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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (09)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Morreu Wu-pei-ho!

O primeiro-secretário pôs-se a discar o fone, na sala de leitura, onde havia um único sócio, dormindo de boca aberta: o sr. Lopes Gomes, da divisão S.A.

Vejamos os estatutos: S.A. - Sempre Alerta! O sócio desta divisão deverá estar sempre atento ao sofrimento dos seus semelhantes, a fim de informar ao Clube, que tomará as providências ao seu alcance, em favor dos sofredores. Sempre alerta, pois!

O primeiro-secretário sacudiu o sr. Lopes Gomes, divisão S.A., por três vezes, e quando o viu de olhos abertos agitou diante deles um telegrama: Wu-Pei-Ho morreu! Wu-Pei-Ho morreu!

O sr. Gomes bocejou, estirou os braços, e compreendeu afinal as palavras que os ouvidos tinham captado havia alguns segundos: Wu-Pei-Ho morreu!

Como bom sócio do Utopian, disse imediatamente: coitadinho! Depois perguntou: quem é Wu-Pei-Ho?

O primeiro-secretário explicou: não sei. O telegrama é da seção do Rio, veja - e leu - Utopian Club Rio tem profundo pesar comunicar confrade Santos falecimento grande Wu-Pei-Ho ponto Esperamos Utopian Santos se associe manifestações dor infausto passamento ponto Tudo pelo próximo e fraternidade ponto Alvaralhão secretário.

O sr. Lopes Gomes, sócio da grande firma comissária Lopes & Cia., deu uma palmada no braço da poltrona e disse: providenciemos. Wu-Pei-Ho merece as nossas homenagens. Reúna imediatamente a diretoria do Club, telefone, telegrafe, mas chame os diretores. O assunto é importante. Precisamos associar-nos às manifestações pesarosas que se prestarem ao saudoso Wu-Pei-Ho!

O primeiro-secretário pôs-se a discar o fone, reunindo os sócios graduados.

- Alô, comendador Pereira? Utopian Club! Aqui é o Abel. Venha depressa, temos reunião extraordinária. Imagine o comendador: Wu-Pei-Ho morreu! Não entende? Venha que explicarei. Obrigado. Tudo pelo próximo e fraternidade.

- Vem?

- Disse que sim.

O secretário continuou discando. Lopes Gomes começou a rabiscar a notícia para os jornais: - "Morreu Wu-Pei-Ho!" - que mais? procura lembrar-se do que diz sempre qualquer jornal do mundo sobre um defunto qualquer, e escreve: "O morto, homem de invulgares qualidades..."

***

Meia hora depois, à mesa vermelha das reuniões extraordinárias, sentava-se, solene, a diretoria do Club.

O primeiro-secretário pediu a palavra e expôs o assunto. A Diretoria concordou, por unanimidade, que o Utopian de Santos fosse condignamente representado nos funerais.

O comendador Pereira sugeriu a compra de uma grande coroa (c'roa, como pronuncia), toda de musgo verde e de dálias vermelhas, para ser enviada ao defunto.

A mesa aprovou a sugestão, com emendas quanto ao musgo e à cor das dálias. O dr. Guedes lembrou que alguém precisaria de ir ao Rio levar a coroa e propôs fosse nomeada uma comissão que representasse o Club.

A mesa nomeou o comendador Pereira, autor da idéia da coroa, e o dr. Guedes. O dr. Guedes lembrou mais que a viagem fosse feita de avião, para que as flores e o defunto se encontrassem ainda em estado de relativa frescura. A mesa aprovou a viagem de avião, pelo motivo exposto.

O dr. Camillo pediu que se telegrafasse para o Rio de Janeiro, sabendo quem era Wu-Pei-Ho. Houve acalorados debates, porque o dr. Guedes lembrava que isto era dar parte de ignorância, e decerto, perante os confrades do Rio, não ficaria bonito que os clubmen de Santos não soubessem quem era o grande Wu-Pei-Ho.

O comendador Pereira aprovou os argumentos do dr. Guedes, e insistiu para que a coroa fosse mesmo de musgo.

O dr. Guedes aprovou o musgo, e ambas as teses foram vencedoras: telegrama, não; musgo, sim.

O dr. Guedes explicou: no Rio, discretamente, era fácil saber-se quem era o grande morto. O caso é que se tratava de defunto ilustre, o telegrama do Rio não deixava dúvidas sobre isto.

- Wu-Pei-Ho, seja quem for, merece as nossas homenagens! O Utopian de Santos far-se-á representar condignamente!

Palmas, muito bem!

Foi pedida a abertura de um crédito de 3:000$ para as despesas com as últimas homenagens a Wu-Pei-Ho.

A mesa aprovou a despesa, pela verba de "assistência aos tuberculosos analfabetos", já que a verba de "representações" estava esgotada com a viagem do presidente do Club a Buenos Aires (organização de um fichário modelo para os orfãozinhos da cidade, a exemplo do que se faz na Argentina, e que por sinal não deu resultado, visto não dispor Buenos Aires do fichário procurado).

