2):
"Finalmente o exame do poema nos
mostra no autor um humanista de pulso, que não recua diante de idéia alguma, antiga ou moderna, européia ou americana, simples
narração ou complicada descrição. Para tudo acha, na douta língua do Lácio, a expressão adequada e pinturesca, como se Virgílio
contemplasse novos céus e novas terras, novos costumes e novas civilizações. No Brasil de então, só Anchieta possuía tais
predicados".
Esquadra de Estácio de Sá parte de
Bertioga/SP para o Rio de Janeiro, em 1565
Detalhe de tela de Benedito Calixto
LIVRO PRIMEIRO - A obra está compendiada, como dissemos, em
três livros. O primeiro é especialmente dedicado à glorificação de Fernão de Sá, filho do governador. Fernão chefiou a expedição
contra os índios que hostilizavam a vila do Espírito Santo. Sua empresa foi coroada de êxito. Os indígenas foram batidos, mas o
comandante da tropa lusitana perdeu a vida na batalha de Cricaré.
Anchieta canta epicamente as façanhas desta guerra contra o
gentio, em 701 versos (109 a 809). E sua pena corre desenvolta e precisa, pondo no tema a fulguração do seu gênio, na fidelidade
da narrativa, nos arroubos da descrição paisagística, na graduação do seu sentimentalismo puramente espiritual; no seu amor por
estas terras da América Meridional que o acolheram para que pudesse fecundá-las com o gigantesco esforço do seu trabalho, no
domínio evangelizador e da sua vocação humanística, expressa em várias línguas, inclusive a do gentio brasílico.
Começa neste Livro 1º, expondo a argumentação e invocação; passa
ao cenário, configura a personalidade de Mem de Sá, descreve a capitania do Espírito Santo, menciona preparativos e conselhos,
para a expedição pouco numerosa, assinala a partida de Fernão de Sá, os aprestos dos índios, a arenga do capitão expedicionário,
a batalha de Cricaré, o ataque à primeira fortificação dos índios, ao segundo e terceiro fortes, o recuo de companheiros, a
resistência de Fernão de Sá, a morte do herói, o retorno vitorioso da tropa cristã e as exéquias do seu glorioso chefe. Em tudo
transparece a riqueza do pensamento, a abundância do vocabulário. Sente-se a vibração do poeta por toda a obra. A partida de
Fernão, estreando-se nas lides guerreiras, é figurada em palavras de fino lavor (281-289, pg. 61):
"Dá-lhe (Mem de Sá) quatro dezenas de companheiros bem equipados,
manda
soltar ao vento as velas, e à divina clemência
roga
auspiciar as primeiras estréias do jovem.
De
pronto ergue âncoras a marujada valente
e em
voz cadenciada puxa as amarras que vai recolhendo
em
círculos. Volta proas à vaga a marulhar mar em fora,
desdobra dos altos mastros o cândido linho,
enquanto o vento, bojando as velas, as cordas estira.
O
Norte se abate sobre o mar, o casco impelindo
e
abaulando as velas: voa a lisa proa, cortando
o
pego espumante, roçando apenas o dorso das ondas".
Assinala o poeta a morte do herói, o corpo crivado de setas, em
luta corpo a corpo, quando seus companheiros recuam, em face da violenta investida inimiga. Fernão, rodeado por pequeno grupo
fiel, atira-se contra a horda selvagem e cai ferido de morte (649-651, pg. 77):
"Copioso suor lhe inunda o corpo e por completo
o
abandonam as forças; a sede lhe queima a garganta
e o
pobre exala pelos pulmões a alma ofegante".
Aquela tragédia revigorou o ânimo dos que fugiam em embarcações já
afastadas do campo da luta. E retornam, alcançando finalmente a vitória (777-778, página 81):
"Nem trincheiras, nem selvagens sustêm o assalto dos nossos,
ainda
que os embargue e fira a chuva das flechas."
