GALERIA - A partir de quarta-feira, Pinacoteca recebe exposição do
pintor santista Mário Gruber
Foto: arquivo, publicada com a matéria, na página A-1
Mário Gruber
Naturalmente entre a terra e os anjos
De banho recém-tomado, cigarrilha em punho e cara de poucos amigos, o pintor e gravador santista falou de Mário Gruber
Vera Leon
Editora de Cultura
O
cheiro bom do macarrão à bolonhesa invade a sala e reluto um bocado até dizer não ao convite que me faz Mário Gruber para almoçar com ele, no
começo da tarde de uma segunda-feira paulistana. Não foi nem para posar de moça educada que não aceitei. É que a fome era dele (e muita),
anunciada várias vezes até que o prato fumegante (cheio) se materializasse à sua frente.
"Mas… e por que não tem feijão"? Parecia incompatível que um prato de macarrão estivesse completo sem, pelo menos, um caldinho de feijão. "Não, 'seo'
Mário, o sr. Disse que hoje queria macarrão e não se come isso com feijão", contesta a jovem Paula, a morena bonita que zela para que a fome não
devore esse santista de um outro século e de outras marés.
Penso que pessoas assim, cheias de apetite, levam a vida com a mesma voracidade: amam, contestam, criam, silenciam, negam e fazem tudo sempre no
superlativo. Aos 83 anos, Mário Gruber levou pelo menos os últimos 60 a pintar telas e bordar a realidade. Diz que ainda hoje "aceita a aventura
de viver", embora os dias lhe tragam uma certa preguiça, um gosto por fazer-se companhia, "ainda que eu não seja o maior sucesso de
relacionamento", vai logo avisando.
Talvez porque se ache "meio esquisito desde pequeno". No entanto, mesmo não sabendo "o que é ser normal", ele cumpriu na vida aquilo que se espera
de um homem normal: amou, casou, descasou (com cinco uniões no currículo, confessa que a vida amorosa foi muito tumultuada), pôs filhos
no mundo, ganhou netos, se entregou aos prazeres, aos riscos e hoje se encanta ainda com o divino. Neste momento, o divino se manifesta na
pequena Júlia, filha de Paula, dois anos de fofura morena, trancinhas sacudindo e toda a curiosidade da inocência.
EXPOSIÇÃO |
36 obras compõem a mostra Anjos da Renascença
Brasileira |
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Um velho tema tão
banal – Não sei se por conta do segundo prato de macarrão e de uma tigelinha de coalhada, o certo é que ele diz que tem a sensação de ser
indestrutível, "até que a morte venha nos pegar". Faz longos silêncios e me pergunto aonde ele vai nesse tempo fugidio. Parece que faz as contas
e volta do infinito dizendo que vai chegar a 112 anos, "porque nada pinta no panorama que seja uma realidade da morte". Mesmo com esse acerto
que Gruber fez com Cronos, o senhor do Tempo, ele admite uma verdade que também é de todo ser humano normal: "todo dia penso nela".
Tem certeza de que vai "morrer um velho sábio", e anda se informando sobre um questionável vir a ser. Não assume totalmente, mas parece partilhar
da observação de alguns espiritualistas que dizem existir, "lá do outro lado", um mundo também físico, onde seremos assim, tal qual os corpos
que se agitam nas poltronas da sala. A sabedoria do velho não resiste a uma preocupação bem mundana. "Como será usar sapatos por lá? Vou gostar
de andar ligeirinho".
Já não anda ligeirinho há algum tempo. Esteve doente, fraquinho, com os médicos dizendo que tinha um câncer, "mas não dei a menor bola, não
acreditei em nada e, pelo contrário, fiquei concentrando minhas forças". Por recusar-se à doença, diz que se livrou do diagnóstico, não se
vitimizou, mas balançou: "tenho meus métodos de cura, de usar meu poder mental, mas desta vez sacudi um pouco". Valeu-se do instinto, também, e
garante que esta energia o orienta, ainda que as pessoas não entendam uma natureza mais instintiva, que come quando tem fome e de tudo. "Até
lagarto frito", ameaça.
