CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - J. LUSO
João Luso (3)
Nascido em Lousã, em Portugal, em 12 de junho de 1875, Armando
Erse de Figueiredo atuou como jornalista e escritor em Santos e na capital paulista usando, entre outros, o pseudônimo literário de João Luso. Faleceu no Rio de Janeiro em 6 de janeiro de 1950, deixando grande número de obras publicadas. Estes textos foram republicados em 2010 no site português A Lousã e os textos de João Luso (mantida a ortografia original - acesso: 6/6/2014):
Imagem: captura de tela do site A Lousã nos textos de João Luso (acesso: 6/6/2014)
Dominicais
Dum folhetim do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, transcrevemos uma bela descrição sobre a adesão da Lousã à
República, devida à pena do ilustre escritor e nosso conterrâneo sr. Armando Erse, (João Luso).
É um documento, debaixo do ponto de vista literário e da sensata apreciação do povo das cidades, que muito honra a nossa folha, mas sobre o ponto de vista dos apedrejadores, permita-nos que lhe diga que o seu informador teve em vista, e com
algum critério, favorecê-los.
Ainda os excursionistas estavam em Miranda, e já na Lousã passavam os conhecidos marotos que em 1901 fizeram das suas, em direcção à estação com propósitos provocadores.
Começada a desordem, todos primaram em ver qual era o mais valente, mas a recepção foi má. Esta é que é a verdade.
A Lousã aderiu porque não podia deixar de aderir; tanto que foi das últimas terras do país que aderiu.
A má vontade com que acatou as ordens do novo regime provou-o nitidamente a afirmação do chefe franquista nos Paços do Concelho no dia do seu reconhecimento aqui: — Está proclamada a República em todo o país, mas não é aos republicanos da Lousã
que ela se deve.
Não nos deu novidade nenhuma.
Quem fez a República foram os desmandos e fraudes da monarquia.
Não reagiram contra ela porque viram a impossibilidade de o fazer e que isso lhe traria incompatibilidades com chorudos empregos em que a República os continua a sustentar (diga-se, tudo: pela honestidade com que os desempenham.
A nossa obra é outra. No tempo do velho e aladroado regime perseguiam-se os republicanos com manifesto prejuízo dos rendimentos municipais e paroquiais. Depois da República, ainda ninguém tentou incomodá-los em nada.
Ora aí tem sr. Erse, porque eles aderiram à República...
"A Lousã aderiu. Não foi sem grande contentamento que o verifiquei, porque enormes tinham sido, até entrar as portas desta vila histórica, a minha incerteza e a minha inquietação.
A Lousã — dissera há pouco mais de seis meses, um telegrama do Jornal — tinha dado prova veemente do seu arreigado e inquebrantável apego às velhas instituições, apedrejando um grupo de republicanos vindos de Coimbra, para aqui realizar um
comício de propaganda. Depois de uma tal Fogueira, povoação perdida no mapa de Portugal e até então ignorada do resto do Universo, fora justamente a Lousã a única a repelir esses porta-vozes da campanha democrática... O que não deixara, perante
o telegrama categórico, de me produzir certa surpresa e espanto.
Tratava‑se, com efeito, de uma pequena população pacífica, tradicionalmente ordeira e sem nenhuma queda para os excessos e desregramentos das lutas políticas. Posto de parte o
funcionalismo, discreto e reservado por dever de classe, o resto da gente são pequenos negociantes e os pequenos lavradores entre os quais se divide maternalmente esta terra amorável.
No meu tempo poder-se-ia até dizer que não havia política nem, em geral, noção do que isso viesse a ser. Desde eras imemoráveis se tinham os lousanenses acostumado a ver, na Administração do Concelho, ora uma ora outra das duas personagens,
representantes e depositárias do poder local. La de vez em quando, mudava administrador: era quando, em Lisboa, tinha caído um Ministério e outro galgado ao poder, pela lei que rege o movimento dos alcatruzes das noras, qual de baixo qual de
cima, e a que se dera, na capital, a acertada denominação de Rotativismo.
A Lousã possuía, pois, como tantas outras sedes do Concelho, o seu rotativismo local, invariável, impecavelmente organizado. Isto lhe evitava o esforço mental de considerar, à distância a gigajoga em que meteoricamente se revezavam, nas
supremas funções políticas, Progressistas e Regeneradores. Para as suas necessidades domésticas, podia dispensar o discernimento das suas grandes facções centrais; e podia até ignorar que houvesse, em Portugal, Regeneradores e Progressistas,
uns a subir outros a descer, como os alcatruzes das noras. Perfeitamente lhe bastava saber que o Administrador do Concelho era o senhor doutor Fulano, ou então, não podia deixar de ser o senhor doutor Sicrano...
De resto, os senhores doutores Fulano e Sicrano tinha tomado axiomática, no suceder das gerações, a sua reciproca estima e rigorosa uniformidade de vista, quanto aos deveres e poderes do mandato.
Em certas épocas, sucedeu mesmo pertenceram os dois Administradores à mesma família, vivendo sob o mesmo tecto ou usando o mesmo sobrenome genealógico; quando, porém, esse lado não
existisse, outro não menos íntimo, se vinha necessariamente a dar entre eles — e era o solo a que ambos abancavam no Clube, tranquilo e baratinho, de jogadores cujo vício sobretudo consistia em entreter as horas destes longos serões de
aldeia...
Na Lousã, nem havia eleições. Eleições no sentido de pugna política, de choque expressivo de dois partidos opostos, não. O que havia, era uma espécie de festas sem santo e sem devoção, de romaria profana à urna, promovida, ora por um, ora por
outro mordomo. A diferença entre estes, consistia apenas no elemento capital do pitéu destinado ao efeito indispensável de alegrar semelhante, cerimónia.
O senhor Doutor Fulano mandava fazer um imenso caldeirão de bacalhau; o senhor doutor Sicrano um imenso caldeirão de carneiro; ambos, porém, com batatas. As batatas eram as mesmas, e
o vinho também. O povo enfiava pela frincha da urna os papelinhos que lhe eram indistintamente distribuídos; e depois, ia atirar-se com danado apetite, ao regabofe.
E assim os lousanenses concorriam com as outras populações do "Círculo"para se fazer Deputado às Cortes de Lisboa um homem que eles, por via da regra, não conheciam e nunca faziam questão de conhecer.
Por isso mesmo, a unanimidade dos sufrágios, resultava infalível. Não porque a oposição abstivesse, mas, simplesmente, porque não havia oposição. A oposição, neste caso, votaria, toda ela, com o actual Administrador. E se o próprio
Administrador chamava a isto uma eleição, era porque, em suma, não lhe assistia oficialmente a faculdade de procurar designação mais sincera e verdadeira...
Assim vivia a Lousã, tão alheia às guerras políticas e tão recolhida à doce ignorância de todas as políticas, que nem o surpreendente e desastrado advento do Governo de João Franco e o golpe de morte por este infligido ao rotativismo, ao
próprio monarquismo, se reflectiriam aqui, pelos modos, em maior agitação ou alteração dos sistemas estabelecidos.
Apareceu um terceiro Administrador — com certeza parceiro ainda da mesma mesa de solo — e tudo continuava no antigo sossego imperturbável. Quando pelo país inteiro, parecia lavrar um tumulto profenético e pavoroso, uma espécie de terror
convulso ante o estranho espectáculo dum chefe de Governo, alucinadamente entregue ao ataque e demolição das instituições que se apresentara a defender — a Lousa, essa, não dava sinal de si. Cuidava das suas sementeiras e dos seus rebanhos; a
terra não deixara de dar fartamente o grão doirado, nem as serras de abrir no seu seio, os frescos vales onde as ovelhas engordavam. A Lousã amanhava as leiras, ordenhava o gado e contemplava tudo isso, com o enlevo de um bem compreendido
bucolismo. Politicamente, era isto aqui o seio de Abraão, ou, ainda melhor, o próprio paraíso terrestre, antes do episódio da maçã e da maldita questão que levantou contra Abel o braço oposicionista do seu irmão Caim... Era, em suma, uma terra
onde não havia política!
Como, pois, se compreendia aquele inverossímil, fantástico telegrama, segundo o qual a Lousã tanto se exaltara à ideia de um "meeting"republicano dentro dos seus muros e tão desmedidamente se enfurecera, a ponto de correr à pedra os tribunos
que nele deviam figurar?
Os termos do telegrama apresentavam-se demasiadamente singelos e seria a sua procedência, para se admitir um, equívoco ou um gracejo, muito menos uma mentira capciosa e politiqueira.
Não; o telegrama não podia deixar de ser, apesar de todas as sua aparências, essencialmente, rigorosamente verídico.
E eis a grande dúvida, eis a grande questão. Porque, então, forçoso fora reconhecer que a pobre vila sofrera a mais lamentável transformação nos seus costumes políticos, na sua
orientação política até agora tão escrupulosamente mantida pela ausência completa de uma outra coisa — e que este povo, cândido e resignado ao ponto de votar sem saber em quem, se tornara um povo assomado e truculento, capaz de linchar,
exterminar, comer vivos os mandatários de um partido...
Não tive remédio senão aceitar, diante de outros telegramas confirmativos, esta hipótese desastrada, aflitiva, desesperadora, mas única que as circunstâncias impunham satisfatoriamente. Com ela ainda encasquetada na cabeça, roendo-me
positivamente os miolos, parti do Brasil sem deixar de pensar um momento no que seria chegar à Lousã e dar com o espetáculo de tal metamorfose... E eis que a meio da viagem, me sobrevem a notícia da proclamação da República em Portugal!
Chego a Lisboa e vejo que todo o resto do país aderiu ao novo regime e só da Lousã, por mais que as procure, não há notícias. Telegrafo ansiosamente: — Vocês aderiram? — Respondem-me de lá: — Que pergunta! — O que positivamente não me
esclarecia, não chegava mesmo a ser uma resposta e, entretanto, me colocava dada a gravidade excepcional do assunto, na impossibilidade de insistir...
E o inferno das minhas preocupações continua em vivo fogo, crepitante e consumidor! Evidentemente, a Lousã, que fora a única a expulsar indignamente dos seus muros a propaganda
republicana, devia agora insurgir-se e bater-se contra o novo estado de coisas, até à última gota do seu sangue monárquico e último sopro do seu alento fidelíssimo.
Assim, todas as localidades portuguesas se apressavam em comunicar para Lisboa a sua espontânea e jubilosa submissão, e só ela, por um silêncio obstinado e intransigente hasteava a bandeira azul e branca da reacção... Ia revoltar-se, a Lousã;
ia abandonar os arados e sacholas da sua habitual existência campestre, pelas armas belicosas cujo manejo nunca praticara; e, pelas suas estradas pacíficas mal trilhadas por outro veículo além do carro de bois que levam o pão das tapadas para
os celeiros, iam rodar as carretas de guerra, furiosas e destruidoras... Era de morrer!
