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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
"O Pão"

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Considerado o maior escritor nascido em Cubatão, logo após a Segunda Guerra Mundial Afonso Schmidt redigiu a peça O pão, depois mudada para Cesta de Hortaliças. Seu texto, datilografado, tem cópia conservada no Arquivo Histórico de Cubatão. Desse original foi obtida em 1993 uma fotocópia, em que aparecem emendas feitas com caneta esferográfica vermelha, atualizando as falas dos personagens por meio de substituição, corte ou acréscimo de palavras, e ainda reforçando trechos em que o texto datilografado ficou quase ininteligível com o envelhecimento do papel.

Junto com esse material, há uma troca de correspondências sobre a encenação da peça, que ocorreria no VII Festival Santista de Teatro Amador e em outros locais, em 1993, sob a responsabilidade da professora de artes cênicas Lúcia Amélia de Oliveira Alencar, de Cubatão. Ela relatou em uma carta que o original foi encontrado em uma biblioteca cubatense, e a obra não tinha registro na Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais (SBAT).

Essa fotocópia de 1993 foi cedida a Novo Milênio para esta reprodução integral, pelo filho do escritor, Aldo Schmidt, em 19/3/2008. São aqui apresentadas as palavras originais, tachadas, e as acrescentadas, em itálico:

Capa de O pão, obra teatral de Afonso Schmidt

Fotocópia da capa de exemplar datilografado conservado no Arquivo Histórico de Cubatão

Imagem cedida a Novo Milênio por Aldo Schmidt, em 19/3/2008


Deste sketch foi feita a peça Cesta de Hortaliças. Está portanto inutilizada. 18.07.49

O pão

FANTASMAGORIA EM 3 QUADROS

POR

Afonso Schmidt

PERSONAGENS:

PANDORGA - O homem dinâmico

PAULINO - Porteiro

GENOVEVA -

LUNA - Lunática

BRAVO - Comerciante de trigo

ROSPO - Dono do moinho

MARTINHO - Dono da padaria

OVELHA - Plantador de trigo

ANJO DA GUARDA

DIVERSAS VOZES no espaço

Representada por Manuel Durães e seus companheiros na Rádio Record em 6/7/1947 às 13 horas.


PRIMEIRO QUADRO

"Hall" de um palacete. Porta larga à direita para o jardim. Porta ao fundo, para o interior da casa. Portinha discreta, à esquerda, para os aposentos de Genoveva. Mesa ao centro. Numa cantoneira, três vasos, aos quais se atribui grande valor. Ao levantar o pano, Paulino, de libré vistoso, está postado à entrada do jardim. Genoveva, logo depois, entra pela porta discreta.

CENA I

Paulino e Genoveva

GENOVEVA - Paulino, onde está seu patrão?

PAULINO - Há duas horas está almoçando.

GENOVEVA - E que faz você aí, estatelado diante dessa porta?

PAULINO - São ordens. Ao sair, ele me disse: "Paulino, você vai ficar aí, diante da porta. Estou esperando 3 pessoas para tratar de um negócio. Receba-as aqui no "hall" e faça-as esperar, que eu já volto". Disse isso e saiu praguejando.

GENOVEVA - Praguejando?

PAULINO - Sim, praguejando. O patrão anda transtornado. Por qualquer coisa, fica vermelho como um tomate. Ou ri como maluco, ou atira a bandeja na cabeça dos criados.

GENOVEVA - Hum... Eu sei de onde vem esse mau humor. Deve ser coisa daquela mulher. (Pausa. A Paulino) - Como vai ela?

PAULINO - Ih... Anda a falar sozinha. A propósito de tudo, tira o baralho do bolso do avental e põe-se a ler as cartas. Até dá medo na gente. Não é por falar mal, mas se aquela mulherzinha continuar assim, vamos ter problemas.

GENOVEVA - Ele é um cachorro louco. Ferrou os dentes na minha alma -. Está contra mim.

PAULINO - Contra todos.

GENOVEVA - Eu já nem saio do quarto. Ela, quando me vê, fica fora de si. Diz que fui contratada por quinze dias. Que Pandorga quando perdeu a outra me chamou pelo telefone. Que eu estava dançando num cabaré. Que respondo a um processo por ter desencaminhado a um sargento de bombeiros. Que sei lá!

PAULINO - Pois ela é quem manda nesta casa.

GENOVEVA - Seu patrão é PANDORGA. Entende?

PAULINO - E Luna?

GENOVEVA - Luna é lunática.

PAULINO - Deus é testemunha de que eu não disse nada...

GENOVEVA - Está bem. Mas que faz ela?

PAULINO - Recebeu um ramalhete de rosas e foi para o seu quarto.

GENOVEVA - Rosas?