INTUIÇÃO |
"Vou entrar numa fase importantíssima,
que vem como uma tempestade e vai agitar tudo. São meus momentos finais de vida" |
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Anjos da anunciação – Para ficar mais forte, diz que precisa comer tutano e preparar-se, "porque vou entrar numa fase importantíssima, que vem como uma tempestade e
vai agitar tudo. São meus momentos finais de vida". Por enquanto, assume que os dias se arrastam numa letargia que não é totalmente ruim, dada
aquela preguiça humana que o namora insistentemente, mas pressente que isso está por terminar e não falta anunciação.
Ser empurrado por forças poderosas não é nenhuma novidade para Mário Gruber. Sempre foi assim, diz ele, mas garante que tem ficado mais intenso
com a idade. Nessa hora, com uma cigarrilha Talvis que descasca como uma cebola, fica totalmente enigmático, me vigia meio de canto de olho e
pondera (com ele mesmo) se mereço saber mais do que sei.
Aos poucos, vai soltando algo que parece um segredo. Que tem sonhado com anjos e que vive rodeado de mistérios. "Atraio anjos e os meus são
diferentes. Eles vêm e vão, e preciso abrir um espaço para eles entrarem, para que se cumpra o que espero há uns 15 anos e que é inexorável".
Sabe que me impressionou e, por isso mesmo, se cala. Não vai me fazer íntima assim, de uma vez e para sempre.
Nem se acanha em dizer que ele mesmo atrasa esse momento apoteótico, por causa da preguiça. E arremata, com um comentário que pode causar polêmica
na terra nossa: "Sou o típico santista: se me largam numa praia, eu fico". E engata a pescar uma lembrança, desperta a memória para a praia do
José Menino, por onde andou menino e cresceu para descobrir que aquele mar tinha cheiro de prazer. Prazer carnal, frisa bem, e de outras lições
mais. "Minha cultura aprendi no mar, fazendo a leitura das ondas". Sábio homem!...
… Recorda da Vila Mathias, significativa, "porque ali experimentei meus medos de tempestade", a brincadeira
com os caramujos na areia e a maioridade no cassino da Ilha Porchat. "Vivia no meio das bailarinas", o
moço bonito que virou atleta de competição depois que se dedicou a nadar. E quando aprendeu, já não dava a menor bola para as tempestades.
O homem espera, sem pressa alguma, que a preguiça dê lugar ao
processo criativo, para que o artista volte a pegar os pincéis e leve para as telas as formas e cores de um novo momento
Foto: arquivo, publicada com a matéria
Ele, os outros e os
outros – Ainda bem que se tornou fortão e que a personalidade desafiadora era sua marca, porque durante os 20 anos que militou no Partido Comunista
Brasileiro precisou ser muito esperto, ligeiro e bom de conversa. Se não, como sobreviver àqueles tempos em que se "corria risco de vida
diariamente"? No seu ateliê de então, circulavam os dois lados da realidade política: os que mandavam e os que não obedeciam. Ele, como bom
artista, convencia todos.
Vida intensa, cheia de dribles, porque além de ser perigosa, diz ele, a militância também interferia no seu ritmo de trabalho. Todos os amigos
dentro do movimento tiveram um fim trágico, "mas eu mesmo nunca fui preso… brasileiro tinha mania de quere ser preso para se transformar em
herói". Como toda paixão, essa também chegou ao fim. E como toda paixão, deixou saudade. Depois corrige: "saudade, não… mas eu me sentia vivo,
exigia de mim uma presença forte, prontidão todo o tempo".
Agora, os dias passam sem esse sentido de alerta, e ele espera, recostado na poltrona, que seja tomado por um incontido desejo de criar outra vez.
Mesmo os anjos que passam pra lá e pra cá – "é fácil desarmar um anjo… é só jogar bolinhas para eles" – não trazem para Mário Gruber qualquer
sobressalto. Convivem com ele há tanto tempo que hoje, me diz, "só preciso de um espanador mágico para tirar o pó de suas asas".