Só alguns dias depois, (dias terríveis, intermináveis dias) o pesadelo monstruoso se dissipou, para alívio de uma alma exausta, que já não podia mais. Então, raiou a aurora e tudo foi alegria e festa! O comboio que me trouxe de Coimbra saudou a
vila, toda a sorrir e toda branca ao sol glorioso do verão de São Martinho, com um destes silvos prolongados e agudos que marcam o fim de uma jornada, como se celebrassem a conquista de um mundo.
Quando salto na estação, chovem-me abraços em cima; e, logo aqueles que me esperam, troçando das minhas perguntas, narram em duas palavras o mesquinho episódio tão exagerado, como
todos os episódios da política portuguesa, nos telegramas para o Brasil.
Foi apenas isto: Os republicanos vinham e, com esses, tudo correria às mil maravilhas. Simplesmente, no mesmo trem tinham embarcado uns excursionistas domingueiros de Coimbra, gente
folgazã e falta de espírito, gente da cidade incorrigivelmente propensa a fazer pouco das aldeias por onde passa...
estes ilustres viajantes, partiram as provocações de galhofa e chasco que alguns lousanenses repeliram, com a boa arma dos pastores, a pedra, arma por eles manejada, desde David, com
maravilhosa pontaria e eficácia... E nada mais. Assim os lousanenses tiveram razão; e tê-la-ão sempre que manifestam o amor e o orgulho da sua terra, porque ela é sem dúvida, a mais bela de Portugal, e do mundo.
Uma dúvida então me resta e é sobre o motivo porque a Lousã não manifestou a sua adesão à vitória da República... Mas simplesmente porque não deu por ela. Tudo se passou como nos bons tempos e Administração do Concelho continuou a pertencer à
mesma mesa de solo. Apenas os parceiros, ante os melindrosos acontecimentos dos últimos tempos, tinham prudentemente resolvido jogar, salvo seja, de quatro, de quatro.
Foi o garrancho que salvou a situação. E a Lousã não chegou a desviar os olhos das suas granjas e courelas e dos seus soutos, onde agora, os castanheiros abrem todos os ouriços, para
deixar cair na relva que as geadas ainda não crestaram, as castanhas escuras e luzidias, última dúvida e último adeus do Outono magnífico!
Imagem publicada no site A Lousã nos textos de João Luso (acesso: 6/6/2014) |
Manuel Maria
Foi o ano passado, na terra, que ouvi contar este caso, passado com uns vizinhos nossos. Era noite de Natal. Esperávamos a hora da Missa na sala íntima,
perto da cozinha, onde se não recebem visitas mas faz menos frio que no resto da casa.
Conversávamos, as senhoras com os pés enfiados em seirões felpudos, sobre botijas de água quente, os homens com capotes pelos ombros; ouvia-se o crepitar festivo da lareira; e toda a gente gozava
com delícias aquele conforto, enquanto lá fora, o vento norte, - de que, de vez em quando alguém nos trazia notícias - assobiava. Agudo e retalhante...
Nisto, começou a minha tia Adelaide a falar do que acontecera, há muitos anos, a um certo Manuel e a sua mulher, Maria... Sem a velhinha certamente dar por isso, a narrativa tomou logo a feição e o
tom das histórias de serão, repetidas pelas avózinhas que já não podem fiar o linho nem fazer meia, para entreter os netos que não querem nunca ir tão cedo para a cama...
Era a mim que a linda octogenária especialmente se dirigia; as suas palavras, envolvendo-se de carinho, readquiriram a ternura do tempo em que ela ajudava minha Mãe a criar-me; e eu sentia
comover-se, dentro do meu coração, um coração de criança...
Pudesse eu reproduzir aquela linguagem e fazer-vos experimentar, um momento que fosse, aquela emoção!
A casa estava às escuras. O Manuel descera ao sótão, a buscar lenha para o lume, e a mulher, sentada como se deixara ficar no degrau da lareira, chamava por ele, ralada da demora:
— Avias-te ou não te avias?
- Lá vai, que pressa!
Subia já a escada, com um braçado de cavacas, das mais enxutas, e trazendo pendurada na outra mão a candeia de três bicos, cuja luz subia, cor de ouro velho e doce como o azeite que a alimentava.
- Nem que fossemos tirar alguém da forca, rapariga! Ora não te doa a cabeça enquanto tivermos que esperar pela Missa do Galo. Pega lá a candeia.
Depôs a lenha a um canto, separou as achas, as mais delgadas ali à mão e as outras para depois. Com uma mão cheia de agulhas secas de pinheiro, preparou o fogo; ajoelhou; longamente, com as bochechas inchadas, soprou; e por trás do seu vulto
acocorado em breve a fogueira rompia, garbosa e estralejante, arremessando ao ar as labaredas que faziam dançar pelas paredes, estranhamente aumentada, a sombra dos petrechos caseiros.
- Ora, aí tens, vês? Traz para cá isso.
Era o alguidar vidrado, onde a massa leve de abóbora menina já certamente apurara. Atiraram então ao fogo uma larga trempe de ferro, assentaram-lhe em cima, bem firme, a sertã maior, com dois dedos de azeite do novo, do acabado de colher.
Gravemente, a Maria foi lavar as mãos, enxaguou até os fortes braços tão afeitos a bater a roupa como a brandir a enxada....
Armou-se depois de uma colher de pau, só usada naquele cerimonial; e enterrando-a sobre a sertã, deixava cair do alto os bolos informes que logo à flor do azeite cresciam, empolavam e se
arredondavam, e se afofavam, dando essas prodigiosas filhós de Natal que até os anjos - afirmava a Maria, vaidosa de possuir, como poucas, o segredo de tal manjar - até aos anjos fariam água na boca!
Do outro lado, o Manuel, com um garfo, caçava-as alegremente. Mas era um desajeitado, enganava-se, fisgava duas de uma vez - e isto com grande aflição da mulher que a cada momento lhe sustinha o bote desastroso, o ameaçava com a colher.
- Essa não, a outra, tira para fora que se não esturra! Ai, que és mesmo os meus pecados!
Quanto mais ele falava, mais ele ria, ria. Para a amofinar, fazia menção de levar o garfo à boca quando tirava alguma das mais tentadoras, Capaz era ele, o mafarrico, de quebrar um jejum tão sagrado como o da véspera de Natal! Só a lembrança,
brincalhona embora, de tal sacrilégio, sacudia de terror a alma da companheira:
- Olha, quem não jejua em véspera de Natal, ou é herege ou animal. Não te digo mais nada!
E ele, numa galhofa:
- Só para te ouvir, criatura; só para te ouvir!
Entretanto, ia o monte das filhós crescendo no outro alguidar, onde, de vez em quando, a Maria espalhava um grosso fio de mel. A massa acabava-se: era preciso rapar em volta, para juntar as colheradas; e a Maria, dá-lhe que dá-lhe, apressava a
tarefa, com o pensamento numa caridade que tinha a cumprir antes da Missa do Galo. Na torre da freguesia bateram horas.
- Hão-de ser dez... opinou ela.
- São mas é nove! Afirmou ele.
Três, quatro, cinco... E no silêncio da noite pausadamente, bateram onze. Então a Maria, arrancou o garfo das mãos do marido, esquecendo-se o mel, só pensando em terminar, abalar para a sua obra de misericórdia. Como o tempo passara. E a pobre
Carolina, que seria dela, talvez sozinha no casebre, a morrer...
- Então, para pior, a Carolina? Perguntou o homem.
- Sempre, coitadinha!
Enquanto arrumava os alguidares e dava outra enxaguadela às mãos laboriosas, contou a Maria como se agravara a doença da vizinha desde manhã cedo, quando ele partira para a cidade, a vender um cesto de aves de sua criação. Estava desenganada, a
Carolina.
E aquelas dores! Por mais que o mestre cirurgião fizesse, não houve dar-lhe ao corpo martirizado um momento de alívio. E sem consentir nada na boca, nem à mão de Deus Padre... A Maria, com tanta
pena da desgraçada, matara-lhe um frango - pois nem o caldinho provara! Depois, uma perdida, sem família, toda a gente fugia dela.
Sozinha ou aquilo era a mesma coisa. As Senhoras das Poças tinham mandado para lá a pastora das ovelhas, a Tinhosa. Mas a Tinhosa que jeito tinha para aquilo - ou fosse para o que fosse? Assim, a Carolina se via em cima de uma enxerga, tão
desamparada, tão castigada, Jesus, da sua má vida!
Diante de tal infortúnio, o Manuel começava já a lacrimejar, com o seu puro coração de rústico a transbordar de piedade...
- E o menino?
- Uma medalha, para tu veres! A ti Ana até se admirou - que nunca lhe viera às mãos anjinho tão perfeito!
Estava tudo no seu lugar para a Consoada. Combinaram então que, quando tocasse para a missa, o Manuel passaria pela azinhaga, para levar a companheira.
- Sim, fazes bem, eu lá vou ter. Leva o capote, criatura! Pois com uma inverneira destas! E vai descansada. Assim que tocar...
A fogueira esmorecera. Sentado no degrau da cozinha, com um cigarro esquecido nos beiços, ficou o Manuel a cismar... Mundo de Deus, só Ele o entendia; graça de Deus, só Ele sabia por que mãos a distribuía, conforme as boas ou más acções de cada
um...
Mas ali estava a Carolina, uma perdida, com um menino assim robusto, assim escorreito, que ela decerto não desejara, ao passo que ele, Manuel, e a companheira tanto pediam, sem serem ouvidos - pelos
seus muitos pecados! Tinham até feito uma promessa a Nossa Senhora de Vale de Nogueira, que, para milagres, digam o que disserem, não há outra...
Quando a Maria, um dia, segredou ao seu homem que andava com umas desconfianças, foi uma folgança, uma loucura naquela casa! Um filho, pequenino primeiro e tatibitate; logo, crescendo a olhos
vistos, crescendo até dar um esperto e chibante garotaço, com diabruras de fazer rir as pedras; depois homem feito, a ajudar o pai no amanho das terras, a fazer finalmente as suas vezes, quando viesse a fraqueza e as molezas da velhice...
Ambos desejavam que fosse menino e já estava decidido que juntaria no nome, os nomes dos pais, continuando a união dos seus corações. E perguntavam um ao outro: - Manuel Maria, que tal? - Parecia um
nome de oração. Ou então, um nome para cantar, Manuel Maria... Que lindeza de nome!
Nas últimas semanas, volta e meia trazia o Manuel alguma coisa para o "Morgado". Era uma touquinha, uma figa, uns sapatinhos... O berço foi encomendado ao melhor marceneiro dos sítios. Uma doidice, uma doidice!
Mas ai, grandes pecados eram os meus! O anjinho veio ao mundo, já morto. As roupas de boneca que a mãe talhara e alinhavara durante tantos serões não chegaram a sair da arca de castanho; o rico berço lá ficou para o canto; e nunca mais a Maria
murmurou ao ouvido do seu homem aquela nova vinda do céu...