PAULINO - Rosas. Rosas como as que mais o sejam. Via-se eu com estes olhos que a terra há de comer.

GENOVEVA - Aquela harpia!

PAULINO - Aquela marreca!

GENOVEVA - Ah! Se não fosse esta necessidade urgente de quatro mil dinheiros milhões de cruzeiros...

PAULINO - Conte comigo. Eu faço sempre o seu jogo. Quando o patrão me pergunta qualquer coisa, eu entro logo com a defesa. Só vendo!

GENOVEVA - Estamos entendidos. Vou pedir cinco mil dinheiros milhões de cruzeiros. Se ele der, como espero, os mil restantes são para você.

PAULINO - Obrigado. Chegarão mesmo na hora.

GENOVEVA - Vou espiar o que aquela bruxa anda a fazer lá dentro...

PAULINO - Que anda a fazer? Deita as cartas, conta pela ponta dos dedos, fala sozinha. Quando Deus quer, dá um grito que põe de pé os cabelos da gente.

GENOVEVA - Pois vamos ver quem vence a partida. Ela, ou eu" (Sai pela porta do fundo).

CENA II

Paulino e Bravo

BRAVO - (Vai entrando de chapéu na mão) - É aqui?

PAULINO - Aqui o quê?

BRAVO - A reunião.

PAULINO - Que reunião é essa?

BRAVO - A reunião dos moageiros e anexos.

PAULINO - É sim senhor.

BRAVO - Que me dizem desta figura? Parece um gato pingado à espera do caixão. T'esconjuro!

PAULINO - Esconjure à vontade, mas aqui não entra ninguém sem declarar nome e qualidades.

BRAVO - Porque não disse antes? Sou Timóteo Bravo, comprador e vendedor de trigo. Comissões, consignações e conta própria.

PAULINO - (Bate com o bastão e anuncia) - Sr. Timóteo Bravo, comissões, consignações e conta própria.

BRAVO - (Entra e examina o recinto) Esta é boa! Pra que tudo isso? A sala está vazia!

PAULINO - O senhor vai ser o indêis...

BRAVO - Afinal, eu gosto desta fantochada "teatrada". Pandorga é um palhaço. Deslumbra-nos os olhos para melhor nos bater a carteira. O que dizes a isto? me diz, hein?

PAULINO - Não sou besta... Não digo nada!

BRAVO - Está bem. Esperemos. Que horas são?

PAULINO - (Consulta o pulso) - A hora da morte.

CENA III

Os mesmos e Rospo

ROSPO - (Como Bravo, chega hesitante, o chapéu na mão) - Pode-se entrar?

PAULINO - Pode. Mas primeiro dê o nome e os cargos.

ROSPO - Eu sou Rospo Senior, o dono do moinho.

PAULINO - (Bate com o bastão e anuncia) - Sr. Rospo Senior, tubarão da farinha.

ROSPO - (Entrando afinal) - Olhem quem está aqui! O Timóteo Bravo! O grande maganão!

BRAVO - Até as pedras se encontram!

ROSPO - E nós somos duas pedras. E que pedras... Onde está o Pandorga?

BRAVO - Cheguei ainda há pouco. Aquele patusco farrista me disse qe ele está comendo uma gamela travessa de ovos cozidos e não tardará demora...

ROSPO - Pandorga nunca se atrasa. Ele é um relógio.

BRAVO - Um relógio, não. É uma guilhotina.

ROSPO - Seja lá o que for... Mas tenho uma idéia...

BRAVO - Tens uma idéia... Isso é grave... Que comeste ao você comeu no almoço?

ROSPO - Já que estamos sós, bem poderíamos concertar combinar um plano para fazê-lo espirrar tirá-lo fora das nossas combinações.

BRAVO - Pois que venha essa diga qual é a idéia...

ROSPO - T ostadinha e com manteiga...

BRAVO - És um calhordas... (Riem e ficam a conversar em voz baixa).

CENA IV

Os mesmos e Martinho

MARTINHO - (Como os outros, aproxima-se hesitante, de chapéu na mão) - Boa tarde.

PAULINO - Boa tarde. Que quer?

BRAVO - Olhe ali...

ROSPO - Ali o quê?

BRAVO - Mais um ladrão para a assembléia... (os dois riem)

PAULINO - (A Martinho) - Seu nome? Suas qualidades?

MARTINHO - Eu sou Martinho para o servir, o dono da padaria.

PAULINO - (Bate o bastão e anuncia) - Sr. Martinho para o servir, dono da padaria.

MARTINHO - (Entrando) - Boa noite. Olhem aqui dois patifes. Vejo que estou em boa companhia!

BRAVO - (A Rospo) - Já abotoei o paletó.

