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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (08)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Quem sabe rezar?

No xadrez 3 estão 135 homens.

Praxedes é muito amigo de um lituano, chamado Mardick. O lituano é marinheiro, e tem umas tatuagens no corpo: uma mulher nua, no antebraço esquerdo; uma caravela a duas cores - azul e vermelho - navegando a todo o pano dentro dos pelos loiros do peito largo e queimado de sol. Parece um livro ilustrado, o corpo do lituano: no braço direito há uma âncora fisgando um coração, dentro do qual estão as iniciais J. W.; na barriga, por baixo do umbigo, mandou fazer em Marselha um letreiro assim: "Pour le plaisir des dames".

Mardick, o marinheiro, explica a Praxedes a significação canalha e os dois riem. Num português atrapalhado, conta que os marujos da sua terra trazem bustos e corpos inteiros e nus de mulheres gravados no corpo, para que se não sintam, a bordo, durante as longas travessias, tão sozinhos e tão tristes. Nas noites claras, no convés da popa onde rumoreja o hélice, sentados em caixotes de bacalhau ou em fardos de linho, os marinheiros da Lituânia vão contando uns aos outros a história daqueles retratos e daqueles corpos. A história é sempre diferente: nela aparece uma nova mulher e uma nova aventura, cada vez que é contada.

O mar, a solidão, o mistério das águas, a magia do luar, as lendas marinhas, a saudade da fêmea, tudo espicaça e desenvolve a imaginação do marinheiro. Ele se faz herói, transfigura-se nas proezas inventadas.

Mardick semi-cerra os olhos, julga-se a bordo do Orient, matrícula em Abo, Finlândia. Não é verdade que o Orient se tenha incendiado, e esteja encalhado em Santos, junto ao bairro da Bocaina. Não é verdade que Mardick esteja preso por desordem, no xadrez 3. Ele está na popa do Orient, que navega pelo Báltico, rumorejando as pás do hélice na noite tranqüila.

O mulato Praxedes é o marinheiro Hans Hendick, alto, loiro, rosado como os marujos da Holanda.

Mardick conta a Hans Hendick, que nunca viu terras dos trópicos, as suas maravilhosas aventuras nos países cálidos, de mulheres ardentes que cobiçam homens loiros. Conta: o bordel onde conheceu aquela J. W., das iniciais, lá nas Antilhas, passa a ser a "hacienda" magnífica de riquíssimo açucareiro de Cuba, cuja filha, moça lindíssima, deu ao rude marinheiro as primícias do seu amor, sob um cactus enorme, por uma noite de estrelas, enquanto do palácio em festa vinha o dolente som da "habanera".

Aquele corpo nu de mulher morena (porque é moreno o braço que os trópicos tisnaram) não é um desenho qualquer, proposto pelo tatuador: é o retrato de uma princesa hindu que Mardick conheceu após uma briga feroz dentro de um café-concerto, em Bombaim. A princesa tratara das suas feridas e o amara por três noites, até a chegada do marajá, seu marido.

Para guardar eterna esta lembrança, mandara fazer a tatuagem, sob modelo que desenhara com os olhos ainda cheios da perfeição daquele corpo de princesa, que trepidara de amor enroscado ao seu corpo forte de marujo.

- Sempre ouvi dizê no cais, atalha Praxedes, que vocês marinheiros fazem figura de mulhé nua no corpo p'ra batê bronha, quando a viaje é muito demorada.

Mardick alça os ombros, pula do sonho para a vida, da popa do Orient para o xadrez 3, esquece a princesa índia e a señorita cubana e diz, indiferente: às veize!

O carcereiro abre a pesada porta da cela, e um rapaz, molhado da cabeça às sapatorras de sitiante, é empurrado para dentro.

Range a chave, e ficam 136, onde eram 135. O juiz Bemtevi protesta, em voz baixa: vô recramá! isto aqui tomem não é casa da sogra, onde se pincha todo o mundo! Tem lugá p'r'uns quarenta, e já semo quaji cento e cincuenta!