Afundado nessas recordações, o Manuel fumava cigarros a eito, deixando, à falta de lenha, apagar-se o fogo da lareira - como aquele hora se devia estar apagando a vida da Carolina. Um repique de sinos alegrou os ares. O lavrador sentiu-se como
sacudido por dentro; levou as mãos aos olhos, com a impressão momentânea de ter adormecido diante da fogueira extinta.
Era a primeira chamada para a Missa do Galo. Teve ainda um suspiro profundo, desoprimente; cobriu-se com o grosso chapéu alentejano, pôs aos ombros o gabão de saragoça e foi-se a buscar a
companheira.
Encontrou-a à cabeceira de Carolina, rezando, com o menino ao colo, a pastora das Poças, encolhida a um canto, coçava a cabeça que a tinha escalavrada; uma candeia triste e fumarenta derramava o calor da luz mortiça: e no catre, a enferma
sumia-se sob a coberta de retalhos, esfiapada.
- Então Maria?
- Está a decidir, a pobrezinha...
O Manuel fazia rodar nas mãos o chapeirão alentejano, embaraçado, sem saber... Mas, então, teria que ir sozinho à Missa do Galo?
- Que remédio! Por que, também, deixar aqui esta alminha, ao desamparo... Vai tu, meu homem, vai. Nosso Senhor há-de perdoar.
- Se há-de!
A Maria recomeçou as suas orações; e ele saiu muito triste de ir só - pela primeira vez, imaginem - mas consolado de pensar na generosa acção da companheira. Ninguém no lugar quisera saber da Carolina, vissem que gente! Todos haviam passado o
serão cantando loas ao Menino Deus, ou entretidos com histórias de bruxedo, diante dos tachos da ceia. Por via dela ter andado em más companhias, por feiras e arraiais... Mas não era uma alma cristã como as outras? E então à hora da morte...
Gente sem coração!
Entrou na Igreja quando a missa ia começar. Ajoelhou com toda a devoção; mas benzia-se e batia no peito maquinalmente, por ver os outros. Não lhe saía do pensamento aquela miséria, aquela criança. A mãe de certo ia para o céu, perdoada, enfim,
pois que tanto sofrera; mas ficava o inocente, só no mundo...
Quando o abade saiu do altar, o Manuel foi com os outros beijar o pé do Menino, deixar-lhe na salva uma moeda de prata que, de nova, reluzia. O Presépio estava naquele ano mais rico, enfeitado pelas
Fidalgas da Gândara, com muitos bordados, muitas camélias, muitas velas cor de rosa. O divino Inocente sorria no seu berço de ouro; e foi ao curvar-se para lhe depor no pezinho o beijo da devoção que o Manuel com mais veemência, mais lá de
dentro, pensou no filho da Carolina. Também ele nasceu naquele dia - mas sob tão má estrela, tão desgraçadinho...
Tomou de novo o caminho do casebre, quase às carreiras. Era uma ansiedade de chegar, saber... Na quelha, tropeçou duas vezes, por um triz não rolou sobre os pedregulhos. E não pode entrar logo; estacou à soleira, olhando a mulher que, sempre
com o embrulho ao colo, ia buscar duas velas, as acendia à cabeceira do catre...
- E então?
- Ficou-se agora mesmo...
O Manuel deu dois passos, tirou o chapéu, no respeito da morte que ali entrara. E o pouco que sabia de orações, tudo murmurou, pelo descanso daquela alma sofredora.
- Agora vamos... disse a Maria. E como a despedir-se ou a desculpar-se, olhando a morta: - Já não precisa de nós... nem de ninguém.
Recomendaram à Tinhosa que não saísse dali antes de chegar alguém, e partiram, mais tranquilos, aliviados, para a sua casa, para a sua Consoada.
Enquanto a mulher aconchegava no vasto leito doméstico o inocente adormecido, tratava o Manuel de reavivar a fogueira, soprando a cinza, donde as fagulhas irrompiam num júbilo de ouro vivo.
- Dorme como um anjo... disse ela, afastando-se do leito, mas ainda de olhos no orfãozinho. - Amanhã arranjaremos o berço do nosso, não é assim? E fica para ele.
O Manuel, num alvoroço:
- Mas... Olha lá, é sério? Tu queres?
- Como não, meu homem! Isto, foi Nossa Senhora de Vale de Nogueira, nem mais, nem menos. A nossa promessa... Não vês que a Nossa Senhora nunca falta, quando é do coração?
Aturdido, o Manuel não respondeu logo. Cravava os olhos na companheira, no fogo reanimado...
- Pois viva! Exclamou por fim, num arrebatamento: - Louvada seja Nossa Senhora, e abençoada tu sejas, cachopa de minha alma!
Abraçou-a soluçando. Pela face barbada, corriam-lhe, duas a duas, lágrimas grossas como bugalhos.
- E há-de-se chamar Manuel Maria, pois então? Ai que rebento de alegria! Vamos às filhós! |
Aflitos
Senhor dos Aflitos
O moleiro chamava-se Martinho e a mulher, se bem me lembro, Conceição. Viviam, com um rancho de pequenos, no casebre que era ao
mesmo tempo o seu moinho, junto à base do penhasco, bem conhecido e adorado em Portugal, da Senhora da Piedade.
A ribeira de S. João, afluente do Ceira — que por sua vez engrossa as águas do Mondego — quase dá a volta, no seu caprichoso curso de ferradura, ao monte escarpado, onde no inverno só medra a urze triste mas na primavera rompe uma flor de
excepcional gentileza e mimo, surpreendente na singeleza da sua forma como na leveza do seu aroma, que se chama "craveta"e não enfeita, pelos modos, nenhum outro lugar da terra. É essa ribeira duas vezes sagrada: pelo nome e pelo privilégio de
circundar tão milagrosas penedias, que faz andar a roda dentro dos moinhos da serra. Aia ontem os contemplei terreiro da ermida, alapardados ao fundo do desfiladeiro; a água que desce, saltando, espumando e cantando sempre por entre fragas e
calhaus, precipita-se de repente por uma vala íngreme e em forma de funil, para sair, ao fundo, no esguicho possante que acciona a roda e faz girar em cima, na outra extremidade do eixo, a mó de pedra clara, mais clara ainda pelo efeito da
farinha. Um desses moinhos era o do Martinho; será hoje de algum filho seu, já velhote, ou dalgum neto por sua vez cercado de filharada...
À semana, nunca o Martinho aparecia na vila; quem ao tempo desta verídica história, vinha correr a freguesia era a filha mais velha, cachopinha airosa e fresca como uma flor da serra, de olhos risonhos, cabelos muito anelados, sempre com uma
madeixa farinhada a adejar-lhe sobre a testa — e tão linda toda ela, que não havia fotógrafo nem pintor que não lhe quisesse tirar o retrato, ao lado do jerico, pachorrento, já habituado àquelas homenagens e disposto sempre a "posar"o tempo
necessário, apesar dos foles de farinha ou grão que positivamente o ajoujavam... Aos domingos, porém, era certo cá em baixo o moleiro, com a Conceição e, às vezes, um dos pequenos ou dois, conforme calhava. Iam à missa da Matriz, à feira
depois, depois a outros lugares, certos também e que o Martinho julgava tão necessário frequentar como a Igreja e a praça, para sustento do seu corpo e consolação da sua alma. Para o moleiro, tratava-se de uma espécie de freguesia a percorrer
pessoalmente; não lhe dava ela ganho nenhum, ao contrário: levava-lhe as economias e até o trazia sempre mais ou menos endividado. Além disso, amargurava-lhe a mulher, martirizava-lhe os filhos... A tudo, porém, o Martinho sobrepunha a
fidelidade da visita hebdomadária àqueles sítios sem os quais não haveria para eles domingos verdadeiros nem verdadeira razão de descer à vila; e essas etapas da sua jornada dominical eram simplesmente as tabernas da Lousã.
Fazia aquilo metodicamente, a eito. Era uma peregrinação com escalas regulares e estacionamentos exactos, como marcados pelo relógio. A Conceição sentava-se ali para um canto, pacientemente, por bem saber quão inútil e perigoso se lhe tornaria
discutir com o marido, tentando demovê-lo ou apressá-lo. Se tinha trazido a sua costura ou as suas agulhas de meia, trabalhava; se não, entretinha-se com as mulheres dos outros fregueses, tagarelando sobre os próprios desgostos e a vida
alheia... Entretanto, o Martinho, efusivo, pródigo em abraços a quantos chegassem, sempre com histórias longas a contar — mesmo porque se as não tinha novas, repetia as velhas com o mesmo regalo e inspiração — ia entornando meio quartilho sobre
meio quartilho, com intervalos medidos, sistematicamente. Não perdia a conta dos copos, como não perdia nunca o fio da narrativa... Discreteava e entornava com a pontualidade de um rito. Quer pagasse, quer lhe oferecessem, ia de venda em venda,
enxugando em cada uma a quantidade de vinho que lhe estava designada. De vez em quando, engolia também uma bucha — canto de pão, lasca de bacalhau, fatia de queijo — para "fazer lastro"aos dois decilitros que a espaços certos se sucediam. Nada
o obrigaria a alterar essa ordem de longe e cada vez mais estabelecida.
E tanto assim que ninguém jamais viu o Martinho "tocado"— antes das oito horas da noite.
Alguns minutos antes, chegava ele à venda do João Caetano, perto da nossa casa, e pedia o meio quartilho sacramental. Era a conta. Ao dar das oito, tirava do bolso de dentro da jaqueta — onde, até então, nada lhe denunciava a existência — um
pífaro bucólico, dos que os pastores usam para dar poesia e melancolia à solidão das encostas, e dizia à esposa, com a mesma gravidade com que o Francisco do Rego, mestre de música, se dirigia à sua orquestra: "Ora, vamos lá…"A Conceição
apurava a garganta, que tinha fina, bem timbrada e doce como poucas; o Martinho rodava os dedos sobre a língua, como para os tornar mais ágeis e macios, e executava uma escala de experiência; se o pífaro estava seco, ingrato na "expressão",
entornava-lhe pelos buracos um púcaro de água; em noites de mais acentuada rebeldia, piscava o olho ao instrumento, dizendo-lhe num tom amistoso e finório; "Grande patife, o que tu queres eu bem o sei…"— e despejava-lhe para dentro um copo de
vinho. Começava então o concerto. E valia a pena, palavra que valia a pena vir de longe para o ouvir.
A voz da Conceição, grave e enternecida, um tanto chorada, adaptava-se com especial propriedade às músicas daquele reportório. Eram geralmente histórias de separação, de saudade, de desamparo, de fome e frio, de ingratidão, de morte. Não raro,
ou porque a toada da canção lhe tocasse mais fundo a alma simples ou porque a letra mais particularmente dissesse com a sua vida de humildade e obediência, a cantadeira acabava chorando. A doçura daquele timbre ao mesmo tempo ingénuo e
precioso, que a arte não aprimorara mas o sentimento enriquecia, enevoava-se, humedecia-se de lágrimas. Dos olhos da Conceição — quantas vezes lhas vi... — desciam redondas e claras lágrimas que vinham até aos cantos da boca, num percurso
inspirado como para dar mais eloquência à voz que saía. Nesses momentos, com efeito se diria que a mulher do moleiro improvisava, criava tudo aquilo e que nem os versos lhe vinham de memória nem a música da garganta, mas tudo directa,
espontaneamente do coração. Havia sobretudo, entre a voz da Conceição e a voz da flauta agreste que o marido igualmente fazia cantar e chorar, uma afinação, uma fusão de sons e de expressões que aos ouvintes mais rebeldes enchia de maravilha...