ROSPO - (A Bravo) - Eu já passei a carteira para o bolso de traz...

CENA V

Os mesmos e Pandorga

PANDORGA - (Entra pelo fundo, palitando os dentes) - Meus amigos, boa tarde.

ROSPO - Que tal o almoço?

PANDORGA - Minha cozinheira é um anjo. Se eu contar o que comi, vocês não acreditam...

ROSPO - Um pratarraz big prato de pepinos!

PANDORGA - Quem foi que lhe disse?

BRAVO - Uma dúzia de ovos cozidos!

PANDORGA - Quem foi o mexeriqueiro?

ROSPO - E por sobremesa...

PANDORGA - Diga lá, vamos...

BRAVO - Um leitãozinho assado deste tamanhinho... (Todos riem).

PANDORGA - Mas vamos ao que serve interessa. Sentem-se. Convidei-os para uma reunião a fim de discutirmos assunto de alta relevância importância. Alta relevância, entendem? - Trata-se de elevar o preço do pão. Mesmo que faltem os demais interessados, acho que nós quatro podemos resolver a questão. Aqui está o Timóteo Bravo, das comissões e consignações. Está o Rospo Senior, dono do moinho. Está o Martinho, dono da padaria. E aqui estou eu, principalmente...

BRAVO - Mas afinal, que representa você neste cambalacho?

ROSPO - Sim... Você não é negociante, não é moageiro, não é padeiro, não é nada para a classe...

PANDORGA - Eu sou o homem dinâmico.

BRAVO - Ah! É verdade. É o homem dinâmico.

MARTINHO - (ingenuamente) - O que é ele?

ROSPO - Ele é o homem dinâmico.

MARTINHO - Ah! Eu não sabia.

BRAVO - Sem o homem dinâmico que seria de nós outros?

PANDORGA - Então, vamos começar. Antes de tudo assinem isto (Tra do bolso uma folha de papel, parte escrita).

BRAVO - Que é isso? Um testamento? Um atestado de óbito?

PANDORGA - Não. Um compromisso.

ROSPO - Leia logo, vamos ver onde é que seremos roubados...

BRAVO - (Tomando o papel e lendo) - "Nós abaixo assinados nos comprometemos a elevar cem por cento o preço do trigo em grão, da farinha, do produto manipulado etc. etc." - Nem preciso ler o resto.l

PANDORGA - Que acham vocês?

BRAVO - Genial

ROSPO - Assombroso.

MARTINHO - Mas a freguesia não fará cara feia?

PANDORGA - Olhem o bobinho...

BRAVO - Ele tem medo de cucas da cuca!

ROSPO - E de assombração... (Os 3 acham graça e riem).

CENA VI

Os mesmos e Luna

LUNA - (Como sonâmbula, entra dos fundos) - Saiu o sete de paus! Saiu o sete de paus!

ROSPO - QUe é isso?

BRAVO - Vô-te Vai pra lá, salamandra...

MARTINHO - Será uma louca?

PANDORGA - (Aflito) - Não reparem. Ela é uma das minhas amigas. Chama-se Luna e é lunática. Vive dizendo coisas misteriosas mas ninguém a leva a sério. (Dirige-se à mulher): Luna, meu bem, vá para o seu quarto...

LUNA - Deixe-me aqui! Deixe-me aqui!

PANDORGA - Então fique, aí, mas quietinha, está entendendo?

CENA VII

Os mesmos e Ovelha

OVELHA - (Aparece à porta, com um alfange às costas. É um velho camponês) - Quero entrar.

PAULINO - Antes de tudo diga quem você é.

OVELHA - Sou Ovelha, o plantador de trigo.

PAULINO - Bate com o bastão e anuncia) - Ovelha, plantador de trigo.

PANDORGA - Não deixe entrar.

LUNA - Ei-lo. O velho com o alfange às costas. É a morte (sai).

OVELHA - Não é aqui que se realiza uma assembléia para aumentar o preço do pão?

PANDORGA - É sim. E depois daí?

OVELHA - Pois eu sou plantador de trigo.

PANDORGA E que tenho com isso?

OVELHA - Julguei que eu tinha direito...

PANDORGA - Pois julgou mal.

BRAVO - Ele quer ganhar nas nossas costas... Que malandro!

ROSPO - Fora com o intruso... O pé rapado!

PANDORGA - Teria graça se fossemos repartir os proventos com todo o mundo. QUe ficaria para nós?

OVELHA - Mas isso é uma injustiça.

PANDORGA - Não, meu velho. É uma questão de direito. A que título você quer tomar parte na nossa reunião?

OVELHA - Eu produzo o trigo.

PANDORGA - Está bem, não nego, mas aqui não se trata de trigo, trata-se de pão.

OVELHA - Mas pão é trigo.