O rapaz se encolhe, encostado na parede, tremendo.

- Tá cum medo, bicho novo? - provoca o Espírito de Porco.

O interpelado ergue os olhos estrábicos e responde: Tô c'o'as maleita!

Bemtevi indaga: por que não disse que tava doente? Ia p'ra Santa Casa e deixava nóis em paiz!

- Eu falei: porém pricisa fazê requirimento p'ro juiz. Só despois que ele despachá eu .

- Que que você feis, hein? - quer saber Praxede.

- Dei uma foiçada num companhêro. Ele xingô minha mãe de puta.

Começa a falar febrilmente, com a voz entrecortada pelos arrepios: me chamo Anastácio, trabaio num sítio de banana do Rio Branco, sabe onde é? na linha do Juquiá. O Zeferino não me gostava. Contaram p'ra ele que a minha mãe fazia a vida aqui no Mercado. Ele me xingô daquela coisa, eu cortei o braço dele de foice, quasi torou. Eu sei que minha mãe é, mas ninguém deve dizê, ela é minha mãe.

Arregalava muito os olhos vesgos, todo o corpo tremendo, os cabelos compridos empastados d'água colados ao rosto, e tinha uma expressão tão bravia que até o Bemtevi se encolheu de susto. O professor teve mais coragem - chegou-se a ele, bateu-lhe no ombro e aconselhou: deite-se, Anastácio, você está doente. Veja se dorme um pouco.

Não havia mais colchões nem esteiras para tanta gente, e seis ou sete dezenas de homens, fazia muitos dias, dormiam no cimento frio, com a cabeça sobre os chinelos ou os tamancos, embrulhados no paletó, quando o tinham. Mas o professor tirou o colchão da sua cama, deu-o ao recém-chegado - podia muito bem dormir sobre o estrado de molas.

Anastácio deitou-se, e o professor pôs-lhe por cima das roupas encharcadas o cobertor de baeta vermelha. O cobertor acompanhava a tremura do corpo, e na semi-escuridão do xadrez, naquele crepúsculo chuvoso, os dentes entrechocados do preso faziam um ruído sinistro de mandíbulas sem carne, tal a força com que batiam.

Pelas duas janelas redondas e pela janela quadrada, todas muito altas e de grades duplas, entravam os últimos clarões do dia e as gotas finas de água em poalha, jogadas pelo vento.

O Anastácio aos poucos se foi aquietando, empurrou o cobertor, virou-se no colchão e soluçou: mamãe, me dá água, mamãe!

O professor já estava estirado no estrado da cama, mas se levantou com uma moringa de água na mão e o levou aos lábios do doente.

- Você está ardendo, companheiro! Isto é maleita braba, mesmo!

Depois, a noite e a quietação tomaram conta do xadrez número 3 e dos seus 136 detentos.

Uma lâmpada elétrica fica acesa toda a noite, e a sua luzinha fraca faz um círculo branco no chão, dentro do qual estão as esteiras do Espírito de Porco e do Mineiro e os corpos de dois outros presos, dormindo no cimento nu. Fora do círculo a sombra se estende, em mancha densa.

Perto de Praxedes dorme o lituano, de boca aberta, resfolegando como a sereia de algum cargueiro da sua pátria.

O Cabeleira rolou do colchão para o cimento, e dormindo faz esgares com a boca e trinca os dentes como se estivesse com eles quebrando nozes.

O colchão do juiz Bemtevi está vazio. Num ângulo sombrio parece dormir, quieto, o Anastácio.

A chuva cai, cai sempre, e o vento impele sobre os homens, em lufadas, poalha úmida de gotas desfeitas.

O silêncio é quase completo: não se ouve o passo da ronda, lá fora na rua, e nem um uivo de louco, ali dentro. Só, a espaço, o ranger dos dentes do Cabeleira e a seria de um cargueiro nórdico, na respiração do lituano.

De repente, tudo muda. Retumba entre as paredes do xadrez 3 um grito desesperado, que não é de louco porque traz inflexões de medo, de quem viu alguma coisa pavorosa.

