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DIA DE ANCHIETA
Anchieta médico (1)

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Anchieta na História da Medicina Brasileira

Lycurgo Santos Filho

Um dos mais atraentes capítulos da história médica brasileira é justamente o que versa sobre a Medicina Jesuítica. Dá-se à Arte hipocrática da segunda metade do século XVI, no Brasil, o cognome de "Jesuítica", porquanto nesse período os padres e irmãos da Companhia de Jesus foram de fato os médicos, os enfermeiros e os boticários dos indígenas e ainda dos povoadores, dos colonizadores.

Escassearam os profissionais nos primórdios da colonização. Eram poucos os cirurgiões e não havia físicos. O ambiente colonial, de precárias condições socio-econômicas, não atraiu os médicos - ou "físicos". Tocou, então, aos jesuítas uma boa parcela do exercício da Medicina. Eles tomaram o lugar, muitas vezes, dos profissionais aqui existentes na época, e que foram os cirurgiões-barbeiros, os barbeiros e os boticários.

Os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549. Após os primeiros, outros vieram e todos logo se entregaram aos trabalhos da catequese do silvícola. Da Bahia partiram para o Sul, para o Norte e para o interior. Doutrinaram o aborígine e converteram-no à fé cristã. Fundaram casas e colégios de primeiras letras, de artes e de ofícios manuais. Erigiram igrejas. E, o que importa bem ressaltar, estabeleceram enfermarias e montaram boticas, pois foi através da assistência médico-farmacêutica que mais se fez sentir, na segunda metade do século XVI, a presença do jesuíta junto ao indígena e, também, junto ao povoador.

Nos conhecimentos médicos e farmacêuticos recebidos no noviciado, encontraram os filhos de Santo Inácio um útil instrumento de penetração junto aos silvícolas, um eficaz auxílio para a catequese. As curas que conseguiram, os remédios que distribuíram, captaram a simpatia, a boa vontade do indígena e serviram para confundir os temidos e temíveis pajés, ou médico-feiticeiros, nos quais o índio depositava supersticiosa fé.

Mas nem só aos nativos os jesuítas propiciaram cuidados médicos. Atenderam aos colonos, medicaram os povoadores. Os hospitais das Irmandades de Misericórdia, além de carecidos de recursos, não bastavam para as necessidades. E então, desde o governador geral aos mais pobres e obscuros habitantes, brancos, mestiços e negros, todos buscaram o socorro prodigalizado pelos inacianos. As enfermarias e as boticas dos estabelecimentos da Companhia transformaram-se em hospitais da população e em farmácias dos doentes necessitados.

Instruídos e bem orientados, os jesuítas aplicaram os conhecimentos que possuíam da arte médica européia e ao mesmo tempo procuraram se inteirar da prática médica indígena. Observaram com acuidade e experimentaram com perseverança. E o resultado foi a incorporação à farmacopéia mundial de vegetais medicinais nativos, cujas indicações e cujos efeitos foram apontados pelos inacianos.

Nos primeiros tempos da catequese, quando eram em pequeno número, todos os padres e irmãos cuidaram dos enfermos. Com o decorrer dos anos, avolumando-se os serviços, em cada colégio, em cada estabelecimento, houve um irmão-enfermeiro imbuído da arte médica, e um irmão-boticário perito na manipulação de drogas.

Foi de tal ordem, assumiu tal importância a assistência prestada pelos jesuítas aos doentes, nos diversos setores então conhecidos da Medicina, seja o clínico, seja o cirúrgico, ou o obstétrico e o farmacêutico, que o exercício da profissão hipocrática na segunda metade do século XVI coube, em boa parte, aos padres da Companhia. Eles assistiram, examinaram, operaram, sangraram e medicaram. De fato, nesse período predominou realmente a Medicina Jesuítica.

José de Anchieta, que chegou ao Brasil em 1553, um dos pioneiros, portanto, foi dos mais dedicados na catequese. Nas cartas que escreveu, dirigidas ao Padre Geral, em Portugal, avulta a enumeração de serviços de natureza médica. Aliás, sabem todos que tanto as cartas de Anchieta, como as dos demais jesuítas da época, são um repositório documental de grande valia para o desvendamento da patologia então reinante.