PANDORGA - Você quer me enganar que o seu trigal produz pão? Produz trigo. Do trigo é que algumas vezes se faz pão. Nesse caso, teríamos de receber os plantadores de milho, de mandioca, de aveia, de cevada, de arroz, até mesmo de soja.

OVELHA - Pelo direito pode estar certo, mas pela justiça eu estou sendo roubado.

PANDORGA - Que tem a ver o Direito com a Justiça? Ora, não seja bobo...

OVELHA - Que esse roubo vos lhe dê os mais belos pitéus do mundo.

PANDORGA - Insolente!

OVELHA -... e que vos tire o estômago para os digerir.

PANDORGA - Paulino, bote esse homem no olho da rua!

OVELHA - Que Deus vos dê um tonel de vinho de 1ª...

PANDORGA - Rua...

OVELHA - ... e que o Diabo te costure a boca (Sai praguejando).

BRAVO - Que patife!

ROSPO - Um malandro!

MARTINHO - Afinal, se o deixassem entrar...

PANDORGA - O Diacho é que estas emoções depois do almoço atiram me sobem sangue para a cabeça...

BRAVO - O aumento deve começar no meu escritório.

ROSPO - E crescer no meu moinho.

MARTINHO - E desenvolver-se na padaria.

PANDORGA - (Agitado) - Está claro! A assembléia acaba de deliberar que o plantador não tem nada com o preço do produto!

BRAVO, ROSPO E MARTINHO - Muito bem! Apoiado!

CENA VIII

Os mesmos e Genoveva

GENOVEVA - (Entrando) - Boa tarde. Vocês estão se divertindo?

PANDORGA - Não; trabalhamos.

GENOVEVA - E que fazem? Posso saber?

PANDORGA - Claro que pode. Eu e meus amigos estamos admirando a riqueza destes vasos.

BRAVO - Era isso mesmo o que nós estávamos vocês estavam fazendo?

ROSPO - São de fato muito bonitos.

MARTINHO - Bonitos? Diga São maravilhosos.

GENOVEVA - Custaram uma fortuna.

BRAVO - Sei de um lugar onde pode-se comprar por preço assaz muito conveniente.

GENOVEVA - Aqui na terra, será difícil...

MARTINHO - Onde?

GENOVEVA - Sim, onde?

BRAVO - Uma loja de cerâmica, no mercado.

GENOVEVA - No mercado? Que zombaria? Está ouvindo, Pandorga. Ele viu destes vasos no mercado...

PANDORGA - Vocês estão no mundo da Lua. Cada vaso desses aí custou-me, em Túnis, duzentos guinéus 200 mil cruzeiros. Façam as contas.

ROSPO - E olhe que foi barato.

MARTINHO - Barato, não: é o preço.

BRAVO - Enfim, vá lá... Mas eu asseguro que encontrei vasos idênticos no mercado, a 4 dinheiros e meio 40 mil e 500 cruzeiros cada um.

ROSPO - Idênticos?

BRAVO - (Inseguro) Parecidos, semelhantes...

PANDORGA - QUalquer semelhança será pura coincidência. Repito que cada um desses vasos que aí estão, custou 200 guinéus mil cruzeiros. Tenho guardados os recibos, querem certificar-se ver?

BRAVO - Ora essa... Não disse por mal...

ROSPO - Seja pelo amor de Deus!

GENOVEVA - E agora, que vão fazer de interessante?

PANDORGA - Vamos tomar um "drink". Estou satisfeito. Acabamos de duplicar o preço do pão. Só com isso, teremos um aumento de 600 mil dinheiros cruzeiros por mês...

GENOVEVA - E o povo?

PANDORGA - Esta é como o tal Ovelha que aqui esteve... Lembra-se do povo... (Todos riem).

GENOVEVA - Com esse lucro você poderá comprar um palácio...

PANDORGA - Um não, dois...

GENOVEVA - Ah! É verdade. Esquecia-me de Luna a lunática.

PANDORGA - QUero dar-lhe também um palácio. Tenho admiração por ela...

GENOVEVA - O que você tem é medo dela.

PANDORGA - Acha que eu tenho medo de Luna?

GENOVEVA - Acho. Todo mundo acha.

PANDORGA - Talvez seja isso mesmo...

GENOVEVA - Querem que eu sirva aqui mesmo o "drink"?

PANDORGA - Aqui mesmo. Vamos festejar a nossa transação.

GENOVEVA - Então esperem um pouco (Vai ao fundo, corre a cortina e Paulino, que lá estava à espera, entra com rica bandeja; um garrafão de vinho, rodeado de altos copos de cristal). Paulino, sirva a estse senhores, faça as honras da casa.