Só ele enxerga o pó. Também, pudera, só ele enxerga os anjos. Mesmo assim, deve achar que sou uma iniciada, pois me convida para voltar. Primeiro,
acertamos o inadiável e profano: uma dobradinha – "bucho, como se dizia antigamente" – daquelas literalmente à moda da casa, seguida de papos de
anjo. Aliás, sobremesa mais que inserida.
Só então avisa que eu venha de óculos escuros, "Porque é muita luz". E me tranqüiliza quanto a esse magnífico momento de cumplicidade. "Você vai
ver. O bater de asas é como um suave abrir de guarda-chuva".
Não tenho por que duvidar.
Mário Gruber em seu ateliê
Foto publicada com a matéria
Do José Menino para o mundo
A praia
do José Menino, nos idos de 1927, era deserta, cercada de vegetação, mas nada disso intimidava o pequeno Mário, que descobriu logo cedo a
areia fofa, aventurando-se por ali ao lado da irmã Sônia. Nasceu naquele ano, no dia 30 de maio, em uma casa de portas muito altas, imponentes,
onde Ernesto Gomes Correia e Inah Gruber Correia, seus pais, davam as ordens.
Ele tinha apenas 5 anos de idade quando
seu pai, que era contador do Fórum, resolveu se alistar no Forte de Itaipu, como voluntário, na
Revolução Constitucionalista de 1932.
Estudou no
Colégio Santista e no Instituto de Educação Canadá, mas era no Clube de
Regatas Saldanha da Gama que ele dava suas braçadas, aprendendo remo e natação. É nesse ambiente totalmente esportivo que Gruber toma
contato com aquilo que se tornaria seu ofício e devoção: a arte.
Conhece o escultor Arrigo Battendieri, de
quem se torna companheiro de remo e que lhe põe nas mãos, literalmente, a massa que construiria seus propósitos. Com argila, Gruber faz os
bustos de Thomas Jefferson e de Abraham Lincoln, enfronhado que estava a ler sobre a Revolução Francesa e os ideais norte-americanos. Não tardou
para descobrir a pintura, sem se orientar por escolas ou qualquer outra ordem.
Começava a década de 1940 e ele conhece
Nélson Andrade, a quem se une para montar um estúdio no centro da cidade. Nasciam, assim, os primeiros artistas modernos de Santos, mas a obra
de Andrade não chegou a ser conhecida, devido ao seu prematuro desaparecimento.
Outras fontes de inspiração foram chegando
à vida de Gruber e ele conhece os trabalhos de Eliseu Visconti, Bonington e Alfred Sisley. Estuda as obras e lê livros e revistas de arte e, ao
se deparar com o impressionismo, percebe que já fazia isso intuitivamente, na maneira como observava e reproduzia a natureza.
O ano de 1945 foi marcante, porque ele
descobre a gravura em metal, apaixona-se pela técnica e passa a pesquisar muito. Em uma passagem por Araraquara, conhece Antonio Cândido de
Mello e Souza, que se interessa por seus quadros e o apresenta a Sérgio Milliet. A primeira exposição de Mário Gruber acontece exatamente aí, no
I Salão Araraquarense.
Como na música, Gruber já tinha régua e
compasso e, com o apoio do pai, em 1946 fez seu rito de passagem para um mundo maior. Deixou Santos, foi para São Paulo, onde passou a estudar e
a pintar em praça pública. Nesse período, conhece Mário Zanini e Aldo Bonadei, trabalhou com Di Cavalcanti e estudou gravura com Poty Lazzarotto.
Entre o boteco em frente à Praça do
Correio e as reuniões na casa de Osório César, ele se junta à fina flor da intelectualidade: Otávio Araújo, Marcelo Grassmann, Luís Saciloto,
Luis Andreatini, que compunham o grupo expressionista, e mais Aldemir Martins. Aos 20 anos, já era um profissional e com 22 viaja para Paris,
aluno da École Nationale Superière de Beaux-Arts.
