Nasci em Cubatão,
perto de Santos, a 29 de junho de 1890. Foram meus pais;
Odila Pereira Brunckenn, nascida nesse distrito, e João Afonso Schmidt, nascido em Cananéia.
Na minha infância, em Cubatão, só havia escolas municipais, e os professores estavam sempre de mudança. Por isso,
fui aluno de diversos mestres, com eles aprendi as primeiras letras. Lembro-me apenas de Francisco Antônio Ribas e Salatiel Correia Coelho. E,
vagamente, de homens letrados que, depois do trabalho, ensinavam a cartilha aos meninos da vizinhança. Eu sempre invejei esses meninos que passavam
pela minha porta, pois eles pitavam, riam alto, levavam um toco de vela no bolso para alumiar a lição e, caminhando, brandiam o cacete com que se
defendiam dos cachorros.
Ali por 1899, meus pais se mudaram para São Paulo. Fomos morar na Avenida Rangel Pestana, numa casa verde
fronteira à embocadura da Rua Gomes Cardim. Matriculei-me no 1º Grupo Escolar do Brás, primeiro ano A, de que eram professoras D. Mariquinha e D.
Inês. Ainda as vejo na lembrança. Tão boas, tão maternais. D. Inês, que era de cor, martirizava-se com a minha falta de ouvido para decorar os hinos
escolares. Ali tive um colega muito manhoso. Chamava-se Oduvaldo. Mais tarde, fez-se Oduvaldo Viana, um dos maiores dramaturgos do Brasil.
No ano seguinte, meus pais voltaram para o sítio. Logo depois, a fim de dar-me instrução, fizeram grande
sacrifício e me mandaram para a Escola Carlos Barlet, em Santos. Essa escola aceitava também alunos internos e eu tive a infelicidade de ser o único
interno num casarão velho, enorme, com mais de dez salas, algumas das quais sem móveis. Aquela solidão deixou marcas na minha maneira de ser.
Mais um ano e meus pais tentaram novamente São Paulo, indo residir à Rua Bresser, nº 29. Matricularam-me no Grupo
Escolar do Oriente, à Rua Almirante Barroso. O diretor era Antônio do Espírito Santo. Meu professor, no quarto ano, chamava-se Antônio de Sales
Prado, de Jacareí, muito culto e bondoso.
Mas ainda dessa vez a família teve de regressar ao sítio, deixando-me naquela casa da Rua Bresser aos cuidados de
um empregado, mas a experiência não deu certo.
Em 1904, sempre no desejo de me dar instrução, meus pais me mandaram novamente para São Paulo, como pensionista do
Hotel Cantagalo, de Angelo Moretti, em frente à Estação do Norte. Foi ali que eu, já devorador dos romances traduzidos e plaquettes de
poesias comprados no sebo de Mme. Gazeau, atirei-me aos versos e tentei a sua publicação nos jornais do interior. Lembro-me de que vi o meu
primeiro poema impresso na primeira página de um semanário chamado A Luta, de Santa Branca. Conseguida essa vitória, voltei-me inteiramente
para as letras, com prejuízo dos estudos. Assim mesmo tornei a me matricular no 1º Grupo Escolar do Brás, no quarto ano. Diretor: João Pinto e
Silva. Professores: Luís Pinto e Silva, Nilo Costa. Ali terminei o quarto ano, mas não cheguei a freqüentar o quinto.
Em 1906, minha família estava mais uma vez em São Paulo, porque meus irmãos já se encontravam em idade escolar.
Deu-se então a minha primeira aventura. Por ocasião da posse do presidente Afonso Pena,
organizou-se um trem especial para os que quisessem ir ao Rio de Janeiro. Eu e um amigo não resistimos à tentação...
Embarcamos sem vintém e, como lá não encontrássemos o que esperávamos, ficamos quase uma semana a vagar pelas ruas, sem casa nem comida. Cheguei a
ir a um posto policial, para dormir. Por fim, conseguimos voltar, mas eu já havia adquirido o gosto por viagens dessa marca.