PANDORGA - Genoveva, você não é uma mulher, é uma multidão de mulheres.

GENOVEVA - Obrigada pelo cumprimento. Senhores, vamos nos sentar? (Todos se abancam; ela serve-os, alegremente).

PANDORGA - Um bom negócio nunca será um bom negócio se não terminar numa mesa como esta, com uma mulher, um garrafão de vinho e quatro patuscos (boêmio/farrista?)

GENOVEVA - Viva o pão nosso de cada dia!

PANDORGA - E o vinho nosso de cada noite!

BRAVo - O pão vale ouro.

ROSPO - Mais do que ouro.

PANDORGA - Hum... Genoveva, que vinho é este?

GENOVEVA - É do melhor de nossa adega... Safra de 1902...

PANDORGA - Hum...

GENOVEVA - Porque perguntou?

PANDORGA - É curioso. Este vinho está com gosto de sangue...

CENA IX
Os mesmos e Luna

Luna - (Entra maciamente) - Vocês falavam de ouro?

PANDORGA - Sim, de vinho e de ouro.

LUNA - De muito vinho, de muito ouro?

PANDORGA - Um rio de vinho, outro rio de ouro...

LUNA - Mas tudo isso para quê?

PANDORGA - Mas para tudo. Com essa torrente de ouro que vai chegar, vou comprar um iate, uma casa à beira-mar, um chalé no alto da montanha. Vou viver uma vida maravilhosa. Uma vida ma-ra-vi-lho-sa...

LUNA - (Gelada) - Quando?

PANDORGA - Quando? Ora essa... Vocês estão vendo? Ela perguntou quando... quando... Esta é muito boa... (Põe-se a rir desabridamente, atira os braços sobre a mesa, afocinha sobre eles, sempre a rir. Depois fica imóvel e em silêncio).

GENOVEVA - Luna, você foi inconveniente...

BRAVO - Ora, deixe-o rir, ele está satisfeito...

ROSPO - Acaba de realizar um grande negócio...

GENOVEVA - (Debruçando-se sobre ele) - Pandorga?

MARTINHO - (Aproximando-se) - Pandorga, êh...

LUNA - Será possível que vocês não vejam vêem o que eu estou vendo? Esperem aí... (Dirige-se a Pandorga, levanta-lhe a cabeça pesada, depois solta-a e ela cai com um ruído seco) - Compreenderam agora?

LUNA - Paulino?

PAULINO - (Entrando) - Que deseja?

LUNA - Carregue o seu patrão para a cama.

PAULINO - (Divertido) - Todos os dias é isto... Já sei...

LUNA - Já sabe? O que é que você sabe?

PAULINO - Ele bebeu a sua conta. Está de porre (Leva-o).

LUNA - Não. Ele não está bêbado.

PAULINO - Então...

LUNA - Está morto.

(Genoveva foge para dentro. Luna cruza os braços

 no peito, inclina a cabeça, fica abstrata.

Bravo, Rospo e Martinho entreolham-se, sorriem,

 sacodem os ombros e vão saindo.

Cada um deles leva o seu vaso, debaixo do braço).

(MUTAÇÃO)


SEGUNDO QUADRO

Uma cortina azul - o céu. De quando em quando, harpejos. Ouve-se uma gargalhada à distância. A seguir, mais próxima. Pandorga entra pela direita, vestido de palhaço. Um desconhecido surge pela esquerda. É um moço de branco, chapéu branco, parassol guarda-chuva branco.

CENA ÚNICA

Pandorga e Anjo

PANDORGA - A boba perguntou: "Quando"? Você ouviu? Esta é muito boa! (Põe-se a rir novamente).

ANJO - (Estaca diante dele e leva o indicador aos lábios) - Psiu!

PANDORGA - Como não hei de rir? Aquela bruxa não acreditou na minha vida...

ANJO - Ela tinha razão.

PANDORGA - Ora essa! Por quê?

ANJO - (Numa confidência) - Você já morreu.

PANDORGA - Mas eu estou vivo. Olhe só para mim...

ANJO - Muitos dos que aqui chegam dizem a mesma coisa.

PANDORGA - Há um minuto apenas eu estava vivo, no país dos vivos. E...

ANJO - E agora está morto, no país dos mortos.

PANDORGA - Mas quem é você?

ANJO - Eu sou o seu Anjo da Guarda.

PANDORGA - Nunca acreditei nessas frioleiras baboseiras. Mas um anjo vestido assim, como qualquer mortal?

ANJO - Cada um me vê a seu modo. Vê em mim o que tem dentro de si. As crianças e as beatas vêem os seus anjos gorduchinhos, nuelos peladinhos, com duas asas brancas. Para você, já sem fantasia, eu sou um indivíduo como outro qualquer.