Os bebedores esqueciam os copos em meio e os mais perturbados pareciam recuperar a razão e a sensibilidade; as crianças abriam desmesuradamente a boca, como pasmados para a realidade dum conto de fadas; as outras mulheres baixavam os olhos
imóveis, cismando e suspirando... Parava gente na rua — até os senhores que iam para o clube e as senhoras que andavam em visitas se detinham defronte da taberna, cativos daquela transcendente poesia. Outras damas e cavalheiros, de mais
recatado sentimentalismo, iam ouvir de longe, abrigados pelos patamares, escondidos pelas esquinas; e fosse noite de verão, ou de inverno, todas as janelas, até de larga distância, se abriam. Os mesmos que, dentro ou à porta da taberna, tinham
começado a ouvir de pouco caso ou motejando se iam sentindo conquistados, possuídos pela prodigiosa melodia; e o Martinho, sem deixar de soprar e dedilhar a flauta, esbugalhava os olhos em torno, sentindo ou adivinhando todo aquele êxito,
próximo ou longínquo, pela terra e pela noite fora, e gozando exuberantemente o seu triunfo.
Considerava aquilo tudo obra e propriedade suas. Era o seu pífaro, sua a virtuosidade dos gorjeios e repenicados a que o obrigava; sua a voz e a graça canora da esposa, uma vez que esta lhe pertencia; sua, portanto, a comoção do auditório e
toda a admiração e enternecimento que lá fora se espalhavam. Por isso gozava e se enchia de orgulho. E as suas exigências de artista que se vê compreendido não tinham limite nem queriam sofrer qualquer espécie de restrição. Passavam as horas, e
a mulher a cantar, seguindo trinado da flauta rústica... Se a Conceição se mostrava, não fatigada, que então iria tudo raso! — mas com certa pressa de voltar para casa e para os filhos em relativo abandono, o moleiro deitava-lhe olhos de tirano
contrariado e prestes a punir a insubmissão... E a Conceição, que remédio, continuava. Desfazia-se em cantigas entrecortadas de "ais"que, às vezes, estariam de facto na música, mas quantas vezes lhe viriam da alma escravizada..."Vamos agora
àquela!", ordenava o Martinho, implacável. Já o vendedeiro reclamava — que era tarde, há que tempo devia ter fechado o estabelecimento... Cordato e maneiroso para com toda a gente, à excepção da esposa, o moleiro pedia desculpa, rogava uns
momentos mais de tolerância — e todo o auditório lhe reforçava o requerimento; à mulher, porém, ordenava-lhe, revirando os olhos e rangendo os dentes que cantasse. Interrompia até os floreios do pífaro, para lhe ralhar, se ela baixava a voz ou
lhe diminuía a intensidade sugestiva. À força da vaidade artística e de copos de dois decilitros, tomava-se verdadeiramente feroz. Insultava com palavras torpes a mãe dos seus filhos, dirigia-lhe ameaças de arrepiar. E, fazendo sobretudo
questão de que a voz da pobre Conceição correspondesse, no tom magoado e choroso, à feição da música executada, atirava-lhe subrepticiamente pontapés às canelas se francamente não lhe malhava as costas com o pífaro para a fazer chorar.
Ora foi numa noite assim que o Senhor dos Aflitos, cuja capela fica fronteira à da Senhora da Piedade, fez o mais lindo e misericordioso dos milagres que já se operaram — e têm sido tantos! — naquelas penedias.
Naquele domingo, a Conceição não queria descer à vila. Andava para cada hora. Justamente na véspera, com a pequena mais velha a correr a freguesia, o pequeno mais novo a arder de sarampo, o marido a labutar na nesga de terra do outro lado da
ribeira, onde dava o sol — a moleira trabalhara todo o santo dia, cheia de dores e de medo de algum desastre. Passara mal a noite, com sonhos angustiosos. E de manhã, ousando exprimir uma vontade diante do marido sempre titânico e desabrido,
dissera-lhe baixinho, timidamente, quase num tom de imploração:
— Olha, homem, antes tu fosse sozinho...
— Então porquê, porquê? inquiriu o Martinho, logo de mau modo, com as barbas encrespadas e todo ele irritação.
— Sinto-me tão agoniada... É um negrume cá dentro... Parece que vai ser hoje... E que alguma coisa está para acontecer...
— Cantigas, chasqueou o moleiro imperturbável. Cantigas de mulheres! Das outras vezes também choraste as estopinhas, ficaste para morrer... E ao cabo? Vieram os pequenos, rijos e espertos como cabritinhos... e não aconteceu mais nada. Anda,
vai-te aprontar. Isto, quanto mais luxos, mais nicas, pior: Não há como deixar as coisas à lei da natureza. Além de que, pelas minhas contas, ainda tens que esperar. Meia lua, para mais, que não para menos...
Dizia estas coisas seguras, imperiosas, apertando em volta dos quadris a cinta vermelha que constituía o elemento capital da sua elegância domingueira. Dava-lhe puxões enérgicos contra as ilhargas, para que ficasse bem esticada, bem airosa; e
tendo feito a laçada à esquerda, com o palmo de franja caindo conforme a exigência suprema do janotismo daquelas terras, entortou um pouco a cabeça, para se contemplar melhor, e sorriu, satisfeito.
Também a Conceição procedia, sem gosto embora e soltando cada suspiro de enternecer as pedras, à "toilette"dos dias de festa. Tirara da arca a saia de lã, o casabeque debruado de
veludo; com dois movimentos singelos pôs pela cabeça e atou ao pescoço o lenço azul de ramagens douradas; traçou depois por baixo do braço esquerdo o xaile novo comprado na última feira de São João e que, na fazenda rica e nas pregas amplas,
conservava ainda uma pompa e graça de manto.
Tudo isso, porém, de cabeça baixa, cismando e aos ais, como se, em vez de ir para a missa e para o mercado, a pobre Conceição soubesse que lá em baixo a esperavam as grades da
cadeia.
— Ora aí está, vês? gracejou o Martinho, mirando-a de alto a baixo. — Pareces uma princesa!
— Neste estado... suspirou a Conceição, com um dar de ombros ao mesmo tempo de dor e de resignação.
— Nesse estado, pois então? E para a lisonjear, no sacrifício que dela exigia: Olha, eu é que não te trocava nem, por uma "imperatriz! Não falta mais nada? Disseste à Maria que tomasse bem conta do pequeno? Estás ouvindo, rapariga? Olha que, se
te arredas da beira do teu irmão, comigo te hás-de avir, hein? Ora, bom. Que é do "pífaro"? Quem me andou brincando com o "pífaro", capaz de mo estragar? Achem-me já esse "pífaro"ou vai tudo raso, com seiscentos mil diabos!
— Até seria melhor não o levares hoje... observou ainda, em voz lamentosa, a Conceição. — Olha, eu, pelo menos, cantar, não posso...
Busca daqui, busca dali, trouxeram-lhe o pífaro; enfiando-o no bolso de dentro, o Martinho, com uma brandura, um ar de aquiescência a que ela não estava acostumada, disse à mulher:
— Bom, se não puderes, paciência. Voltamos para casa mais cedo...
Meteram pela azinhaga escarpada, escalavrada, que sobe a encosta fronteira ao penhasco da Senhora da Piedade e ao alto do qual fica, dum lado, o castelo antiquíssimo, em ruínas, e do outro, esbelta e sempre nova, na frescura da caiadela anual,
a ermida do Senhor dos Aflitos.
Mais vizinha do penhasco da Virgem e, como quase todas as mulheres da terra, sua afilhada, era naturalmente a Ela que a moleira reservava a melhor devoção; e do Senhor dos Aflitos, a
bem dizer, só se lembrava ao passar pela sua capela, para se deter um momento, dobrar o joelho e fazer lentamente, solenemente, um largo sinal da cruz...
Naquele dia, porém, esteve muito mais tempo de cabeça baixa, rezando um Padre-Nosso e uma Ave-Maria; e ainda depois de se persignar se demorou imóvel, de olhos postos na clara ermida
e como se quisesse dirigir-lhe uma oração nova, especial para o seu caso, para as suas apreensões...
Alguma coisa lhe dizia que ia precisar, como nunca da misericórdia divina. Uma voz, dentro do seu coração, a prevenia, a aconselhava a invocar a protecção daquela Imagem flagelada, escarnecida, arrastada pela rua da amargura, banhada do suor e
do sangue do supremo martírio...
Nisto, a voz do Martinho a chamou, impaciente e autoritária: "Vens d'aí ou quê"Pude apenas implorar, sem voz, como um sopro: "Senhor dos Aflitos, tende pena de mim que não sei o que
me vai acontecer"Pareceu-lhe então que a voz da sua alma lhe falava de novo, mas para a animar, para a tranquilizar. E, fazendo de novo das fraquezas forças e da sua angústia esperança, seguiu o marido, caminho da Lousã.
Dali à vila, era estrada boa e a descer. Chegaram à igreja, ainda a tempo da missa.
O Martinho parecia comovido. Uma vez, voltando-se casualmente para ele, a Conceição viu-o apertar contra o peito as grossas mãos que tão frequentemente ameaçavam ou espancavam, mas que naquele momento de certo tremiam, pedindo perdão da sua
crueldade e jurando nunca mais...
Olhou-o outras vezes, cautelosamente, de soslaio: reparou como, a levantar a Deus, a mão direita do marido, mais irunca que a outra e mais pronta sempre para maltratar, batia no
peito, humilde, arrependida, convertida e bem disposta a não servir dali para diante senão para trabalhar e acariciar. Assim a moleira se sentia cada vez mais confortada; e aos seus olhos toda a igreja, toda a vida sorria...
Depois do mercado, porém, e lá para o meio da tarde, começou o Martinho a tornar-se festivo e festeiro como sempre. Tendo entrado na primeira venda "só para falar duma coisa, duas palavrinhas e nada mais", logo encontrou amigos do peito, a quem
realmente não podia deixar de fazer companhia nos dois decilitros oferecidos.
Ainda se voltou para a mulher, justificando-se: "Favor de gente honrada não se rejeita: Mas isto é beber e andar..."Bebeu, mas não andou. Desatou a contar as histórias de sempre,
ilustradas de gestos excessivos, caricaturais, comentados por infindável risota...
Depois, fez questão de pagar a sua rodada... Passou dali a outra taberna, onde também tinha que dar um recado, mas era só entrar e sair. E "ora viva!"e "bons olhos o vejam!"e "quem é
vivo sempre aparece"e "falai no mau"... Muita festa para a festa e logo os copos de meio quartilho a transbordar, a espumar, a pedir que os despejassem... Assim se passaram as horas, caiu a noite.