Encerra-se este primeiro Livro com a narração da dor de Mem de Sá,
ao ter notícia da morte do filho idolatrado (806-809, pg. 83):
"A virtude invencível dominou o sofrimento
ainda
que atroz e consolou o amor dolorido,
porque a morte do filho salvou a vida de muitos.
Tão
digno foi do filho esse pai e do pai esse filho!"
Abençoado por Manuel de Nóbrega,
Anchieta parte com a esquadra de Estácio de Sá,
de Bertioga/SP (ao fundo, o forte de São Tiago) para o Rio de Janeiro, em
1565
Detalhe de tela de Benedito Calixto
LIVRO SEGUNDO - O segundo Livro é especialmente dedicado às
façanhas de Mem de Sá. Começa enaltecendo a personalidade do governador lusitano (815, pg. 83):
"fiquem embora nossos cantos aquém da tua grandeza".
Narra o exemplar castigo imposto ao principal Cururupeba, assim
chamado em língua materna (849 - pág. 85):
"Nome que na nossa significa sapo espalmado".
Posto a ferros o bárbaro de "boca insolente", ficaram os índios
atemorizados, procurando integrar-se em melhores costumes, reduzindo-se em aldeias e guardando as leis impostas pelo governador
(1036-1946, pg. 93):
"Era de ver como logo deixaram as enfumaçadas malocas,
suas
cabanas cobertas de palha e suas roças agrestes.
Acorriam de todas as partes, movidos da fama
e do
muito medo que do governador se espalhara;
todos
se submetiam a si, suas esposas e filhos
sem
ousar opor-se ou confiar em seus braços e armas.
Decidido assim a impor nova ordem, novos costumes,
o
magnânimo chefe manda construir quatro aldeias
de
amplo circuito, nas quais se reuniam todos os índios
das
tabas em derredor e onde aprendiam aos poucos.
de
coração já manso, as leis santas de Cristo".
Os indígenas vão se amoldando (1101-1103, pg. 95):
"Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crime
afastam as mãos os que há pouco no sangue inimigo
tripudiavam, esmagando nos dentes membros humanos".
Posta a região em calma, foram construídas as igrejas de São
Paulo, de Santiago, de S. João, do Espírito Santo. O primeiro templo foi devotado a São Paulo (1200-1206, pg. 99):
"O chefe piedoso os ergueu e quis dedicá-los
a
celestes patronos: a Paulo foi consagrado o primeiro,
àquele que ensinou aos gentios a doutrina de Cristo,
e
pelo nome do Senhor Jesus sofreu dissabores,
muitos e enormes enganos e grandes trabalhos,
duros
naufrágios no mar e mil perigos na terra,
e
dando a cabeça ao ferro alcançou brilhante triunfo".
Entusiasma-se Anchieta com o pródromo da civilização indígena,
comparável a uma primavera das almas (1304-1318, pg. 103):
"Tal qual o inverno se afasta embuçado
em
seu manto de brumas, quando começa na terra
a
soprar com seu murmúrio amigo a brisa mimosa,
e o
sol com seu brando calor a superfície lhe afaga:
então, madre fecunda, ela se abre em tesouros e os campos,
seu
regaço verde, são todos renovação, e beleza,
e a
alegria do rosto se expande em prados virentes.
Então
riem as searas, engalana-se a quadra formosa,
flores voltam a pintar os ramos que em florestas se abraçam,
copas
são tetos de verdura, a ave desafoga em trinados
a
garrulice. Então a vida, farta de seiva, rebenta
em
tenros frutos, em brotos novos, folhudos,
e as
gavinhas, que tímidas saíram da cepa materna,
vão
armando seus anéis: as folhas seivosas se espalham
e em
breve o pâmpano está vergando ao peso dos cachos".
Está aqui traçada a vocação de biologista que acompanhou a alma de
evangelizador de Joseph de Anchieta.
Villegaignon, de armadura, assiste
à missa celebrada por André Thevet no Rio de Janeiro,
que marcou o início da França Antártica em 1555.