PANDORGA - Há muito tempo que você me acompanha?

ANJO - Desde o berço.

PANDORGA - E viu tudo o que eu fiz durante a vida?

ANJO - Tudo. Estive sempre ao seu lado.

PANDORGA - Meu Deus, que vergonha...

ANJO - Acompanhei-o sempre.

PANDORGA - Como a minha sombra?

ANJO - Não. Como a sua luz.

PANDORGA - Então sabe da minha riqueza?

ANJO - Sei da sua miséria (Ouve-se o choro triste de uma criança).

PANDORGA - Onde está essa criança?

ANJO - Na terra.

PANDORGA - E a gente ouve aqui?

ANJO - A terra está dentro do céu.

A VOZ DA CRIANÇA - Mamãe, porque é que você não me deu hoje o meu pedaço de pão? Estou com tanta fome...

PANDORGA - Por que motivo a mãe não dá pão à filha?

ANJO - Porque você, aumentando-lhe o preço, roubou o pão que lhe matava a fome.

PANDORGA - Eu?...

ANJO - Sim, você.

PANDORGA - (Fica perplexo um instante) - É verdade. Mas ninguém me explicou isso.

(Ouve-se um tiro. Pandorga sobressalta-se).

ANJO - Não se assuste. Foi na terra.

A VOZ DE UM HOMEM DESESPERADO - Você me tirou o pão da boca. Agora está morto. Eu vou para a cadeia, tu para o inferno!

PANDORGA - Que foi aquilo?

ANJO - Você tomou o pão e transformou-o em ouro. Os homens estão se matando por um pedaço de pão.

PANDORGA - (Aflito, as mãos na cabeça, andando de um lado para outro) - Mas eu não fiz apenas o mal sobre a terra. Todos diziam que eu era um bom cidadão, amigo dos amigos e respeitador da vizinhança.

ANJO - Você, entre os homens, foi um valor negativo. Os outros produziram, você apenas comeu.

PANDORGA - Eu apenas comi?

ANJO - Quer ver? Eu vou lhe mostrar (indica com a ponta do parassol) - Veja lá...

PANDORGA - Uma grande horta. Canteiros de couves, de repolhos, de alfaces, chãos cobertos de batatais, de plantações de nabos, de cenouras, de rabanetes... Mas o que é aquilo?

ANJO - São os vegetais que você comeu durante os 40 anos de vida.

PANDORGA - Lá vem agora muitos animais. Umas vinte vacas, porcos, cabritos, carneiros. Será o que eu suponho?

ANJO - É isso mesmo. Ali estão os bifes, os filés, os leitões assados, os cabritos à caçadora, as costeletas de carneiro. Tudo isso você comeu ao longo da vida.

PANDORGA - Que lindo! Olhe, uma revoada de pombas brancas entre as nuvens...

ANJO - São os "pigeons á la cocotte" que você saboreou.

PANDORGA - E aquele lago negro? Entre duas colinas. está vendo?

ANJO - É o vinho que você bebeu.

PANDORGA - E aquele outro lago, o branco?

ANJO - O leite que você bebeu e o que foi necessário para a fabricação dos queijos, dos cremes e dos doces que alegraram a sua pituitária.

PANDORGA - E aquele lago dourado, com estrias de espumas brancas:

ANJO - A cerveja que você chuchurriou bebeu...

PANDORGA - E aquele monte negro, sobre o qual esvoaçam três corvos?

ANJO - Aquele monte?

PANDORGA - Sim, aquele monte.

ANJO - (Segreda-lhe uma coisa ao ouvido) - É isso.

PANDORGA - Mas, então, eu não fui um homem; eu fui uma máquina de transformar quitutes em escrementos merda!

ANJO - Pela primeira vez você tem razão.

PANDORGA - Mostre-me, agora, as coisas belas e úteis que eu fiz durante a vida.

ANJO - Veja lá, no fundo.

PANDORGA - Não vjo nada.

ANJO - Então é que você não fez nada de belo e útil.

PANDORGA - Certa vez eu dei um dinheiro a um pau-d'água para me ver livre dele. Outra vez assinei vinte dinheiros dei mil cruzeiros numa lista em que figuravam todas as pessoas distintas do bairro. Não me lembro quando, mandei uma quantia ao jornal, para o asilo, a fim de ver meu nome em letras redondas. Num leilão de prendas, em benefício de qualquer coisa, arrematei uma rosa por duzentos dinheiros 10 mil cruzeiros e toda gente admirou a minha generosidade.

ANJO - Nada disso é caridade.

PANDORGA - Então, o que é caridade?