A Conceição compreendia a inutilidade e, pior que isso, o perigo de intervir. Aninhava-se a um canto, esperava. E aos que em tom de compaixão ou de censura estranhavam vê-la andar
por ali, "naquele estado", respondia docemente:
— Não há-de ser nada, se Deus quiser. E nós hoje vamos cedo para a serra. O Martinho prometeu e ele quando promete...
Já não acreditava, está visto, que o marido cumprisse a palavra tão solenemente dada e repetida. Contava, porém que ele tivesse, ao menos, a caridade de a dispensar de cantar. Quando, por volta das oito horas, na venda do João Caetano, o viu
tirar o pífaro do bolso interior da jaqueta, sorriu-lhe, fazendo apenas levemente com a cabeça - que não. "Só uma, só uma!"insistiu o Martinho, com tão brando acento que era como se pedisse alguma coisa — pela primeira vez. Mas a Conceição não
podia. Doía-lhe tudo. Turvava-se-lhe a luz dos olhos. Uma opressão, de vez em quando lhe tapava a garganta e lhe tirava a força de falar — quanto mais de cantar…
— Oh, Martinho! gemeu ela, num supremo esforço, de mãos postas. — Não posso! Não posso!.
Intervieram os outros fregueses. O Martinho subitamente enfurecido, com todo o vinho na cabeça, ergueu o pífaro, como um cajada para a desmantelar.
— Pois então, vai-te daqui para fora. Some-te, com seiscentos diabos, quando não...
Os amigos agarraram-no. A mulher saiu.
Aí vai ela, pela noite negra, com a sua carga imensa de sofrimento e o terror, pior que tudo, de não chegar. Que estará para lhe acontecer? O pressentimento da manhã assume agora na sua alma apavorada a feição dum mistério fatal. Ainda bem que
as pernas sabem o caminho e se mantém fiéis à sua obrigação... Sem que propriamente ela as dirija, levam-na pela estrada dura e negra, subindo, subindo sempre, sem canseira nem desvio, maravilhosamente. A Conceição deixa-se levar. Já acredita
na possibilidade de alcançar o moinho, ao fundo da azinhaga pedregosa, sobre o rumor da água batendo na roda sempre a andar...
Nisto enxerga ou, antes, adivinha, branquejando na noite cerrada, a Capela do Senhor dos Aflitos. E é quando as dores da carne violentada, rasgada, se lhe tornam insuportáveis, e as
próprias pernas, resistentes a todas as andadas e todas as ascensões, lhe vergam, incapazes de dar um passo mais. Desamparada no chão, a moleira consegue ainda arrastar-se, rastejar uns metros até rente à parede da ermida; e então um clamor lhe
sobe do fundo da alma alanceada;
— Oh, meu Senhor dos Aflitos, valei-me nesta aflição!
Só ela mesma sabia contar o milagre, tal como se deu... Mais duma vez lho ouvi e com toda a atenção — como porém, repetir a sua tão ingénua quão prodigiosa narrativa? Ouso apenas afirmar que o Céu negro se abriu por trás do Castelo, e uma luz
veio bater, cor de pérola e suavíssima, na parede da ermida.
Assim, de repente, a moleira viu em plena escuridão e quase no último desespero se reanimou. A luz celeste envolvia-a cariciosamente e ensinava-lhe tudo o que tinha a fazer. As
próprias dores da maternidade se atenuaram, tornando-se, relativamente às outras, benignas e passageiras. O filho chorou logo, "forte e esperto como um cabritinho".
Rasgando com os dentes uma tira de chita, a Conceição amarrou o umbigo do inocente. Ficou ainda algum tempo a descansar, a agradecer ao Senhor aquela graça infinita. Depois, com a
luz sempre a guiá-la e como a arredar-lhe do caminho as lajes escorregadias e as pedras soltas em que pudesse tropeçar, desceu a azinhaga do moinho. Os outros filhos dormiam a sono solto. E a moleira, acomodando‑se com o novo anjinho, afilhado
do Senhor dos Aflitos, adormeceu também. |
Coimbra. Terra Encantos
Chego a Coimbra, pelo Rápido, cheio de saudades e de fome. Os meus olhos anseiam pelas areias do Mondego, o casarão da Universidade, com a sua torre
quadrangular ao alto mostrando as horas à cidade inteira, o suave panorama de Santa Clara, do outro lado da ponte, e o convento secular, onde a Rainha Santa ainda dorme, tão perfeita e tão linda como adormeceu, a pensar em doces milagres e na
paz e fortuna do seu reino...
Mas a prosaica e quase inconfessável verdade é que o meu estômago não anseia menos pela pratada de iscas do Sr. João da Praça Nova, ou qualquer outro dos acepipes tradicionalmente coimbrões, que
outrora regalaram o meu paladar de estudante, sempre aguçado e fácil de contentar.
A Lusa-Atenas surge-me alfim, no aspecto aliás tão pouco convidativo da sua Estação Velha, como um céu aberto - onde se come. Suspiro pela Lapa dos Esteios, retiro de muitas gerações de poetas, e pelo Penedo da Meditação, recanto preferido
pelos filósofos dalgumas centenas de anos...
Mas, ao chegar ao hotel, a palavra que me rompe da boca, num grito de violenta, brutal exigência, é «jantar! jantar!» e o criado que me sobe a mala para o quarto, volta-se, espantado, por ser, quem
sabe, a primeira vez que à Pérola do Mondego, chega cavalheiro tão ávido das sopas de verdura e do cozido beirão, que ela oferece aos seus visitantes, com sobremesa de arrufadas da Sofia e pasteis de Santa Clara.
E o honesto serviçal não deixa de ter razão. Ordinariamente, ninguém chega a Coimbra, por aquele Rápido, sem jantar. O Rápido tem vaqon-restaurante; e, para que não haja a menor dúvida ou irregularidade nesse serviço, os senhores passageiros
recebem, ao embarcar em Lisboa, uma senha convenientemente numerada e carimbada, com o letreiro Fumeurs, Série...tal. Tanto que, a mim e a Leopoldo, coube-nos por grande felicidade nossa, a série I.
E, ao embarcar entre muitos viajantes que se disputavam os lugares, levávamos essa deliciosa certeza na -.algibeira do colete: que nos seria servida uma abundante refeição pelas alturas de Santarém
e que a primazia garantida por aquele I da serie, nos poria à mesa, ainda com dia claro, de maneira a entremearmos os pratos saborosos com as impressões que fossemos recebendo dessas admiráveis margens do Tejo, tão fartas e tão formosas.
Pois, muito bem; o comboio largou, pontualmente, às 5 e 30. Furámos o túnel, ladeámos o Campo Pequeno, começaram a passar por nós ásperas colinas e baixadas de aborrecido aspecto. Abrimos os jornais, recostámo-nos, à espera do Tejo... Depois,
os campos surgiram à direita e o lençol de água estendeu-se, muito calmo e luminoso, ao sol da tarde. Mais adiante, extasiou-nos o Vale de Santarém, lembrámo-nos de Garrett e dos olhos verdes da Joaninha. O trem parou um momento e tornou a
largar. Sentimos o primeiro rebate do apetite... O que valia é que não devia tardar muito a hora, de jantar.
Pela portinhola, continuávamos a ver os verdes prados, povoados de rebanhos de vacas ou de cavalos, os arvoredos da outra margem, estendendo a sombra enorme - era ao pôr do sol - até meio do rio
magnífico, algum moinho de vento a girar no alto do seu cabeço, uma roda de alcatruzes a despejar no seu tabuleiro a frescura e a vida dos milharais ainda novos.
De vez em quando, encosta acima, trepava a folhagem baixa e profusa duma vinha exuberante; e, como um ramo vermelho num grande açafate de verdura, erguia-se uma cerejeira, ainda carregada de fruta, entre o esvoaçar dos pássaros gulosos. Que
magnitude e que graça - para os que, a essa hora, deviam ir jantando! Porque, a mim e a Leopoldo, fugia-nos, gradualmente todo o sentimento da paisagem, toda a noção daquelas maravilhas.
Olhávamo-nos, pálidos e esgazeados; não aparecia um guarda que nos informasse, não havia no compartimento letreiro que nos elucidasse; e todos os companheiros de vagão, em lufa-lufa, chocando malas
e chapeleiras, nos haviam abandonado em Santarém. Nem de propósito! Anoiteceu; emudecemos; tentámos dormitar, esquecer, jantar em sonhos; inútil.
E, até Coimbra, esfomeados, nervosos, desesperados, amaldiçoámos intimamente o serviço do Rápido, a ausência inexplicável dos seus revisores e, sobretudo, a boa sorte daqueles que, mais
experimentados ou avisados a tempo, nos haviam usurpado os lugares daquela primeira série, enganadora e fatal!
Eis porque o caldo verde de Coimbra me atraiu mais intensamente que todas as suas tradições de poesia e de lenda e porque, ao penetrar os umbrais do Hotel Avenida (agora, cá e lá, tudo são Avenidas) aquele ardente grito de saudação à terra de
Minerva e da tia Camela, me saiu, não do íntimo da alma em jubilo, mas das profundas do estômago em petição de miséria.
Só me faltava que, àquela hora - deviam ser, nove e meia, para as dez - já não houvesse jantar, no Hotel Avenida, não é, verdade? Pois, foi isso exactamente que se deu. Não havia jantar; poderia,
haver, quando muito, um chá, uns bolos. Leopoldo, cheio de raiva e de desprezo, resmungou, como o Visconde Reinaldo do Primo Basilio:- Que país este! - Eu, porém, não me contentei com is frases desse parvenu aristocrata; esbravejei, reclamei,
fiz um escândalo no corredor.
O proprietário do estabelecimento, aterrado, a tremer pelos seus créditos, acudiu a saber a causa da indignação de Suas Excelências. - Suas Excelências queriam jantar, irra! Apenas isso, essa ninharia: Suas Excelências queriam jantar! E era um
desaforo, uma coisa como só se via em Coimbra, que Suas Excelências, atraídas por uma tabuleta de espalhafato e uma fama tão imerecida, ficassem sem jantar!
O homem multiplicou as excelências, chamou-nos doutores, conselheiros, condes (não percebeu que vínhamos do Brasil, quando não, chamava-nos também coronéis) e jurou que ia fazer o possível por não
desmerecer da nossa estima e confiança. E sempre nos arranjou um prato de carne fria e um açafate de pêssegos.
Era frugal, mas bastava a duas criaturas que, ainda um momento atras, consideravam o mais diminuto pedaço de pão um ideal remoto e inalcançável. Da carne, só deixámos os ossos e dos pêssegos os caroços; e, quando eu acrescentar que, sobre a
mesa, surgiu, súbita e inesperadamente, como nas mágicas de Garrido, uma garrafa do melhor branco da Bairrada, terei certamente dado a entender que o repasto modestíssimo se converteu afinal num banquete precioso e preciosamente regado.
