Utopian Club
Vai correndo a vida, para os pequenos
e para os grandes.
O Utopian club continua funcionando regularmente. É um clube de gente rica e tem uns estatutos
escritos em caderninhos de fino papel cor de rosa, com uma fitinha zaul pendurada para marcar as páginas. A lombada e as letras são douradas, o que
faz sair cada folhetinho daqueles em 6$500. A distribuição, porém, é gratuita entre os sócios - os cofres sociais pagam qualquer despesa que diga
respeito a bem servir aos associados. Para isto se realizam os chás de caridade e as tômbolas beneficentes, para isto correm subscrições entre o
alto e o baixo comércio. Para isto e também para os fins altruísticos do Utopian: assistência social, fraternidade universal, comunhão espiritual e
outras coisas bonitas acabadas em "al", porque as palavras assim terminadas têm muita ressonância e impressionam os contribuintes.
Os estatutos são lindos. Parece que desceu um anjo do céu para escrevê-los:
Art. I - O Utopian é um clube de irradiação universal, porque é um clube que prega o amor do homem
a todos os homens.
Art. II - O Utopian tem por finalidade conglomerar os homens de boas intenções em todo o universo,
para a comunhão espiritual dos sentimentos fraternais.
Art. III - O Utopian procurará elevar a dignidade humana, incitando ao trabalho, à fé, ao respeito
mútuo, à educação moral e cívica, ao senso de todos os deveres que o homem tem para com a sociedade e para consigo mesmo.
Art. IV - O Utopian...
- Bolas! - suspira o dr. Carlos, último sócio inscrito, na vaga da divisão DH.
Procura no índice o que são aquelas iniciais: A-A... D! Está por aqui... DE - DH! Achou!
DH corresponde à divisão que tem por objeto a elevação máxima da Dignidade Humana, pela propaganda
e pelo exemplo, DH - Dignidade Humana. Agora já sabe, fecha o livrinho.
Pensa: tal qual a Sociedade das Nações - tanta palavra bonita, tanto banquete... no final uns
comendo os outros. Tudo tapeação. Tapeação e farol - hoje, quem é capaz de vencer sem isto?
Por isto ele está satisfeito: que sorte, conseguir aquela vaga! É difícil entrar para o clube onde
o número de sócios é reduzido e as vagas disputadas. O que vale é que morreu um sócio. Burrada do colega que o tratou. Não é para falar - ele
respeita muito a ética profissional - mas aquilo foi um erro tão grande, que ele não se conteve e declarou abertamente à família do defunto: foi
burrada do colega! Ninguém me convence do contrário, foi burrada!
Dr. Carlos volta a pensar no Utopian: um médico novo, para fazer carreira, precisa de aparecer,
conviver com a gente importante da terra. Sir Watson, por exemplo, é o presidente do clube e da Cia. Inglesa do
Túnel do Monte Serrat, S.A. Uma grande empresa que vai furar o morro ligando a
parte central da cidade com a Vila Matias.
A empresa tem centenas de operários, vai ser criado um posto médico, o dr. Carlos pretende
candidatar-se. Agora, no clube, poderá fazer amizade com o bife, o tal sir Watson. Sentar-se-á ao seu lado, no próximo banquete, e
quando forem bem íntimos, zás! A coisa é fácil: sei que o sr. cogita em criar um serviço médico para os seus operários. Admiro-lhe o
desinteresse (sabe que é mentira: o inglês só faz aquilo porque paga médico por fora, por enquanto, e assim sai muito mais caro), sim, admiro o
sadio desinteresse de V. S., prova de que foi mesmo sincero quando entrou para um clube de finalidades tão humanitárias e nobres como este nosso
querido Utopian!
Se sir Watson não compreendesse a endeixa, ele seria mais positivo: como membro do Utopian,
sim, na qualidade de sócio do Utopian, divisão DH, gostaria de servir a esta humilde gente, de sentir a palpitação destas vidas modestas e heróicas,
mesmo como serviço prestado à causa sagrada do Utopian, e de acordo com o lema, que eu proporei para a minha divisão: "é preciso conhecer a vida do
pobre, para entender-lhe as necessidades."
O pau é que o lema fica muito comprido. Se pudesse resumir tudo... Por isto é que é bom saber
latim - em latim a gente diz coisa p'ra burro em duas palavras: sic transit! Vae victis! In hoc...
In hoc, eu não gosto. parece aquela massa italiana - gnocchi - que a dona da pensão
dava três vezes por semana, no tempo de estudante.
Pensamento é o diabo, para desgarrar! Onde é que eu estava? Ah! na falação com o inglês - pois é,
mister - mister não! - sir Watson, se o senhor não se opõe, eu tomarei conta do serviço, como médico-chefe. Que tal? Só para
melhor servir ao nosso Utopian, é claro!
O ordenado de médico-chefe deve ser... Digamos: coisa aí como 2:500$, talvez mais! Que bom morrer
aquele sócio! Burrada do colega! Com 2:500$ por mês, compro uma baratinha V8. Não, Chevrolet: V8 todo mundo tem. Até aquele português pançudo que
está ali, soletrando alto o jornal, escarrapachado na poltrona, como se aquilo fosse cama. Indecente! Boçalóide! Não se devia admitir um sócio
assim! E deve ser persona grata no clube - vejam só a deferência do garçom, servindo um Porto.
- Olá, Carlos!
- Ah! como vai, Guedes?
- Bem. Já conhece aqui o nosso digno amigo, comendador Pereira, grande capitalista e maior
benemérito? Aqui o dr. Carlos, sr. comendador.
- Vondades - grunhe o comendador, apertando a mão do apresentado. E muito prazeire.
- O prazer é só meu, comendador. Carlos Viana, seu criado.
Os dois amigos se afastam, para que o comendador possa continuar à vontade bebericando Porto e
soletrando O Diário.
- O comendador Pereira é vice-presidente do clube, e pertence à divisão AP.
- Não é o tal - abaixa a voz apesar da distância - não é o tal agiota que empresta dinheiro a 120
por cento ao ano?
- Exactly! - exclama o dr. Guedes, que às vezes se esquece que não está falando com sir
Watson.
- Nojento! - classifica o dr. Carlos.
O amigo sorri.
- O parágrafo terceiro do artigo 15 dos nossos estatutos proíbe que se fale mal do próximo, e em
particular dos nossos caros consócios... Mas, aqui entre nós: é nojento, mesmo! Uma vez, porque eu sou sócio disto aqui, me emprestou a 75 por
cento. Nojento! Você disse bem. Vou até o escritório, fique à vontade, o clube é seu. Good-bye!
- Até logo, Guedes.
Dr. Carlos senta-se na fofa poltrona de couro marrom. O usurário está na divisão AP. Que será?
Folheia o livrinho cor de rosa, de letras em ouro, escrito talvez pelos anjos do céu: AP - divisão
de Amor ao Próximo. Os componentes devem fazer tudo, material e moralmente, em benefício dos outros, sem cuidarem de si.
Dr. Carlos fecha o livrinho: - AP - 120 por cento, ao ano!
O vice-presidente do clube de assistência social, fraternidade universal e outras coisas bonitas
em al, soletra O Diário, em voz cochichada.
O garçom vem buscar o cálice do Porto, em pontas de pé. Na gola do dólmã, tecidas com fios de
ouro, rebrilham as palavras: Utopian Club.
Embarque de café no porto santista, cerca de 1900
Foto: Guilherme
Gaensly. Acervo: Arquivo do Estado de S.Paulo, S. Paulo/SP
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