Anchieta na História da Medicina Brasileira
Lycurgo Santos Filho
Um dos mais atraentes capítulos da
história médica brasileira é justamente o que versa sobre a Medicina Jesuítica. Dá-se à Arte hipocrática da segunda metade do
século XVI, no Brasil, o cognome de "Jesuítica", porquanto nesse período os padres e irmãos da Companhia de Jesus foram de fato
os médicos, os enfermeiros e os boticários dos indígenas e ainda dos povoadores, dos colonizadores.
Escassearam os profissionais nos primórdios da colonização. Eram
poucos os cirurgiões e não havia físicos. O ambiente colonial, de precárias condições socio-econômicas, não atraiu os médicos -
ou "físicos". Tocou, então, aos jesuítas uma boa parcela do exercício da Medicina. Eles tomaram o lugar, muitas vezes, dos
profissionais aqui existentes na época, e que foram os cirurgiões-barbeiros, os barbeiros e os boticários.
Os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549. Após os primeiros, outros
vieram e todos logo se entregaram aos trabalhos da catequese do silvícola. Da Bahia partiram para o Sul, para o Norte e para o
interior. Doutrinaram o aborígine e converteram-no à fé cristã. Fundaram casas e colégios de primeiras letras, de artes e de
ofícios manuais. Erigiram igrejas. E, o que importa bem ressaltar, estabeleceram enfermarias e montaram boticas, pois foi
através da assistência médico-farmacêutica que mais se fez sentir, na segunda metade do século XVI, a presença do jesuíta junto
ao indígena e, também, junto ao povoador.
Nos conhecimentos médicos e farmacêuticos recebidos no noviciado,
encontraram os filhos de Santo Inácio um útil instrumento de penetração junto aos silvícolas, um eficaz auxílio para a
catequese. As curas que conseguiram, os remédios que distribuíram, captaram a simpatia, a boa vontade do indígena e serviram
para confundir os temidos e temíveis pajés, ou médico-feiticeiros, nos quais o índio depositava supersticiosa fé.
Mas nem só aos nativos os jesuítas propiciaram cuidados médicos.
Atenderam aos colonos, medicaram os povoadores. Os hospitais das Irmandades de Misericórdia, além de carecidos de recursos, não
bastavam para as necessidades. E então, desde o governador geral aos mais pobres e obscuros habitantes, brancos, mestiços e
negros, todos buscaram o socorro prodigalizado pelos inacianos. As enfermarias e as boticas dos estabelecimentos da Companhia
transformaram-se em hospitais da população e em farmácias dos doentes necessitados.
Instruídos e bem orientados, os jesuítas aplicaram os
conhecimentos que possuíam da arte médica européia e ao mesmo tempo procuraram se inteirar da prática médica indígena.
Observaram com acuidade e experimentaram com perseverança. E o resultado foi a incorporação à farmacopéia mundial de vegetais
medicinais nativos, cujas indicações e cujos efeitos foram apontados pelos inacianos.
Nos primeiros tempos da catequese, quando eram em pequeno número,
todos os padres e irmãos cuidaram dos enfermos. Com o decorrer dos anos, avolumando-se os serviços, em cada colégio, em cada
estabelecimento, houve um irmão-enfermeiro imbuído da arte médica, e um irmão-boticário perito na manipulação de drogas.
Foi de tal ordem, assumiu tal importância a assistência prestada
pelos jesuítas aos doentes, nos diversos setores então conhecidos da Medicina, seja o clínico, seja o cirúrgico, ou o obstétrico
e o farmacêutico, que o exercício da profissão hipocrática na segunda metade do século XVI coube, em boa parte, aos padres da
Companhia. Eles assistiram, examinaram, operaram, sangraram e medicaram. De fato, nesse período predominou realmente a Medicina
Jesuítica.
José de Anchieta, que chegou ao Brasil em 1553, um dos pioneiros,
portanto, foi dos mais dedicados na catequese. Nas cartas que escreveu, dirigidas ao Padre Geral, em Portugal, avulta a
enumeração de serviços de natureza médica. Aliás, sabem todos que tanto as cartas de Anchieta, como as dos demais jesuítas da
época, são um repositório documental de grande valia para o desvendamento da patologia então reinante.