ANJO - Caridade é dar de si para outrem os outros. Pode ser um pensamento de bondade, um sorriso de simpatia, ou uma palavra de consolo. Pode ser uma moedinha de cobre, um naco de pão ou o diamante "Grão Mogol". É a mão que se estende, a atitude acolhedora que se mostra, o u o passo que a gente cede, no caminho, aos que têm pressa de chegar. A primeira condição da caridade é não ser caridade. Pratica-se com a mão esquerda para que a mão direita não veja... Seu clima é o silêncio. O mundo vive pela caridade. Do homem que salva a mosca que lhe caiu no copo de água, ao que oferece um prato de sopa ao mendigo que lhe bate à porta. Do homem que ampara a viúva carregada de filhos ao que constrói um hospital. De Zumbi que morre combatendo ns Palmares para a libertação da sua gente, a Vicente de Paulo que tinha pena do que comia, pois, julgava ele, era um bocado a menos para os pobres. De Francisco de Assis, que amava a pobreza como irmã, a Ele... (Uma música em surdina).

PANDORGA - Ele, quem?

ANJO - Ele. O nome sagrado. O nome que a gente pensa mas não diz. O nome que para pronunciar é preciso ajoelhar-se.

PANDORGA - Ele... Ele... (A música morre, aos poucos).

ANJO - O céu lhe deu um rio de ouro e que fez você de útil?

PANDORGA - (Pensativo) - Não me ocorreu fazer coisa alguma, além daquelas que alegravam a minha vaidade. Você, que é anjo, não sabe disso, mas em finança o meio termo é a pior das misérias. O rico é rico e pode tudo. O pobre é pobre e não se discute. Mas o homem do meio milhão salário mínimo é um desgraçado. Passa a vida a defender-se. Não tem tempo para nada. É como alguém que estivesse a meio suspenso de um nó corrediço com a corda no pescoço. Tem de sustentar-se na pontinha dos pés. Se assentar os pés no chão, enforca-se...

ANJO - Você não teve um amor.

PANDORGA - Tive muitos amores.

ANJO - Não é a mesma coisa.

PANDORGA - Isso é um erro de escrituração. Onde se viu o mais ser o menos?

ANJO - Você não teve um grande sentimento.

PANDORGA - Quando minha mãe morreu, chorei duas lágrimas. Quando meu pai morreu, chorei outras duas. Contei-as. Eu conto tudo. É um hábito de velho guarda-livros contabilista. Mas onde estão agora essas lágrimas?

ANJO - Eu estava ao pé de ti naquelas horas, como sempre. Juntei as gotas cristalinas que eram mais raras, porque haviam caído de uma fonte seca. Ei-las (Abre a mão, mostra alguma coisa) - Está vendo?

PANDORGA - Ó que belos diamantes! (Pega-os, sopesa-os, examina-os). Têm um belo oriente matiz. Com a guerra escassez dos mineiros estão muito valorizados. Quarenta dinheiros 400 mil cada um? Compro-os. À vista. Uma palavra e eu encho o cheque. (Procura o bolso, num gesto instintivo) - Mas que roupa é esta?

ANJO - Roupa de palhaço.

PANDORGA - O gato-pingado roubou-me. Paguei roupa de primeira classe e vim vestido de "clown". Você não vai me enganar que Genoveva e Luna me vestiram de palhaço para descer à cova.

ANJO - Esse é o traje que lhe compete. Na terra, a gente pensa como vive; no céu, a gente vive como pensa.

(Ouvem-se correrias, gritos, pedidos de socorro).

PANDORGA - Que será aquilo?

ANJO - Está acontecendo na terra; um homem esfomeado furtou um pão para comer.

A VOZ DE UM HOMEM ESFOMEADO - Eu luto corpo a corpo com a fome. Quem furta um pão pratica um ato de legítima defesa.

PANDORGA - (Tranqüilizado) - Felizmente eu não tenho nada com aquilo...

ANJO - Como não tem? Foi você quem colocou o pão acima da fome. E, como toda gente precisa comer, os que não o alcançam pelo meio comum, vão buscá-lo pela violência. Quando se aumenta o preço do pão tem-se de alargar-se a Penitenciária.

PANDORGA - Ora, se eu não fizesse outro faria... Posso assegurar-lhe que o velhaco do Nabiça... Você o conhece de sobra. É o gerente dos Moinhos Beringela...

ANJO - Está bem, o Nabiça...

PANDORGA - Pois o Nabiça estava com o olho nesta manobra. Quando eu reuni os interessados e dei o golpe, ele ficou nas pontinhas dos cascos... Mas a praça toda estava comigo. Foi uma vitória daqui... A propósito: o Nabiça não terá também o seu Anjo da Guarda?

ANJO - Todos têm.

PANDORGA - E por que não o impede de fazer maroteiras cambalachos?

