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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (06)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Utopian Club

Vai correndo a vida, para os pequenos e para os grandes.

O Utopian club continua funcionando regularmente. É um clube de gente rica e tem uns estatutos escritos em caderninhos de fino papel cor de rosa, com uma fitinha zaul pendurada para marcar as páginas. A lombada e as letras são douradas, o que faz sair cada folhetinho daqueles em 6$500. A distribuição, porém, é gratuita entre os sócios - os cofres sociais pagam qualquer despesa que diga respeito a bem servir aos associados. Para isto se realizam os chás de caridade e as tômbolas beneficentes, para isto correm subscrições entre o alto e o baixo comércio. Para isto e também para os fins altruísticos do Utopian: assistência social, fraternidade universal, comunhão espiritual e outras coisas bonitas acabadas em "al", porque as palavras assim terminadas têm muita ressonância e impressionam os contribuintes.

Os estatutos são lindos. Parece que desceu um anjo do céu para escrevê-los:

Art. I - O Utopian é um clube de irradiação universal, porque é um clube que prega o amor do homem a todos os homens.

Art. II - O Utopian tem por finalidade conglomerar os homens de boas intenções em todo o universo, para a comunhão espiritual dos sentimentos fraternais.

Art. III - O Utopian procurará elevar a dignidade humana, incitando ao trabalho, à fé, ao respeito mútuo, à educação moral e cívica, ao senso de todos os deveres que o homem tem para com a sociedade e para consigo mesmo.

Art. IV - O Utopian...

- Bolas! - suspira o dr. Carlos, último sócio inscrito, na vaga da divisão DH.

Procura no índice o que são aquelas iniciais: A-A... D! Está por aqui... DE - DH! Achou!

DH corresponde à divisão que tem por objeto a elevação máxima da Dignidade Humana, pela propaganda e pelo exemplo, DH - Dignidade Humana. Agora já sabe, fecha o livrinho.

Pensa: tal qual a Sociedade das Nações - tanta palavra bonita, tanto banquete... no final uns comendo os outros. Tudo tapeação. Tapeação e farol - hoje, quem é capaz de vencer sem isto?

Por isto ele está satisfeito: que sorte, conseguir aquela vaga! É difícil entrar para o clube onde o número de sócios é reduzido e as vagas disputadas. O que vale é que morreu um sócio. Burrada do colega que o tratou. Não é para falar - ele respeita muito a ética profissional - mas aquilo foi um erro tão grande, que ele não se conteve e declarou abertamente à família do defunto: foi burrada do colega! Ninguém me convence do contrário, foi burrada!

Dr. Carlos volta a pensar no Utopian: um médico novo, para fazer carreira, precisa de aparecer, conviver com a gente importante da terra. Sir Watson, por exemplo, é o presidente do clube e da Cia. Inglesa do Túnel do Monte Serrat, S.A. Uma grande empresa que vai furar o morro ligando a parte central da cidade com a Vila Matias.

A empresa tem centenas de operários, vai ser criado um posto médico, o dr. Carlos pretende candidatar-se. Agora, no clube, poderá fazer amizade com o bife, o tal sir Watson. Sentar-se-á ao seu lado, no próximo banquete, e quando forem bem íntimos, zás! A coisa é fácil: sei que o sr. cogita em criar um serviço médico para os seus operários. Admiro-lhe o desinteresse (sabe que é mentira: o inglês só faz aquilo porque paga médico por fora, por enquanto, e assim sai muito mais caro), sim, admiro o sadio desinteresse de V. S., prova de que foi mesmo sincero quando entrou para um clube de finalidades tão humanitárias e nobres como este nosso querido Utopian!

Se sir Watson não compreendesse a endeixa, ele seria mais positivo: como membro do Utopian, sim, na qualidade de sócio do Utopian, divisão DH, gostaria de servir a esta humilde gente, de sentir a palpitação destas vidas modestas e heróicas, mesmo como serviço prestado à causa sagrada do Utopian, e de acordo com o lema, que eu proporei para a minha divisão: "é preciso conhecer a vida do pobre, para entender-lhe as necessidades."

O pau é que o lema fica muito comprido. Se pudesse resumir tudo... Por isto é que é bom saber latim - em latim a gente diz coisa p'ra burro em duas palavras: sic transit! Vae victis! In hoc...

In hoc, eu não gosto. parece aquela massa italiana - gnocchi - que a dona da pensão dava três vezes por semana, no tempo de estudante.

Pensamento é o diabo, para desgarrar! Onde é que eu estava? Ah! na falação com o inglês - pois é, mister - mister não! - sir Watson, se o senhor não se opõe, eu tomarei conta do serviço, como médico-chefe. Que tal? Só para melhor servir ao nosso Utopian, é claro!

O ordenado de médico-chefe deve ser... Digamos: coisa aí como 2:500$, talvez mais! Que bom morrer aquele sócio! Burrada do colega! Com 2:500$ por mês, compro uma baratinha V8. Não, Chevrolet: V8 todo mundo tem. Até aquele português pançudo que está ali, soletrando alto o jornal, escarrapachado na poltrona, como se aquilo fosse cama. Indecente! Boçalóide! Não se devia admitir um sócio assim! E deve ser persona grata no clube - vejam só a deferência do garçom, servindo um Porto.

- Olá, Carlos!

- Ah! como vai, Guedes?

- Bem. Já conhece aqui o nosso digno amigo, comendador Pereira, grande capitalista e maior benemérito? Aqui o dr. Carlos, sr. comendador.

- Vondades - grunhe o comendador, apertando a mão do apresentado. E muito prazeire.

- O prazer é só meu, comendador. Carlos Viana, seu criado.

Os dois amigos se afastam, para que o comendador possa continuar à vontade bebericando Porto e soletrando O Diário.

- O comendador Pereira é vice-presidente do clube, e pertence à divisão AP.

- Não é o tal - abaixa a voz apesar da distância - não é o tal agiota que empresta dinheiro a 120 por cento ao ano?

- Exactly! - exclama o dr. Guedes, que às vezes se esquece que não está falando com sir Watson.

- Nojento! - classifica o dr. Carlos.

O amigo sorri.

- O parágrafo terceiro do artigo 15 dos nossos estatutos proíbe que se fale mal do próximo, e em particular dos nossos caros consócios... Mas, aqui entre nós: é nojento, mesmo! Uma vez, porque eu sou sócio disto aqui, me emprestou a 75 por cento. Nojento! Você disse bem. Vou até o escritório, fique à vontade, o clube é seu. Good-bye!

- Até logo, Guedes.

Dr. Carlos senta-se na fofa poltrona de couro marrom. O usurário está na divisão AP. Que será?

Folheia o livrinho cor de rosa, de letras em ouro, escrito talvez pelos anjos do céu: AP - divisão de Amor ao Próximo. Os componentes devem fazer tudo, material e moralmente, em benefício dos outros, sem cuidarem de si.

Dr. Carlos fecha o livrinho: - AP - 120 por cento, ao ano!

O vice-presidente do clube de assistência social, fraternidade universal e outras coisas bonitas em al, soletra O Diário, em voz cochichada.

O garçom vem buscar o cálice do Porto, em pontas de pé. Na gola do dólmã, tecidas com fios de ouro, rebrilham as palavras: Utopian Club.


Embarque de café no porto santista, cerca de 1900

Foto: Guilherme Gaensly. Acervo: Arquivo do Estado de S.Paulo, S. Paulo/SP