Das informações mais triviais às notícias sobre a catequese e
sobre a salvação das almas, contêm as cartas dados que possibilitam o levantamento do quadro nosográfico do Brasil na primeira
centúria após o descobrimento. E Anchieta foi dos melhores e mais verazes informantes. Revelando-se um autêntico missionário, um
devotado catequista, ele também foi um médico dedicado, um piedoso enfermeiro.
Conquistou a estima de todos, índios e colonos, aos quais procurou
servir sem esmorecimento. Ele mesmo escreveu: "De maneira que os índios me tinham muito crédito,
máxime porque eu lhes ocorria a suas enfermidades, e como alguém enfermava logo me me chamavam, dos quais eu curava a uns com
levantar a espinhela, a outros com sangrias e outras curas, segundo requeria a sua doença, e com o favor de Cristo Nosso Senhor,
achavam-se bem". (Carta ao Geral Diogo Laines, de janeiro de 1565).
A fama de cirurgião competente corria por toda a parte. Narrou ele
em certa carta: "Eu me achei em Piratininga um pouco de tempo... a visitar nossos discípulos, os
quais me desejavam lá muito, porque me têm por bom cirurgião" (Carta de janeiro de 1563 ao Geral
Diogo Laines). Sangrava com perícia e com perícia tratava os variolosos, abrindo-lhes as pústulas. E distribuiu os seus
conhecimentos tanto ao índio como ao branco. Da carta supra-citada é o seguinte trecho: "Os mesmos
portugueses parece que não sabem viver sem nós outros, assim em suas enfermidades próprias, como de seus escravos: em nós outros
têm médicos, boticários e enfermeiros; nossa casa é botica de todos".
Nos escritos de Anchieta há alusão a doenças e há descrição de
sintomas. Há indicação de remédios e processos de curas, citações sobre hábitos de higiene. De todos os padres jesuítas dos
tempos heróicos da catequese, Anchieta foi, realmente, o que mais se projetou no exercício da Arte Hipocrática.
Lopes Rodrigues, em seu grande e bem documentado livro,
Anchieta e a Medicina (Belo Horizonte, Edições Apolo, 1934), provou com abundantes citações o extraordinário papel
desempenhado por Anchieta no setor médico-cirúrgico durante o seu longo apostolado. E não hesitou em chamá-lo de "Galeno
Jesuítico do Brasil". Ao encerrar a Introdução, disse Lopes Rodrigues: "Anchieta, o Galeno
Jesuítico do Brasil, que melhor nome não lhe assenta, ingressa, definitivamente, no rol dos paladinos cristãos da Medicina do
Novo Mundo".
Em minha História da Medicina no Brasil (São Paulo, 2
volumes, Editora Brasiliense Ltda., 1947), no capítulo dedicado à Medicina Jesuítica, salientei o trabalho de Anchieta na
assistência médica ao indígena e ao colono.
Não vem a pêlo e nem caberia aqui a citação de mais trechos das
cartas inacianas, bem conhecidas dos historiadores, em abono do que ficou dito. Mas, nesta poliantéia em homenagem ao santo
jesuíta, bem que se pode apontá-lo como a melhor e maior figura de médico do século XVI, no Brasil. Pois outra não há.
A partir do século XVII, onde sobressai o holandês Willem Piso,
que foi médico do conde de Nassau e publicou a monumental Da Medicina brasiliensi, cada centúria possui figuras marcantes
que entraram para a história médica brasileira. O século XVI, no entanto, está vazio de nomes de profissionais. Na falta,
inscreva-se, então, o de Anchieta.
Poder-se-ia objetar que ele não foi médico diplomado. Poder-se-ia
dizer que não passou de um curador. Sucede, porém, que nesse tempo, no Brasil, não havia físicos diplomados, licenciados, com
exceção de um ou dois. E os cirurgiões-barbeiros que exerceram a Medicina não passaram, igualmente, de curadores. E nem um só
deles deixou memória de seus feitos, como Anchieta. A este, portanto, o lugar de honra que lhe cabe nos fastos da história
médica brasileira do século XVI.
Anchieta, em detalhe de tela
de Oscar Pereira da Silva
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed.
Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I
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