Tanto assim que em fevereiro de 1907, com algum dinheiro no bolso, embarquei para o Rio de Janeiro. Ali -
aproveitando a baixa de preço das passagens, motivada pela concorrência de algumas companhias - tomei passagem de terceira no vapor misto
Berenguer-el Grande e fiz uma travessia de 28 dias que valia por uma prisão, pois o navio estava superlotado, o passadio era horrível e para
completar o quadro: a água era salobra, intragável, racionada.
Estive em Vigo e desembarquei em Lisboa, onde passei alguns meses de miséria. Assim mesmo, achei jeito de
colaborar num diário intitulado Novidades, o mais literário da época. Mas fiquei com vergonha de apresentar-me na Redação e cobrar o meu
trabalho...
Minha família me mandou um cheque para o regresso mas, recebendo o dinheiro, toquei para Paris, onde passei outros
tantos meses, muito mal. Para isso, concorreu a quebra do Banco União do Comércio, através do qual meu pai mandou algumas mesadas que não consegui
receber. Acabei por ser acolhido numa popotte de exilados russos de 1905, onde vivi alguns meses. Depois obtive passagem no Consulado e só
então regressei ao Brasil. Tudo isso está contado na novela Primeira Viagem.
Aqui chegando, em fins de 1908, já não encontrei a família na Capital e passei as maiores dificuldades. Meu pai
acabou por levar-me ao Comércio de São Paulo, cujo diretor era Alberto Souza, seu
amigo de infância, e me arranjou modesto emprego. E, graças à bondade do autor de Os
Andradas, fui logo admitido como colaborador. Em 8 de dezembro de 1908, o jornal publicou uma produção poética de minha lavra. Era um
soneto: Janelas Abertas, com ilustração de Mário Barbosa (pai do escritor Rolmes Barbosa) e em 1911, esse soneto deu nome à minha coletânea
de versos, premiada pela Academia Brasileira de Letras, com um sugestivo parecer de Sílvio Romero.
Minha vida nos dois anos que se seguiram foi ainda mais agitada que de costume. Em 1911, estive no Rio de Janeiro,
trabalhando numa farmácia da Praça da Harmonia. Em 1912 fui puxador de trena na construção da Southern São Paulo Railway, hoje Santos a Juquiá,
Estrada de Ferro Sorocabana.
Em 1913, porém, embarquei para a Itália, onde perambulei pelas ruas de Milão até 1914. Segui para a França, onde
fiquei encalhado em Modanne, no alto do Mont Cènis, até que, com o socorro de D. Luís de Bragança, consegui alcançar Marselha e ser de novo
repatriado.
Apenas cheguei a Santos, desencadeou-se a primeira Grande Guerra. Minha família tinha arrendado o sítio e vivia em
São Vicente, com certo desafogo. Mas, com a guerra e o ambiente de inquietação que se
formou, o arrendatário sonegou o pagamento das mensalidades e nós ficamos sem quaisquer recursos. Depois de sofrer algum tempo em São Vicente, fomos
morar num rancho que nos foi cedido pelo Dr. Guilherme Aralhe, no Itaipu. Não havia
empregos. Meu irmão Godofredo fez-se substituto de professor primário de Porto do Rei e eu fui trabalhar na Cidade de Santos. Todas as manhãs
ia a pé até São Vicente, e lá cavava - geralmente com um santo teosofista chamado Benedito Ribeiro - o níquel para chegar a Santos. Mas quando
entrava no serviço já estava cansadíssimo, liquidado. Ganhava 80$000 por mês.