Mural de Carlos Oswaldo, acervo do Palácio São Joaquim, no Rio de Janeiro
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Esta planície tranqüila de paz e amor logo se eriçou em arrepios
guerreiros com o levante de Ilhéus. Mem de Sá teve de desembainhar novamente a sua espada para submeter os rebeldes (1360-1363,
pg. 105):
"Eis que de súbito triste notícia alarma a cidade
e
crava nos corações de todos o punhal do desgosto,
e
gemem os homens e gemem inocentes crianças"
Recomeça a luta (1372-1378, pg. 105):
"Mas agora os índios tudo abateram em súbito ataque,
rompendo as doces cadeias da antiga amizade.
Começam a encher-se de altivez e fereza,
a
arrasar os campos ricos de pingues searas,
a
incendiar com fachos cruéis as casas vizinhas,
a
trespassar os próprios homens com setas farpadas
e,
inesperadamente, a prostrá-los mortos por terra".
Travam-se duros combates. Sucedem-se os assaltos até os índios
serem derrotados. E pedem a paz (1681-1688, pg. 117):
"Vão ter com o ilustre chefe e imploram sua aliança
e
direitos de amizade. Leis que impuser, sejam quais forem,
prontificam-se a cumpri-las. Pedem paz e perdão.
Recebe-os com mansidão o chefe valente.
Dá-lhes a paz e mais as leis. Em seguida lhes manda
que
se abstenham das festas sangrentas, onde dantes soíam
cevar-se em carne humana, como feras vorazes".
Conclui-se nestes termos o Livro Segundo.
Mem de Sá, em óleo de Manuel Victor Filho
Imagem: História do Brasil - ed. Folha de São Paulo,
S.Paulo/SP, 1997
LIVRO TERCEIRO - No Livro Terceiro, Anchieta ufana-se
daquela paz que ainda assim foi provisória (1732-1738, pg. 121):
"Já nossa gente fatigada perfez longas viagens
nas
eriçadas planuras do mar, nas densas florestas da terra.
Já
percorreu litorais, dantes jamais palmilhados.
Convidam-nos feitos maiores: sou forçado a seguir os soldados,
lançar-me de novo às ondas revoltas e desbravar os recessos
da
floresta sombria. Guerras de maior vulto me restam
por
contar, mais gloriosas empresas do magnânimo chefe".
Recomeçam entretanto as hostilidades (1747-1754, pg. 121):
"Os triunfos obtidos do feroz inimigo, agora domado,
picaram de júbilo o peito de todos, num alvoroço
de
paz suave. Mas, eis que, acompanhada de justa tristeza,
chega
de repente notícia que desterra a alegria
da
cidade do Salvador. Enquanto ao longo da praia
três
cristãos lançavam insidiosas redes aos peixes
foram
cruelmente presos e arrastados pelo inimigo
que
os trucidou com injusta e bárbara morte".
Mem de Sá exige a imediata entrega dos assassinos. Os índios
hesitam e finalmente recusam. Mem de Sá prepara-se para a punição (1798-1803, pg. 123):
"Apressa-se o chefe para devastar em guerra tremenda
o
soberbo inimigo. Manda arrolar de todas as partes
batalhões de indígenas já submissos ao jugo de Cristo.
Preparam todos eles seus arcos e flechas farpadas
e
estes escudos fabricados com o couro de feras
tão
duros que são impenetráveis às setas ligeiras".
Inflama-se também a mocidade lusa diante do impulso do selvagem
domado, contente de poder entrar novamente nas lides guerreiras tão ao sabor da sua tradição (1815-1817, pg. 123):
"Cintilam as espadas e os chuços de larga ponta de ferro,
os
escudos de couro e de metal luzidio. Irrequieto
o
cavalo morde o freio, aspirando auras de guerra".
E começa a batalha (1833-1838, pg. 125):
"Dispostos todos em ordem, entram já pelas ondas.
Coalhado de naus o mar espuma debaixo dos cascos.