Quando voltou ao Brasil, em 1951, se
instalou em Santos e aqui criou o Clube de Arte, sem deixar São Paulo. Na Capital, passou a lecionar gravura na Escola de Artesanato do Museu de
Arte Moderna. Atravessou a fronteira mais uma vez em 1953, convocado pela poetisa Gabriela Mistral, pelo escritor Pablo Neruda e pelo pintor
Diego Rivera, para participar como delegado no I Congresso Continental de Cultura, no Chile.
Mário Gruber começou a acumular prêmios no
início dos anos 60, com exposições nacionais e internacionais. É tão expressiva a estatura artística de Gruber que ele acaba inspirando outras
expressões da arte. Vira tema de cinema, em um curta-metragem dirigido por Rubens Biáfora, exibido no Festival de Cinema de Veneza, em 1967,
ganhador do Prêmio Governador do Estado.
Autorretrato,
óleo sobre tela, 1946
Imagem publicada com a matéria
Da Renascença para a Pinacoteca
Ao longo de sua carreira, a arte de Mário Gruber ganhou manifestações na pintura e na gravura, mas os anjos mobilizaram extraordinariamente o
interesse de colecionadores e apreciadores do trabalho singular do artista. Uma parte dessa produção, que conta um pouco da sua fantástica
trajetória, estará ao alcance dos olhos sensíveis da Cidade.
A partir desta quarta, 21, na Pinacoteca Benedicto Calixto, está exposto um conjunto de 36 obras que abrangem
40 anos de produção artística desse autodidata em pintura e expressão de grandeza na gravura em metal. A inauguração da mostra está marcada para
as 20 horas.
Os anjos que povoam o universo de Mário Gruber ganharam as telas e se mostram como Anjos da Renascença Brasileira, em exposição que tem a
curadoria de Fábio Magalhães. O primeiro anjo a tirar do lugar suas telas e tintas apareceu em 1969, tempos duros de um regime militar que
Gruber sentiu na pele, já que a repressão à manifestação artística era uma das marcas da ditadura. Ele interpretou os anjos pintados naquele
período com um ar atemorizador. Depois, quando os ventos da liberdade começaram a soprar, o perfil de medo cedeu lugar ao lirismo e à leveza.
A renascença de
Gruber – Em 1980, em entrevista a A Tribuna, Gruber explicou: "O anjo da Renascença Brasileira é uma tentativa simples e irônica: ponho uma asa
de lata e um cinto de castidade, também de lata, boiando no espaço como um balão. É a busca do oposto ao anjo renascentista, cujas partes
pudentas os papas mandavam cobrir com um paninho. A delicadeza dos papas e a repressão típica brasileira são formas de traduzir o caráter
xenófobo e moralista que existe na realidade atual".
"A técnica de meu anjo renascentista parece-se com Rembrandt, para criar um clima de intriga: eu sou tão bom como Rembrandt, mas expresso outra
coisa, uma forma de ironia.
"Seria como se eu estivesse nas naves dos portugueses, quando vieram ao Brasil trazendo miçangas, espelhinhos e outras coisas para seduzir o nosso
índio, que acabou dando pau-brasil, numa forma muito desigual. Eu também trago um espelhinho, mas não troco; entro em confronto com o
civilizador, não tenho a tutela dos mestres porque sou um mestre também".
Os quadros que compõem a exposição não estarão à venda, mas podem ser vistos diariamente, de terça-feira a domingo, das 14 às 19 horas, até o dia
21 de agosto, quando se encerra. A entrada é gratuita e o endereço da Pinacoteca é Avenida Bartolomeu de Gusmão, 15, no
bairro do Boqueirão.
Os Noivas, gravura, 1997
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Lantejoulas, óleo sobre tela, 1981
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Gravura sem referência de data
(N.E.: seria explicado depois em seu perfil no Facebook: "gravura que representa a chegada de seu
filho Gregório, pois quando Mário e Léa voltaram da Europa, ela estava grávida")
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