Depois o presidente disse: tudo pelo próximo e fraternidade! Os presentes repetiram a divisa, com o dedo indicador da mão esquerda (lado do coração) erguido para o teto. Estava encerrada a sessão.

O dr. Guedes recebeu os 3:000$ do tesoureiro e foi providenciar as passagens. O comendador saiu para escolher a "c'roa".

O dr. Camillo foi ao telégrafo e expediu isto: Utopian Rio. Quem é Wu-Pei-Ho?

***

Ao suave deslizar de um Terraplano marrom, o dr. Guedes e o comendador Pereira correm pelo cais àquela hora tardia da noite.

Vieram trazer a bordo o caro consócio Lopes Gomes, que também resolveu ir ao Rio, representando o clube nos funerais. Lopes Gomes tem medo de aviões, por isto alegou sofrimento cardíaco e embarcou no Asturias, acabado de sair, à meia-noite em ponto.

- Inglês é inglês! - repete o dr. Guedes pela quarta vez, lembrando aquela pontualidade. Disse que saía às 24 horas e saiu! Isto é que é gente!

Pelas grades do cais, nos intervalos dos armazéns, vê-se o movimento intenso dos operários da Docas e dos estivadores, no trabalho de carga e descarga dos vapores que têm pressa de sair.

Num declive suave, a correia sem fim de uma dala vai carregando o café para a boca da escotilha do Western-World. Passa uma saca, com a bandeira brasileira para cima; três metros depois vem outra e logo outra quase colada a esta. Corre depois a correia, vazia, mais cinco metros, e surge outra saca, onde a bandeira ficou para baixo.

Ao longe, além do canal do Mercado, aconteceu qualquer coisa: houve um estrondo de ferros batendo na pedra, gritos, correrias, a gente apareceu de todos os cantos, como brotada da terra ou da sombra das cinco filas compridas dos armazéns externos.

A passagem está cheia de operários que interrompem o trabalho, de notívagos curiosos, de vagabundos que dormem sob os beirais dos telhados dos armazéns, de marinheiros e mulheres que saem dos botequins vizinhos.

Correm guardas noturnos e vigias, choferes sonolentos que fazem ponto ali perto, os dois soldados de cavalaria que policiam as ruas adjacentes.

O Terraplano para, obrigado pela massa de povo. O comendador pergunta a um vigia:

- Que é que foi isto, amigo?

- Caiu uma lingada de trilhos em cima de um terno que estava trabalhando no Northern Princess.

- Que é que é um terno?

- Terno de estivadores, o sr. não sabe? Um grupo de homens que fazia o serviço: dos nove, morreram logo dois, e tem três que estão bem machucados!

- Ah! ovrigado!

O dr. Guedes reclama do chofer: veja se o sr. passa. Nós temos pressa, precisamos ir buscar a coroa na casa do florista! O avião sai de madrugada, e ainda quero dormir um pouco.

O comendador faz considerações filosóficas. Considerações que os confrades do clube já conhecem e apelidaram: made in comendador Pereira.

- Beja o amigo o baloire da pursunalidade do indibíduo: morreram quatro ou cinco estibadores, ningaim sente a perda, são homens como si não existissem, porque não taim pursunalidade, não são nada na bida, ningaim save que murreram. Beja agora o nosso grande Wu-Pei-Ho: pursunalidade tão inlustre que chega a bire tulugramas do Rio, e ovriga a gente por debere murale de admiração a ire ao enterro! A inlustrice do indibíduo é que bale! O amigo não acha?

- De acordo, comendador. Indivíduos que vivem como animais, embrutecidos na cachaça e no trabalho pesado, sem elevações de espírito, sem saberem sequer que há no mundo um clube de filantropia como o nosso Utopian, morrem assim, ingloriamente, ignorados, sem que ninguém saiba e sem que ninguém sinta!

O chofer do Terraplano marrom, de deslizar suave, virou-se e disse: desculpe, seu doutor, mas as famílias deles sentem!

- Não se meta onde não é chamado! Outra vez pegarei o 79-79-6 e não o seu carro! Isto é atrevimento com os passageiros!

***

A resposta dizia assim: Dr. Camillo. Santos. Não sabemos quem é Wu-Pei-Ho ponto Retransmitimos notícia a pedido Teheran sede Utopian Club Oriente ponto Aguardamos informações já solicitadas Pérsia ponto Wu-Pei-Ho morreu aldeia Chan-Sa-Ling província chinesa Kuang-Si ponto Saudações Alvaralhão secretário.

Dr. Camillo olhou pela janela do consultório o céu muito azul, buscando instintivamente o hidroplano que decolara àquela madrugada com o comendador Pereira, o dr. Guedes e uma grande coroa de musgo e de dálias amarelas (o comendador perdera na cor).

E a asa do seu pensamento pairou um instante sobre a longínqua aldeia chim, sobre Cham-Sa-Ling, onde começara a libertação dos ossos de Wu-Pei-Ho.

O 'Asturias' no cais do armazém 16 do porto de Santos, em foto de J.C. Rossini
O Asturias no cais do armazém 16 do porto de Santos
Foto: J.C. Rossini, em Rota de Ouro e Prata