E o juiz Bemtevi, trêmulo, esgazeado, quer fugir do cárcere, esbarra nas esteiras, tropeça nos colchões, pisa os que estão dormindo, bate nas paredes, grita pelo nome da Virgem Maria e pede perdão a Santo Onofre e a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Corre a guarda da noite, ergue-se o vozerio assustado das mulheres no xadrez 1, um demente se atira contra a porta, morde os varões de ferro e grita: eu quero o meu dinheiro, o meu dinheiro, o meu dinheiro!

Agarram o Bemtevi, que bate os queixos, pede perdão aos soldados, à Virgem Maria e a Santo Onofre. Mete a cabeça debaixo de um cobertor sujo, arrancado ao que lhe está mais perto, e aponta, afinal, para o lado em que está o colchão do Anastácio, dentro da sombra espessa.

Um soldado vai ver: Anastácio está deitado, e a sua pele está fria e a testa e o buço estão orvalhados de gotas miúdas de suor. Anastácio está morto.

Vão chamar o subdelegado de plantão, que não quer vir: se o preso morreu, é melhor esperar o amanhecer para o transporte do corpo ao necrotério. Com aquele temporal, não vale a pena fazer nada.

O cabo da guarda explica ao professor: vocês agüentem o defunto aí mesmo, até de manhã. Ele não tem habos-corpos ainda.

Fechou a porta e saiu, rindo.

O Bemtevi treme tanto, que parece o Anastácio, ao entrar com o acesso de maleitas. Depois, aos poucos, com lágrimas escorrendo dos olhos injetados, vai contando tudo, para o Praxedes, para o Cabeleira, para o professor, que procuram acalmá-lo.

O Bemtevi se levantara, alta noite, para ir ao colchão do "bicho novo", dormir com ele, porque fora dia de visita, e a lembrança da mulher alva e sardenta não o deixava em paz. Anastácio estava quieto, deitado de bruços.

O Bemtevi sentou-se à borda do colchão, agradando-o de mansinho, alisando-lhe os cabelos, para acordá-lo sem susto.

O rapaz estava frio, mas devia ser da roupa molhada, e se não acordava, o negro sabia porque era: fingimento, como o Cabeleira também fizera, à primeira noite que dormira no 3. Estava fingindo mas deixava fazer tudo, o Bemtevi sabia disto. Desabotoou-o, já com as narinas batendo de desejos, e atirou-se sobre ele, como se atiraria sobre a sua mulher de perna de pau e dente de ouro.

- Depois que eu acabei é que senti o zinho frio demais, frio que não havéra mais de da rôpa moiada, e percebi que as minhas mãos que abraçavam os peito dele não sentiam nada batendo dentro, como se o Anastaço tivesse o coração parado. Antão eu pulei de cima, virei ele de cara p'ra riba, apertei o nariz dele e a boca, p'ra ver se ele não tinha mais percisão de ar. O Anastaço tava mêmo morto, e eu vi que tinha estado c'um difunto! Nossa mãe do céu, tão santinha, me perdoe!

O Bemtevi estava como maluco, tremendo e pedindo perdão a Jesus Cristo, ao professor e ao Cabeleira. Maneco Cabeleira passou-lhe a mão pela carapinha e foi generoso: eu te perdôo, negro Bemtevi, fica quietinho que eu te perdôo!

Praxedes propôs: vamo acendê vela p'ro morto. Ele não pode ficá assim sem luis; não presta! Ele era nosso companhêro, vinha morá com a gente, vamo arranjá uma vela!

O marinheiro Mardick concordou com a vela e pôs-se a gritar na porta até que chegasse o soldado da ronda, blasfemando. Custou a entender o pedido, e foi consultar o cabo da guarda. Voltou com dois tocos de vela já acesos.

O lituano colocou-os à cabeceira do morto, Praxedes juntou-lhe as mãos sobre o peito, o Cabeleira cobriu-lhe o rosto com o cobertor, descobrindo-lhe os pés, porque a baeta não chegava.