São
naus, são barcas e igaras, nas quais os Brasis
se
atrevem à luta com as vagas encapeladas.
Ao
sopro do Sul macio as velas incharam
e em
breve ferraram as praias da terra inimiga".
São acometidos com sucesso os fortes dos indígenas até o
coroamento do "Magnificat" (1991-1994, pg. 131):
"Logo que o herói cercado de seus batalhões triunfantes,
pisou
terra, ressoaram de toda parte louvores
ao
Deus eterno. É ele que estende as trevas da noite,
qual
negro manto, por toda a vastidão do universo
e
ilumina o mundo com a luz suave da aurora".
O gentio vencido entrega finalmente os assassinos dos tranqüilos
pescadores (2042-2048, pg. 133):
"Eis que pisam a praia e vêm arrastando dois índios
de
braços nus amarrados, de cerviz e fronte caídas,
outrora tão altivos. Suas mãos estão úmidas inda
do
sangue cristão que derramaram há pouco."
Narrado este episódio, o poeta detém-se em longos versos sobre a
tragédia do naufrágio e morte do primeiro Bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha. O Bispo, tripulantes e passageiros
salvaram-se do naufrágio mas foram mortos e devorados pelos índios quando procuravam abrigo na praia. O poeta descreve, com
cores muito vivas, a tempestade que fez soçobrar a nau que conduzia o prelado. É uma bela página de imaginação forte e dramática
(2128-2149, pg. 137):
"De repente trovões começam de ouvir-se rolando
na
amplidão do céu, medonhos relâmpagos chispam
do
embate das nuvens e as alturas se desfazem em raios.
O
vento Sul se atira torcendo em vórtice às ondas
e
sacode em turbilhões horrendos o mar tenebroso,
que
se enfurece ao peso da borrasca, ergue em montanha
as
águas turvadas e as lança raivoso às alturas.
Tudo
é confusão: range ao embate das ondas inchadas
a nau
que os ventos fustigam com as cordas da chuva.
O
piloto já brada do alto da popa: Marujos
recolher velas depressa! soltar as enxárcias...
sopra
o Sul, depressa! ergue-se a grita da gente,
precipitam-se todos a uma a soltar as amarras,
e
sobem velozes aos mastros e recolhem-se as velas
e
abatem as vergas. Tudo ferve em tumulto feroz!
O
terror invade a todos e a todos agita.
Entra
o medo, já tremem de horror e o espectro da morte
se
agarra teimoso aos olhos espavoridos da gente.
Do
alto da popa lança-se então a âncora, para
firmar com o dente férreo a nau: última luz de esperança!
Mas
uma onda em montanha se quebra contra o costado,
arranca das mãos a corda e arroja a nau às alturas".
Conta depois o poema a fuga, a oração e morte do Bispo sob o
tacape de um índio (2267-2268, pg. 141):
"Foi este o fim do grande prelado, quem por primeiro
regeu
as plagas brasílicas, de báculo, mitra e tiara".
Detalhe do quadro Ruínas da
Fortaleza de Villegaignon, estudo/reconstituição de
Victor Meirelles, no acervo do Museu Nacional de Belas-Artes, no Rio de
Janeiro
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Preparava-se, por isso, o governador para fazer guerra aos Caetés
quando chegou do reino a armada com ordens para Mem de Sá ocupar-se de maior empresa no Rio de Janeiro, relativa à tomada pelos
franceses do ilhéu chamado Serigipe e que depois tomou o nome de Villegaignon (2296-2300, pg. 143):
"Estava o Governador valente decidido a vingar-se
dessas mortes cruéis e a domar o feroz inimigo
com
represálias: se maiores combates não o chamassem
a
outro campo. Maiores trabalhos pela honra de Cristo
e
pela conquista da verdadeira glória o esperam".
Chega o governador ao Rio de Janeiro (2351-1353 pg. 145):
"Finalmente junto às desejadas praias as popas deslizam,
e de
noite fundeiam no porto: presa ao cabo traseiro
a
âncora denteada morde o chão e firma os navios".