A noite estava fria e os estômagos pesados; duas circunstâncias realmente de atender que nos forçaram a abandonar, ao cabo de ligeira discussão pró-forma, o projecto dum passeio pelos arrabaldes de Coimbra adormecida.
Para o exercício de quilo, tínhamos o quarto em cima, espaçoso, muito caiado, perfeitamente agradável; e a quanto de sentimental e pitoresco os nossos olhos pudessem exigir em tal momento,
respondia-nos comodamente o lindo luar que fazia, o Mondego fronteiro, com o seu veio estival a fugir silenciosamente pela areia e todo o leito a luzir, cor de ouro pálido, sob a paz luminosa do céu.
Até altas horas nos esquecemos à janela, diante de Santa Clara, toda apagada e fechada aos ares vivos que traziam em si um resto da excessiva frescura primaveral. O velho convento dominava o horizonte, alongando-se, muito alvo, na encosta.
Tanto quanto permitiam as minhas recordações de preparatoriano, servi de cicerone a Leopoldo, apontando-lhe, com o braço estendido para a noite clara, os lugares famosos que todas as liras de
Portugal um dia cantaram e de que para sempre guardaram a inspiração e a saudade.
Além, na Lapa dos Esteios, havia uma pedra histórica, com seis versos devidos ao génio de seis trovadores ilustres: lá estavam os nomes de Castilho, Herculano, outros mais que me não lembravam; ao
lado, ficava a Fonte dos Amores, imortalizada nos Lusíadas, e onde se pode ainda ver o sangue da linda Inês tingindo as pedras e as ervinhas, confidentes da sua paixão e do seu infortúnio; dali, vinham os pasteis dulcíssimos que a gente atribui
à própria Santa Clara e juraria feitos nos verídicos tachos celestiais; seguia-se depois, para baixo, a linha de árvores esguias, cuja folhagem miúda palpita sempre e levam àquele sítio que delas tira o nome, o Choupal, cenário dilecto das
fogueiras de S. João, onde as tricanas têm cantado as mais peregrinas « modas » de Portugal.
Mas tudo ali, em volta, eram lembranças inapagáveis, queridas a pensadores e artistas, e tão espirituosas algumas, que bem se poderia com elas, coligir a história alegre da inteligência lusitana.
De cima daquela ponte, lançara João da Ega os seus paradoxos e Simão Craveiro as suas blasfémias; aquele beco ia dar ao Homem do Gaz, onde Gonçalves Crespo, João Penha e Guerra Junqueiro haviam
poetado fraternalmente e trocado epigramas ferozes; ali adiante, começava a estrada da Beira, outrora palmilhada por Antero e Eça, entre polémicas da mais delirante metafísica; e um estudante que agora passava rente ao cais, de capa traçada e
cabeleira ao vento, bem podia ser descendente dalgum dos sócios do Raio ou dalgum valentão do bando dos Lobos de Alenquer, que, tantas vezes, à mocada, varreu o fronteiro largo da Portagem, pondo em fuga espavorida futricas e cabos de
policia...
Leopoldo, cansado da viagem e farto de rememorações académicas, bocejou, retirou-se da janela. Eu fiquei, a acabar o charuto, diante do cais deserto. A lua baixava para o lado do Choupal, estendendo sobre a água e as areias uma barra mais alva,
com cintilações mais vivas; ramalhavam as folhas; errava no ar um leve perfume de tília; um sino de Santa Clara bateu as onze e logo depois, a torre da Universidade contou os quartos e confirmou as horas, lenta e gravemente; responderam ainda
Santa Cruz, a Sé Nova, outros templos e outros sinos que os meus ouvidos e a minha alma reconheceram, ao cabo de catorze anos de separação, como sons da véspera, queridos e familiares.
E, então, deixando apagar-se o charuto e recuando insensivelmente através de tanta luta e tanto desengano, senti-me inteiramente impregnado da vida de Coimbra, possuído de todas as suas lendas e
encantos, tão dentro dela e com ela tão dentro de mim, como noutros tempos, ao sentar-me, diante dum candeeiro de azeite, à minha banca de estudo, numa república da Couraça dos Apóstolos, enquanto, cá fora, algum grupo de cábulas cantava à
guitarra as quadras de António Nobre, com música de Hilário, seu irmão em Minerva e no Fado.
Pareceu-me ouvir gemidos de bordões, que vinham dos lados de Ceira, desciam o Mondego nalgum barco sem velas e sem varas, ao vagaroso deslizar da corrente. Uma voz de estudante entoou a cantiga da «Nossa Senhora faz meia», uma voz de tricana
gorjeou a do «Manoel no Pio repousa»; as guitarras trinaram mais forte, os violões acompanharam mais profundo...
Era uma serenata no rio, ao luar, à velha e bendita moda coimbrã, bacharéis e raparigas da baixa, versos entremeados de beijos, música repassada de amores... E eu ali, preso aos livros, acorrentado
à velha banca, escravizado ao terror da lição do dia seguinte e do exame no fim do ano... Ora, levasse o diabo tudo!
Deixei a janela, resolvido, à procura da minha capa de caloiro. E o aspecto luxuoso do quarto, a ausência da estante, o bico de gás substituindo o candeeiro de três bicos foram para mim a mais brutal e dolorosa das surpresas. Já Leopoldo
dormia. Ditosa criatura! Deitei-me também, a carpir, em suspiros e ais, toda a dor da minha desilusão.
Na Terra
Volta à Casa
Quando saímos de Coimbra, pelas oito horas da manhã, num landau aberto e entregues os nossos destinos a um cocheiro de chapéu à Marialva, fazia frio. A sultana do Mondego, como lhe chamou o conselheiro Acácio, parecia dormir ainda, sob um
lençol de névoas.
Pela estrada da Beira, cujas olaias famosas não tinham ainda aberto a soberba floração cor de mosto, acaçapava-se, espesso e pardacento, o nevoeiro das madrugadas de inverno; não passava uma só
aldeã, com o seu burro, nem um só estudante, com os seus livros; as casas da rua da Alegria, fronteira ao rio, conservavam as janelas fechadas, as cortinas corridas; e, para baixo, no extenso laranjal que fornece uma grande parte do Reino, e
ainda exporta para Paris as excelentes laranjas du Portugal, a cerração era mais densa, mais escura, mal deixando entrever a folhagem reluzente das árvores e a sua forma arredondada e airosa de ramalhete.
Por circunstâncias que de certo não interessam ao público, era nosso companheiro de viagem o Sr João Erse, Director Geral dos Correios e Telégrafos do Distrito de Viseu. Foi contra ele que assestámos o nosso espanto e as nossas ironias,
provocados por tão extraordinária manhã de verão.
Já na véspera, no Hotel Avenida (à beira-Mondego) esfregáramos furiosamente as mãos engadanhadas, batêramos no soalho, com desespero, os pés enregelados; e, à mesa, quando o criado nos perguntou se
não preferíamos o «vinhinho gelado», uma praga fora a resposta alucinada dos nossos estômagos ávidos de calor.
Tinham-nos então explicado que, à noite, sempre o tempo arrefecia um pouco, deixando-nos assim uma risonha esperança no dia seguinte, no alvorecer de Julho, no grande sol peninsular. E ali estava o
alvorecer e ali estava o sol da península; um nevoeiro de se não ver meio palmo adiante do nariz e um frio positivamente de rachar.
Assim, aquele pedaço de terra do baixo Douro nos apresentava, em pleno estio, o estranho aspecto dum trecho de arrabalde londrino, transplantado lá para os confins da Sibéria. Leopoldo cheio de arrepios, soprava ingenuamente nas mãos enluvadas;
desencantou-se numa das malas uma manta para lhe cobrir e agasalhar os joelhos; e o Sr. João Erse, muito grave e ligeiramente escandalizado, começava a ver nos nossos queixumes e precauções, um ataque à boa fama do clima português,
universalmente reconhecida e acatada.
— Ora, frio, frio, meus amigos... De certo, para quem vem dos trópicos! Mas, esperem um momento, pelo amor de Deus; o sol não tarda, já nos acena do alto daquela serra, coroada de raios de ouro. E hão de ver depois, hão, de ver que beleza tudo
isto, por aí fora.
Fitámos então os olhos, por desfastio, no viso da montanha, eriçado de pinheiros e só ele ,banhado por aquela luz deslumbrante de apoteose. Não nos assistia, ainda assim, demasiada confiança na promessa do nosso companheiro.
Ele estava tão alto, o Sol; primeiro que descesse aquelas matas, aquelas fragas, aquela imensa encosta plantada de vinha ou olivedo, para vir aquecer e alegrar a estrada, por onde, tristes,
rodávamos, há bons três quartos de hora...
Entretanto, a neblina parecia desmaiar e adelgaçar-se, deixando a terra, como uma gaze muito ténue que se levanta; a relva das valetas aparecia, semeada de malmequeres e muito fresca do orvalho.
Passámos a Ponte da Portela, cujas tábuas o trote rijo dos cavalos fazia estremecer e reboar; um barco descia o rio, muito longo e pesado, impelido à vara por dois homens que lhe, corriam pelo
bordo, fincando o peito e retesando a perna; à esquerda, no leito do Mondego, largo e quase seco, erguia-se uma ilha mimosa e reluzente de verdura, com pretensões a lindo oásis na areia fulgida; e, ao fundo, era um bosque muito enramalhado e
denso, que dava assim, de fugida, o efeito dum pequenino Eden, abrigado num recanto idílico.
Depois - o Sr. João Erse tinha razão - a estrada deu volta, caiu numa larga planície, com terras de milho, pomares, noras a chiar, águas de rega a fugir nos regos e, sobre tudo isso, um jorro de sol puríssimo, desafogado, caindo do céu já limpo
sobre a terra farta e em festa.
O nevoeiro ficara para traz, um resto dele levara-o o Mondego, sepultado no seu vale; Leopoldo ergueu-se no carro, entusiasmado e tocado na alma por aquele cenário virgiliano; eu tirei o chapéu,
numa saudação muda à Natureza que tão amorosamente nos recebia; o Sr. Erse triunfou; e até os cavalos, velhas pilecas galvanizadas por aquela repentina ducha de sol em pleno lombo, relincharam e abriram num vitorioso galope, entre os dois
renques de tílias que perfumavam, a estrada.
- Em verdade vos digo, meus caros, que esta
«é a terra mais formosa e linda que ondas do mar e luz do luar viram ainda!»
- Principalmente assim, em pleno campo e com um sol destes. Oh, Portugal pequenino...
- ... que és doce aos pequeninos! rematei eu, cioso da citação do meu Eça.
- Aqui chegamos nós...
- ...a S. Frutuoso! concluí, não menos; caprichoso conhecedor de todos estes benditos lugares, por onde a minha primeira mocidade tantas vezes passou, para Coimbra ou para a Terra, ora cismática e acabrunhada, à ideia das aulas e dum Pereirinha
que reprovava toda a gente, ora jubilosa, iniciando festivas temporadas de férias e de romarias...
- Quê! Pois ainda te lembras?