Como minha mãe e minhas irmãs ficassem doentes de maleita, tive de tomar uma resolução que valeu por uma
violência: fui a um casebre da chamada Rua das Sete Casas, em São Vicente, condenada pelo
Serviço Sanitário, meti o ombro na porta, recolhi os cacarecos e a família e, no dia seguinte, corri a contar o caso ao Diretor de
Serviço, naquele tempo. Era o Dr. Siqueira Zamith.
A princípio, esteve para mandar prender-me. Depois, conhecendo a nossa situação, permitiu que ali permanecêssemos
até encontrar outra casa. Fez mais: foi a São Vicente e iniciou o tratamento das três mulheres, com muita bondade de que nós nunca esquecemos.
Por essa altura, graças à bondade de João Salermo, que me indicou a
A Tribuna, fui admitido nesse jornal, como repórter. O secretário, Otávio Veiga, muito me ajudou. A
Grande Guerra terminou e veio a gripe. Aqueles dias dariam um grande livro. Então, a família já estava amparada e eu vim para São Paulo, onde o
após-guerra teve forte repercussão. Trabalhei em A Plebe, em A Vanguarda e fui chamado para secretariar A Voz do Povo, no Rio
de Janeiro.
Com o afastamento de Carlos Dias, assumi a direção desse jornal dos trabalhadores. Assim, mesmo, tive tempo de
escrever As Levianas, peça em três atos que anos depois foi representada em São Paulo, em Porto Alegre e Buenos Aires, por uma Companhia de
que faziam parte Abigail Maia e Manuel Durães.
Voltando a Santos em 1921, fui trabalhar no Comércio de Santos, de propriedade de meu antigo professor Nilo
Costa. Trabalhei também na fundação do Jornal da Noite. E publiquei Mocidade, livro de versos, e Brutalidade, livro de contos.
Casei. Estava disposto a levar uma vida pacata, mas, por necessidade de maiores recursos, embarquei para São Paulo.
Comecei trabalhando em pequenos jornais. Ganhava 250$000 mensais; e, de aluguel, na Rua Major Diogo, pagava
240$000. Um drama. Certo dia, Olival Costa empregou-me na Folha da Noite, que estava surgindo. Encontrei grandes amigos, não só Olival Costa,
como Antônio Santos Figueiredo, Pedro Cunha, Mariano Costa. Ali, graças a meus livros, comecei a encontrar outras facilidades.
Veio a revolução de 1924, chefiada pelo general Isidoro. Fechada a Folha da Noite por algum tempo, passei
para O Estado de São Paulo, como repórter. Naquele tempo o jornal era pobre, lutava com dificuldades e nós o acompanhávamos, solidários.
Depois, o jornal enriqueceu e eu tive a sorte de todos os escritores que por lá passaram: Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida, Sud Menucci,
Fernando de Azevedo e outros. Em resumo: perdi trinta anos de trabalho nesse jornal.
Mas durante esse tempo escrevi, porque, para falar verdade, eu só sei escrever. Uma tentativa que fiz de emprego
público não deu certo. Há quarenta anos que publico livros, sendo que os primeiros foram por minha conta ou por conta de amigos, como Janelas
Abertas, editado por Luiz N. Greco, um grande companheiro.
Fui eleito para a Academia Paulista de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Em 1942, na
Academia Brasileira de Letras alcancei o prêmio de romance, com A Marcha, e o prêmio em louvor de São Francisco de Assis. Em 1922, alcancei
com Os Impunes, em Buenos Aires, o prêmio de La Novela Semanal. Em 1948, com Menino Felipe, obtive o prêmio O Cruzeiro
que até há pouco foi o maior prêmio literário do Brasil.
A Editora Brasiliense está publicando minhas obras completas, já tendo aparecido dez volumes.
Neste momento, sou redator-chefe de Fundamentos, revista de cultura moderna, e colaboro efetivamente no
Correio Paulistano, onde encontrei o ambiente amigo que muitas vezes tem-me faltado ao longo desta já longa carreira literária.
São Paulo, 8 de junho de 1955.
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