Uma nau francesa foi logo capturada (2371-2375, pg. 145):
"Uma nau francesa carregada de inimigos e armas
estava surta no interior do porto sinuoso.
Por
ordem do Governador para lá se dirige
pequena galé, que a ataca e rende: salvam-se apenas
a
nado os índios com os franceses acolhendo-se à praia".
Mem de Sá envia embaixadores ao general francês para evitar a luta
sangrenta. Mas Bois-le-Comte não se considerou autorizado a tomar deliberação sem aquiescência ou ordem superior (2420-2423, pg.
147):
"Sem ordem do grande Francisco, a quem coube por dita
o
governo da França, que dirige os destinos da pátria
de
cetro ilustre na mão e coroa na fronte,
jamais abandonarei essas muralhas que erguemos".
Em meio das negociações, Mem de Sá solicita reforços de São
Vicente (2445-2556, pg. 149):
"Enquanto correm estas negociações de uma parte e de outra
o
general português manda pedir à cidade
que
se ufana do nome ilustre do Mártir Vicente,
enviem reforços e tropas índias de auxílio.
Inflamaram-se os corações: preparam ligeiros
naus
velozes e armas e, sem tardar, conforme o pedido,
chegam, e com eles a flor dos guerreiros brasis,
na
mão esquerda o arco e na direita as rápidas flechas.
Armado com o raio inflamado da palavra divina,
vem
também um da Companhia de Cristo Rei, para o soldado
confessar suas faltas e lavar suas almas das manchas,
antes
de entrar em combate, onde talvez deixe a vida".
Em 20/1/1567, tropas
portuguesas lideradas por Mem de Sá, com apoio dos índios Temiminós, venceram os franceses e os tamoios na praia do Flamengo, no
Rio de Janeiro
Tela de Marco Pillar. Imagem: História do Brasil - ed. Folha de
São Paulo, S.Paulo/SP, 1997
O forte a ser tomado parecia inexpugnável. Mem de Sá não hesita
(2474-2478, pg. 149-151):
"O governador prepara-se para o ataque do forte:
reúne
o conselho dos chefes, ainda que saiba
a
relutância de todos. Diziam eles que não era possível
com
armas algumas escalar o forte, cercado
por
rochas enormes, defendido por construções numerosas".
Começou o ataque pela colina das Palmeiras (2574-2582, pg. 155):
"Assim pois os navios, túrgidos de brisa os velames,
vêm
sulcando a planície do mar: em direção do oriente,
já
volvem as naus maiores para, do meio das ondas,
atacar a fortaleza com suas terríveis muralhas.
Canoas velozes, prenhes de soldados e armas fulgentes,
se
arrojam contra o litoral crivado de escolhos
e
atacam a colina das palmeiras, onde os franceses
postaram inumerável guarnição de selvagens,
para
defenderem o posto afastando os esquadrões portugueses".
Seguem-se os combates terminados com a derrota dos homens de
Bois-le-Comte. A descrição do poeta é longa. Inclui aspectos geográficos da ilha, os preparativos guerreiros, a tomada da colina
das Palmeiras, de outras posições estratégicas, momentos de desânimo por falta de pólvora e finalmente a tomada do forte
(2849-02852, pg. 165):
"Erguem-se todos à pressa, com a ânsia de verem
esses
muros desertos e atingem a parte mais alta
do
penhasco, e fincam logo a cruz vencedora
no
cimo do forte e aclamam o nome santo de Cristo".
Termina o poema com um hino a Cristo Rei (2972-2973, pg. 169):
"Tu és o único Senhor verdadeiro, coevo,
do
Pai e do Espírito Santo, eterno laço de amor.
..............................................................."
"A
terra em que sopra o Sul, conhecerá o teu nome
e ao
mundo austral advirão os séculos de ouro,
quando as gentes brasílicas observarem tua doutrina".
E ASSIM ACONTECEU. |