Também não darei aos meus leitores as razões especiais e de longa exposição, por que este Sr. Erse me tratava por tu.
- Lembro, naturalmente. Há catorze anos apenas... Mas foi esta semana, foi ontem! Olha, é ali, defronte da Muda e da venda, que o carro vai parar. E há-de vir-nos à portinhola um rapazola vesgo, com uma perna torta, todo ele torto, pedindo
cinco reizinhos pelas almas. Que digo eu? Cá está ele.
O mendigo precipitou-se, arrastando a perna, revirando o olho, já de garra estendida para nos abrir a portinhola, caso quiséssemos apear, «molhar a palavra». Só o cocheiro a foi molhar, pulando como um catita da almofada e enfiando pela venda
com o chapéu mais para traz e um «ora, viva!» à vendaras enxovalhadinha, esfarrapadinha, um filho ao colo e dois agarrados à saia. O vesgo abria agora a mão, repetindo uns palavreados surdos, em que as palavras «Nosso Senhor» e «saúde» e
«alminhas» se embrulhavam, num resmungo de súplica, alvoroçado pela esperança de esmola grossa.
Demos-lhe um vintém; alteou-se-lhe a voz, a lamúria saiu-lhe mais forte e explicada da boca pedinchona; e deixou-se ficar ali mesmo, a bambolear-se sobre a perna mole, não se fartando de passear
pelas nossas figuras o olhar pasmado e idiota.
- Olha lá, há quantos anos pedes tu esmola aqui, na Muda?
- Eu sei, meu senhor... Desde criança. Há-de haver um quarteirão, para riba que não para baixo.
- E nunca daqui saíste?
- Ná. Então para onde? Com estes trabalhinhos que Deus me deu...
Os trabalhinhos eram a perna, o olho...
- Olha lá, e conheces-me?
- Pois eu bem me estou a querer lembrar! Sim, mas... O senhor não é um que andava em Coimbra o depois foi para o Brasil?
- Talvez, talvez. Mas, já lá vão não sei quantos anos e tu estás a mesma coisa, não envelheceste, não emagreceste, não engordaste... Grande patife!
Isto de certo o lisonjeou; abriu-se-lhe um riso consolado, no carão alvar.
- Então, meu senhor; erva ruim não a cresta a geada!
Silvou o pingalim, de novo os cavalos largaram. Dali por diante, a paisagem oferecia-me o especial encanto duma série de quadros familiares: voltas de rio, onde se fizeram pescarias; ermidas, onde se ouviram sermões; arraiais, onde se dançou;
lombos de serra que se percorreram, atrás, das lebres e das perdizes; sombras de carvalheiras, onde se merendou e se fizeram os magustos de Novembro, com sobremesa de medronhos e infusas de vinho novo, correndo de mão em mão... Oh, sim! Eu
conhecia aquilo a palmos, designava os lugares pelos seus nomes poéticos ou pitorescos, conhecia as caras que assomavam às janelas dos casebres, atraídas pelo rodar daquele carro de luxo.
Aos muitos lavradores que sachavam as "terras de revolta"ou mondavam a vinha exuberante e que, à nossa passagem, tiravam o barrete, gritando de lá o velho "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!"gritava eu as alcunhas de família, àqueles
joviais baptismos que vêm de pais a filhos e muitas gerações, a designar dinastias, como recordações históricas. Leopoldo mostrava-se maravilhado da firmeza e da frescura da minha memória; e o Sr. João Erse, esse, então, chegava a sentir-se
vexado pelos quinaus que eu lhe dava, eu, há catorze anos lá por fora, a ele, que vivia a meio dia de viagem e todos os Natais e S. Joões vinha comer o porco ou trincar as cerejas do lar.
- Agora, é Foz de Arouce o a ponte histórica, da qual tantos Franceses se precipitaram nas águas patrióticas do Ceira, a meio duma escaramuça e pela infernal estratégia dos guerreiros lusitanos. Cá está a ponte; olha, Leopoldo, vê que fundura,
que negrume, foi um batalhão inteiro!
Surgiu-nos depois a Póvoa, o muro da quinta do Conselheiro Ferrer (cujas obras de Direito, informei, também no Brasil se estudam ainda hoje) e, finalmente, a recta de três quilómetros, com um grande pinheiro manso ao meio, a qual, dali a meia
hora, havia de dar connosco na Lousã. Senti então uma destas comoções absurdas, indefiníveis, que a gente não sabe se são de pura alegria, ou de profunda dor.
Encolhi-me no fundo do carro; as arvores fugiam à direita e à esquerda, mas eu tinha a sensação de não avançar; o carro rodava no mesmo sítio sem ruído, sem solavancos, como no ar... Os companheiros tinham-se também calado; parecia-me que tudo
parara em volta, tudo se imobilizara e emudecera, à espera dum cataclismo, um golpe da Fatalidade! Na minha indizível ânsia, era como se aquilo se devesse prolongar infinitamente e, depois de tamanha travessia, tantas léguas percorridas, tantos
dias e noites andadas, me sobreviesse de repente e ali tão perto, a condenação de nunca mais chegar!
De repente, o carro entrou a solavancar; era a rua, a vila, a Terra! Foi um choque, senti-me voltar a mim; uma grande doçura, um grande consolo me invadia, ao cabo de tão amargo e tormentoso pesadelo. Agora, as casas afiguravam-se-me
pequeninas, as ruas curtas, o rodar do landau perfeitamente vertiginoso. À porta de casa, povaréu, banda de música; salto do carro, chovem-me abraços em cima; o homem do trombone - que aprendeu o a b c comigo perde a compostura e, num berro,
atira o boné ao ar. Galgo a escada, grito:
- Onde está ela? Onde está ela ?
Aparece-me então uma velhinha, de preto, com a cabeça toda branca, a soluçar. Tão velhinha, tão branquinha...
Mas, não eram os seus cabelos brancos que a faziam chorar. Eram os meus!
Fausto Gonçalves
Fausto Gonçalves, cognominado o "pintor de Coimbra", era um apaixonado da sua terra e da arte com que a servia, copiando-lhe os aspectos, traduzindo-lhe a beleza, interpretando-lhe a poesia. Andava ao redor dela, como um namorado ardente e
suspiroso, uma espécie de trovador do pincel que, em vez de a louvar na música das serenatas, a exaltasse no colorido das paisagens.
Nesses devaneios de amoroso que ronda, espreita, implora e se inflama e se arrebata, ia o artista repartindo o seu sonho em quadros que eram outras tantas declarações aos pés da beldade eleita.
Assim ele pintava as velhas igrejas cada vez mais rijas e airosas: os claustros em que paira um silêncio secular e onde as trepadeiras dão a impressão de permanentemente floridas desde os primeiros
dias do Reino; e as margens do rio, com os seus laranjais, os seus olivedos, o seu choupal; e o Penedo da Saudade, onde a gente tem saudades de tudo o que amou e viu de belo na vida; e o Penedo da Meditação, onde o homem mais rude ou distraído
sente na alma um pouco da alma de Antero de Quental; e as ladeiras que o Hilário subiu, cantando, e António Nobre, gemendo...
Tudo isso o pintor estudava, surpreendia e com a sua ternura devota nos comunicava, de coração a coração. Ver os quadros de Fausto Gonçalves era ver Coimbra. Neles, Coimbra se retractava - como no
Mondego.
Quando o artista deixava de celebrar Coimbra, era para nos mostrar as vilas e aldeias ao redor - como o poeta que, tendo cantado as graças duma rainha, se detivesse a contemplar cada uma das suas damas de honor. Na sucessão dos trabalhos de
Fausto Gonçalves passam sítios de Penacova, Condeixa, Lousã, Tentugal, solares antigos, doces Misericórdias, voltas de rio e de estrada, lugarejos suavemente aninhados ao sol bendito de Portugal ...
É Coimbra que se prolonga e se reparte, com a sua inesgotável riqueza de alegria e de pitoresco. Assim Fausto Gonçalves a adorava e cultuava, até nos seus reflexos distantes e na sombra do seu
esplendor Assim ele pagou o seu tributo de estudante. Pintar foi a sua maneira de tocar guitarra.
PAD'ZÉ
SUICIDOU-SE, num dos primeiros dias deste mês em Lisboa, o homem mais alegre de Portugal. Se de facto o não era, gozava positivamente dessa fama e desse prestígio únicos. Onde quer que o seu nome fosse citado, um chorrilho esfuziante de
anedotas, ditos, epigramas, episódios de farsa boémia e réplicas de opereta à Gervásio Lobato, se desencadeava e jorrava na conversação, interminavelmente. Desde que se faltava dele, não se falava de mais ninguém.
Toda a gente conhecia as suas "partidas", sabia de cor as suas pilhérias, lhe podia historiar a vida inteira, não talvez como realmente ela houvesse sido, mas como a haviam popularizado pelo país
além [d]os biógrafos inumeráveis e anónimos do herói sem par.
Era um tipo nacional, uma figura que adquirira a majestade culminante dos símbolos. O que sobretudo o tornara célebre e incomparavelmente admirado, fora o radioso destaque logrado pela sua individualidade no meio e época, tão diversos dela.
Numa sociedade que se tornara macambúzia à força de lhe chamarem triste, de lhe repetirem as suas tradições de fatalismo poético e lendário: numa quadra agoniada de lutas violentas, de rancores
tenebrosos, de desesperos e misérias de toda a sorte - essa criatura de estouvamento e de riso, escandalosamente jovial e sublimemente despreocupada de tudo, surgiu na vida portuguesa, com o efeito surpreendente, que, num cenário de tragédia,
carregado de maus presságios, faria a aparição dum folião de carnaval, cheio de guizos.
Toda a gente que assistia à peça, sentiu o choque de tão pitoresca incoerência; para os espectadores que aflitivamente acompanhavam o enredo, tremendo pela sorte dos personagens e adivinhando o morticínio do quinto acto, inevitável em tal
género teatral, aquilo foi uma salvação, um milagre; num momento, toda a treva se rasgou e todo o pesadelo se desfez; e o público apreensivo, martirizado, gemebundo, deixou-se cair para o lado, a gargalhar perdidamente...
Tal foi o advento do herói, na arena mais favorável, à sua evidência deslumbradora. Em tal sociedade e em tal tempo, havia de forçosamente empolgar, de pronto, as atenções e conquistas, de um só golpe a notoriedade. Era moço, era alegre; e
assim se erguia sobre a terra velha e taciturna... Dir-se-ia a ressurreição magnífica dum Portugal há muito tempo sepulto, que ninguém conhecera, mas do qual toda a gente curtia a ansiosa e inconsolável saudade...
O prodígio ecoou em todo o reino; e todo o reino entrou a adorar, a louvar esse espírito peregrino e bem-fadado que vinha talvez cumprir uma alta missão redentora: a missão de reanimar nos outros
espíritos a chama de esperança e de júbilo, que para sempre se julgara extinta; reerguer da sua lúgubre atonia as almas sem coragem e sem fé; semear a alegria, espalhar a luz, distribuir a ilusão... Sim, tudo se podia esperar desse homem
extraordinário, esse ser quase divino, esse português que ria!