Das informações mais triviais às notícias sobre a catequese e sobre a salvação das almas, contêm as cartas dados que possibilitam o levantamento do quadro nosográfico do Brasil na primeira centúria após o descobrimento. E Anchieta foi dos melhores e mais verazes informantes. Revelando-se um autêntico missionário, um devotado catequista, ele também foi um médico dedicado, um piedoso enfermeiro.

Conquistou a estima de todos, índios e colonos, aos quais procurou servir sem esmorecimento. Ele mesmo escreveu: "De maneira que os índios me tinham muito crédito, máxime porque eu lhes ocorria a suas enfermidades, e como alguém enfermava logo me me chamavam, dos quais eu curava a uns com levantar a espinhela, a outros com sangrias e outras curas, segundo requeria a sua doença, e com o favor de Cristo Nosso Senhor, achavam-se bem". (Carta ao Geral Diogo Laines, de janeiro de 1565).

A fama de cirurgião competente corria por toda a parte. Narrou ele em certa carta: "Eu me achei em Piratininga um pouco de tempo... a visitar nossos discípulos, os quais me desejavam lá muito, porque me têm por bom cirurgião" (Carta de janeiro de 1563 ao Geral Diogo Laines). Sangrava com perícia e com perícia tratava os variolosos, abrindo-lhes as pústulas. E distribuiu os seus conhecimentos tanto ao índio como ao branco. Da carta supra-citada é o seguinte trecho: "Os mesmos portugueses parece que não sabem viver sem nós outros, assim em suas enfermidades próprias, como de seus escravos: em nós outros têm médicos, boticários e enfermeiros; nossa casa é botica de todos".

Nos escritos de Anchieta há alusão a doenças e há descrição de sintomas. Há indicação de remédios e processos de curas, citações sobre hábitos de higiene. De todos os padres jesuítas dos tempos heróicos da catequese, Anchieta foi, realmente, o que mais se projetou no exercício da Arte Hipocrática.

Lopes Rodrigues, em seu grande e bem documentado livro, Anchieta e a Medicina (Belo Horizonte, Edições Apolo, 1934), provou com abundantes citações o extraordinário papel desempenhado por Anchieta no setor médico-cirúrgico durante o seu longo apostolado. E não hesitou em chamá-lo de "Galeno Jesuítico do Brasil". Ao encerrar a Introdução, disse Lopes Rodrigues: "Anchieta, o Galeno Jesuítico do Brasil, que melhor nome não lhe assenta, ingressa, definitivamente, no rol dos paladinos cristãos da Medicina do Novo Mundo".

Em minha História da Medicina no Brasil (São Paulo, 2 volumes, Editora Brasiliense Ltda., 1947), no capítulo dedicado à Medicina Jesuítica, salientei o trabalho de Anchieta na assistência médica ao indígena e ao colono.

Não vem a pêlo e nem caberia aqui a citação de mais trechos das cartas inacianas, bem conhecidas dos historiadores, em abono do que ficou dito. Mas, nesta poliantéia em homenagem ao santo jesuíta, bem que se pode apontá-lo como a melhor e maior figura de médico do século XVI, no Brasil. Pois outra não há.

A partir do século XVII, onde sobressai o holandês Willem Piso, que foi médico do conde de Nassau e publicou a monumental Da Medicina brasiliensi, cada centúria possui figuras marcantes que entraram para a história médica brasileira. O século XVI, no entanto, está vazio de nomes de profissionais. Na falta, inscreva-se, então, o de Anchieta.

Poder-se-ia objetar que ele não foi médico diplomado. Poder-se-ia dizer que não passou de um curador. Sucede, porém, que nesse tempo, no Brasil, não havia físicos diplomados, licenciados, com exceção de um ou dois. E os cirurgiões-barbeiros que exerceram a Medicina não passaram, igualmente, de curadores. E nem um só deles deixou memória de seus feitos, como Anchieta. A este, portanto, o lugar de honra que lhe cabe nos fastos da história médica brasileira do século XVI.

Anchieta, em detalhe de tela de Oscar Pereira da Silva
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

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