O Bemtevi, de longe, olhava aquilo tudo, e pedia perdão aos santos de que se lembrava.

- Agorra a gente téve de tizer uma rréza p'ro morrido! - lembrou o marinheiro.

Os que cuidavam do morto concordaram. Só professor não disse nada, e foi também se deitar, como já o haviam feito quase todos os presos acordados com o barulho.

- Lituano, você reza e a gente repete - alvitrou Praxedes.

- Eo non tsei!

- Reza mesmo em russo, em alemão, em quarqué língua - mandou Praxedes.

- Eo non tsei rrezar!

Era o diabo! O juiz Bemtevi estava lá sentado no colchão, abobalhado, pedindo perdão agora a todas as coisas: ao colchão, às paredes, à moringa d'água, e não quis nem por nada aproximar-se do morto. Praxedes não entendia de orações. QUem sabe se...

- Professô, diga uma reza!

O professor resmungou: isto são bobagens! E depois, se há mesmo Deus, ele não vai ouvir encomendação de bêbados como eu ou você.

Cobriu a cabeça com o lençol e fingiu que dormia.

Praxedes procurou na memória, lembrou-se duma reza e ensaiou, de mãos postas, ajoelhado junto ao cadáver: Padre-nosso que estás no céu...

O Cabeleira se ajoelhou ao seu lado e repetiu: padre nosso que estás no céu...

Mardick postou-se atrás deles, contrito.

Praxedes não sabia a continuação. O Cabeleira lembrou: o pão nosso de cada dia...

- O pão nosso de cada dia... - repetiu o mulato.

- O pão nosso te cata tia... - acompanhou o lituano.

Fez-se silêncio de novo, um esperando que o outro se lembrasse. Nada!

Um louco sentou-se na esteira e puxou o cobertor do mordo. Praxedes tirou-o do louco, foi cobrir o cadáver e reparando que o Anastácio estava comum olho estrábico ainda aberto, puxou-lhe a pálpebra para baixo.

Maneco Cabeleira comentou: eu acho que ele fez bem em defendê a mãe dele! Depois, timidamente, propôs: eu sei reza de espiritismo, se você acha que está bem, Praxedes, eu digo.

- É reza p'ros santos ou p'ro demonho?

- Ah! - fez o Cabeleira, escandalizado - é reza p'ra Deus!

- Então serve, diz!

O Cabeleira juntou as palmas das mãos, cerrou os olhos e foi dizendo, cheio de unção, na sua falinha fina, para o Praxedes repetir:

- Espíritos do bem e do espaço...

- Espíritos do bem e do espaço...

- Bons espíritos que vieste recebê-lo...

- Que vieste recebê-lo...

- Auxiliai ele a despojar-se da matéria, dai para ele a luz e a consciença da desencarnação...

- Da desencarnação...

- Psiu! Agora só eu que falo! - e dirigiu-se ao morto - Anastácio: acabastes de entrá na vida espiritual, e no entanto aqui estais presente entre nóis - eu, o Praxedes, o Bemtevi, o lituano, e os que estão dormindo. Não tens mais o véu nos ólho, podes contemplar as maravilha, ao passo que nóis ainda ficamo mergulhado nas treva. Podeis percorrê o espaço e visitá os mundo com toda a liberdade, em veis que nóis com dificurdades se arrastamo na terra, onde nos prende o corpo materiar - e o Cabeleira completou por sua conta a reza decorada - e a cadeia pubrica. Agora você pode acompanhá, Praxedes: Senhor, Deus de misericórdia...

- Sinhô, Deus de mesericórda...

- Não repudieis este criminoso...

Uma outra voz, grave e contrita, saiu das trevas onde o Bemtevi estava, de joelhos no cimento frio:

- Não ripudieis este creminoso...


Vista da cidade obtida do alto do Monte Serrat, em 17 de abril de 1938, tendo à esquerda o edifício da Alfândega e à direita o arvoredo da Praça José Bonifácio, com o teatro Coliseu

Foto cedida a Novo Milênio por Ary O. Céllio