Era o Pad' Zé. Chamava-se Alberto António da Silva Costa e como a sua primeira educação se fizera num estabelecimento religioso, haviam-lhe dado, em Coimbra, aquela alcunha sacerdotal. Não trouxera, pois, para a Lusa-Atenas, o nome de José nem
se alistara entre os "ursos"macerados e sorumbáticos do curso de Teologia; e pela irreverência do seu temperamento, e pela vivacidade da sua inteligência, era, afinal, tudo quanto lia de menos Pad' e de menos Zé...
Mas a alcunha pegou e popularizou-se, como se o definisse e tudo dissesse dele. Na cidade dos estudantes, onde só os muito apagados e muito insípidos passam sem o seu baptismo de guerra, Alberto
António da Silva Costa foi bem depressa um nome condenado e esquecido. Logo no seu primeiro ano de Direito, o estudante do Fundão passou a ser Pad' Zé para toda a gente - para os condiscípulos, está claro, para os credores, para a servente da
República, para a admiração enternecida das tricanas, para o respeito rancoroso dos futricas.
Conta-se que até mesmo um lente, por sinal o mais, casmurro feroz da Faculdade, ao chamá-lo à lição atirou, certo dia, do alto da cátedra, o cognome famoso e irresistível, num vozeirão de abalar,
nos alicerces vetustos, todo o edifício universitário: "Senhor ... Pad' Zé!"Foi, na aula, uma gargalhada fenomenal; e foi a consagração oficial e catedrática daquela suprema gloria coimbrã. Pad' Zé ficava para sempre Pad' Zé.
Que fazia ele, entretanto, na velha cidade da Linda Inês e dos lindos bacharéis? Além dos seus estudos, pouco mais coisas que outros estudantes não fizessem.
Passeava, de capa ao ombro e cabeleira ao vento, pelas ruas da Baixa; ia, nos dias feriados, parodiar os poetas da geração de João de Lemos, entre os chorões patéticos da Lapa dos Esteios ou do alto
do Penedo da Meditação; ceava a crédito; acompanhava serenatas; entrava de vez em quando em bulhas, com os senhores "artistas"; catrapiscava as criadas de servir que vão encher os cântaros ao Mondego, cantando quadras de António Nobre com
música do Hilário; e soltava piadas, e contava anedotas.
Mas aí, nas anedotas e nas piadas, é que a sua reputação se firmou eternamente e o seu triunfo se tornou absoluto. Ele possuía, no mais alto grau, o talento a piada e adquirira na anedota uma
mestria inconfundível.
Chegou a criar-se uma originalidade, como narrador dessas historietas endiabradas, em cujos episódios fugazes, lentes e estudantes passavam, em vivos perfis hilariantes, cada qual com a sua fraqueza, a sua falha, o seu ridículo; e ninguém como
ele para apanhar, adivinhar essa feição grotesca e desastrada que existe fatalmente em cada indivíduo e toda a gente trata de esconder ou disfarçar.
Para ele, não tinha segredo a sapiência prestigiosa dos mestres, nem o espírito audacioso dos condiscípulos; os seus olhos penetravam o mistério dos cérebros, para descobrir lá dentro os destemperos
a que a razão humana, mesmo a mais equilibrada e viva, anda sujeita; e os seus ouvidos vinham por força cair as sandices que todos os lábios deixam escapar, num dado momento, inevitavelmente.
Assim ele foi compilando e organizando o seu famoso Livro do Doutor Assis, o qual, uma vez publicado, voou em edições sucessivas e invadiu o país inteiro, levando ás aldeias mais remotas e aos lugarejos mais obscuros as tolices e destampatórios
da admirabilíssima Lusa Atenas, augusta mãe de doutores, maravilhosa e inesgotável criadora de sábios de toda a espécie.
É o próprio autor que no-lo explica: O Dr. Assis não representa um só homem, não copia uma individualidade; reúne e condensa a genialidade coimbrã, a sapiência universitária, todos os lentes, todos
os compêndios, todas as prelecções e todas as "sebentas", numa caricatura única de catedrático ilustre, pedantescamente aprumado, sob a borla e o capelo tradicionais, estendendo o gesto professoral ás gerações estudiosas e distribuindo a lição
secular de que se nutre a inteligência do reino ...
E dir-se-ía, com efeito, que, no livro de Pad' Zé, se encontram, sem omissão duma só, todas as asneiras que dos píncaros da Alta têm desabado e no vale do Mondego têm ecoado, desde D. Dinis até
nossos dias.
Foi essa obra excêntrica e desopilante que levou à Capital e ás províncias a notícia ditosa de ter aparecido o Pad' Zé e despertou em todo o Portugal aquela sensação de celestial delícia, de consolo e de alívio, com que o povo começava a
julgar-se ainda capaz de achar graça a alguma coisa e gozar momentos de verdadeira despreocupação e, por conseguinte, de ventura perfeita.
Pois bem; por esse tempo, decidira justamente o Pad' Zé deixar de ser Pad' Zé; o Dr. Alberto Costa, formado logo após a publicação do livro, queria tomar o lugar daquele boémio e daquele piadista; e
era forçoso, indispensável, que o autor do Dr. Assis desaparecesse, para que o Bacharel em Direito entrasse a advogar e fazer pela vida.
Pad' Zé ofereceu, então, uma ceia aos seus condiscípulos, ceia de despedida, de suicídio e de enterro. Contou ali as últimas historietas e atribuiu ao pobre Dr. Assis as últimas necedades; a sua vida tumultuosa e crepitante expandiu-se numa
crise de exibição derradeira, no desespero dum adeus para sempre, ao êxito e à fama que no dia seguinte começariam a morrer; Pad' Zé foi, nessa noite, fenomenalmente pilhérico e satírico, excedeu-se si próprio e porventura a si próprio se
espantou, pelo exagero da própria alegria, levada ao paroxismo, e ao delírio...
Por fim, levantou-se, empunhou a taça, já comovido, e proferiu solenemente a sentença que condenava a sua mocidade, o seu estouvamento, a sua verve e a sua glória. A sua voz velava-se de amargura, nessa elegia saudosa dum passado, tão amável,
tão doce, e que ele se sentia obrigado a sepultar e abandonar; pela primeira vez na sua vida, falava a sério; tinha lágrimas nos olhos... E todos os convivas riam!
Ali, não! o Pad' Zé não ficou ali, à mesa daquela ceia, cujo último brinde o devia fulminar. Saiu do banquete, integral e evidente; em plena vida e pleno triunfo, saiu de Coimbra, marchou para o trabalho, para a luta, para a "vida positiva", a
que Alberto Costa quisera entregar-se sozinho, com a própria capacidade e o próprio esforço, sem esse companheiro embaraçoso e adverso que o comprometeria, lhe inutilizaria cada empreendimento e lhe cercearia cada aspiração. E em breve, com
efeito, o companheiro importuno se tornou um perseguidor, um inimigo, um carrasco. Hoffman, com toda a perversidade monstruosa da sua imaginação, não concebeu maior suplício, mais torvo e agónico desespero.
Um desgraçado que se sente incapaz de enfrentar todas as lutas sérias da inteligência e do trabalho e ao mesmo tempo sente, agarrando-se-lhe à ilharga a desdobrar-lhe a personalidade, a macaquear-lhe cada pensamento e cada gesto, um histrião
incorrigível para o qual se voltam todos os olhos e convergem todas as atenções... Um sonhador e um combatente, um forte e um austero, um homem, em suma, que não pôde arredar de si o fantoche cruel que lhe jurou guerra de morte e a cada momento
vibra contra ele as armas invencíveis do ridículo... E agora, sentenciado do calembour, grilheta da chalaça, caminha!
Tendo aberto banca de advogado em Lisboa, longo tempo Alberto Costa esperou a primeira causa, o primeiro cliente. Toda a gente se mostrava disposta a aplaudir-lhe as graçolas, ninguém pensava em aproveitar-lhe a advocacia...
Um dia, finalmente, arranjaram-lhe uma defesa, no Tribunal da Boa Hora. Audiência de sensação; apinhadas as galerias; silêncio religioso na sala. "O Pad'Zé vai falar! Esperem! Escutem! O grande Pad'
Zé! O inigualável Pad' Zé!"
Imagine-se o tormento do pobre advogado; a energia, que acumulou, o sacrifício a que se entregou, para se impor àquela assembleia, predisposta a ouvir os trocadilhos e as chacotas do seu passado
inaudito... E talvez ele se tivesse apaixonado pela causa, e talvez se julgasse investido da sagrada missão de evitar uma injustiça, desviar de sobre um inocente o castigo cego e iníquo... Mas quando Alberto Costa abriu a boca, os fanáticos do
Pad'Zé desataram à gargalhada!
Entregou-se depois francamente à política. Trouxe para a arena as suas antigas e sinceras ideias de republicano e entrou a combater como os mais valentes, os mais briosos, os mais abnegados. A alma de revolucionário que sempre nele vivera,
sentiu-se soberbamente livre, armada de toda a sua força, toda a sua fé. Alberto Costa tornou-se um propagandista inflamado e incansável; orava em todos os comícios, queria a revolução, a cada passo oferecia a vida pela causa. E um dia, num
motim de rua, quando o povo era estupidamente acutilado pela Guarda Municipal, atirou-se contra a soldadesca, para morrer com um viva à Republica. Abriram-lhe a cabeça, alanharam-no, foi dali para o hospital, cheio de sangue e sem acordo. E no
dia seguinte, Lisboa e o país de certo acharam imenso chiste a mais essa "partida" do incorrigível Pad' Zé...
Porque se mataria ele, afinal? Não o disseram os telegramas, não o diz agora o Correio de Lisboa. O Mundo, onde Alberto Costa trabalhava nos últimos tempos, desmente todas as versões propaladas sobre esse suicídio inesperado e inverosímil. Nem
política, nem amores, nem dinheiro - não houve razão alguma. Alberto Costa suicidou-se sem ter por que. Pelo menos, o Mundo não diz que o motivo da morte de Alberto Costa foi-o Pad' Zé...
E, coisa impressionante, coisa, na verdade, perturbadora, João Chagas afirma, em uma crónica, que viu no enterro do pobre herói malsinado - quem, Senhor? - o Dr. Assis! O Dr. Assis estavam a uma esquina, comovido, formalizado, e quando o
féretro passou por diante dele, teve esta frase profunda:
- Mais um batalhador a menos!
Assim Pad' Zé se conservou Pad' Zé, mesmo depois de morto, porque teve ao lado, a lamentá-lo, aquela sua criatura, fiel, devotada e tão inevitável como o camelo irrisório que acompanhou de Alger a Tarascon o imorredouro Tartarin de Daudet. E
se, como alguns doutrinadores supõem, as almas pairam certo tempo sobre o corpo que abandonaram, a do Pad' Zé sem dúvida se contorceu na derradeira risada sobre essa calinada derradeira! |
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