ANJO - A nossa voz só se faz ouvir na consciência. Para muitos é difícil de entender.

PANDORGA - Tome lá um charuto cigarro. (Faz menção de levar a mão ao bolso de dentro do paletó, mas não consegue) - Ah. Desculpe-me. É um velho hábito. AInda não estou familiarizado com este mundo.

ANJO - Acontece o mesmo com os outros.

PANDORGA - Mas continuemos. SAe eu não tivesse dado o golpe no Nabiça, te-lo-ia ele o teria feito. E se não fosse o Nabiça, seria o Quiabo, seria o Malagueta, seria o Rabanete. Ou qualquer outro legume. Como você sabe, a praça anda de olho arregalado, à espreita. Onde aparece uma frincha brecha, vem um colega e mete o pé-de-cabra.

ANJO - Que quer você dizer com isso?

PANDORGA - Que desta vez o pão não escapava de dobrar de preço. Pouco importa quem lhe devesse fazer mão baixa fizesse primeiro. Tanto podia ser eu como qualquer outro patife. Por que motivo, pois, serei eu a pagar por um crime que, neste momento, vinte larápios estão desgostosos loucos por não terem podido cometer feito antes?

ANJO - É que foi você o criminoso. O crime não começa na faca. Começa muito antes, no sentimento. O maior delito tem início num pensamento mau, inofensivo como uma lesma. O homem é forte, a lesma é fraca. Quando essa lesma encontra clima preparado, cresce, faz-se agressiva. O homem mingua, a lesma engorda. Dentro de pouco, o homem é um boneco, a lesma uma jararaca. Uma cascavel. Um urutu. O homem torna-se um menino. A lesma continua a crescer em tamanho e peçonha. QUando o homem se converte numa criança de peito, a lesma já virou sucuri. Para alimentá-la, é preciso um boi. Então, a serpente envolve-o em seus anéis e vai apertando, constringindo... Chega a hora em que o pensador não existe; só existe o pensamento. Por isso é que muitos criminosos repetem "eu matei sem querer". E, em parte, dizem a verdade.

PANDORGA - Então, os grandes crimes...

ANJO - Começaram por uma topada.

PANDORGA - Ah! Se a gente soubesse disso, lá em baixo...

ANJO - Onde?

PANDORGA - Na terra.

ANJO - A terra, neste momento, não está lá em baixo, está lá em cima.

PANDORGA - Ah! Se eu voltasse...

ANJO - Muitos mortos dizem a mesma coisa.

PANDORGA - Pois eu lhe juro que haveria de proceder agir de modo diferente.

ANJO - Não acredito. Os homens são lagartas. Quando eles adquirem consciência na terra, começam a construir o seu próprio casulo, de preocupações e interesses. E nele ficam enclausurados. São como o bicho da seda; para tirá-los de lá é preciso cozinhá-los...

PANDORGA - E ficam lá enclausurados para sempre?

ANJO - Não. Um dia, dia que para os homens é muito distante, viram borboleta.

PANDORGA - E alguém já virou borboleta?

ANJO - Todos os dias um homem rompe o casulo.

PANDORGA - Preciso voltar à terra. Desejo levar uma vida exemplar, como o meu vizinho da direita, que conversa nas esquinas com os pobres.

ANJO - Escute...

(ouve-se o vozerio da chusma de uma multidão. Gritos, ameaças, risadas, pedidos de socorro).

PANDORGA - Que é aquilo?

ANJO - Essa algazarra vem da terra. É a multidão em fúria que está assaltando as padarias.

PANDORGA - Para matar os padeiros?

ANJO - Não. Para matar a fome.

PANDORGA - De quem é a culpa?

ANJO - A culpa é sua.

PANDORGA - Deixe-me voltar à terra. Eu procurarei corrigir todos os males que fiz.

ANJO - Pense no que está dizendo...

PANDORGA - Tenha piedade de mim!

ANJO - Você ainda está dentro do casulo.

PANDORGA - Rompe-lo-ei Vou rompê-lo. Inda Ainda que seja preciso estourar.

ANJO - Quem volta à terra esquece o céu.

PANDORGA - Mas eu não esquecerei.

ANJO - Confessa-se arrependido?

PANDORGA - Quero remediar os meus erros...

ANJO - Está bem. Você voltará, mas pela metade.

PANDORGA - Não entendo.

ANJO - Mas entenderá.

PANDORGA - A metade fará o que o inteiro não fez.

ANJO - Pois então, morra.

PANDORGA - Morrer outra vez?

ANJO - Quem morre na terra nasce no céu, quem morre no céu nasce na terra.

PANDORGA - Por piedade!

ANJO - Seja feito o seu desejo... (Conduze-lo pela mão)

PANDORGA - Eu quero ser bom! Eu quero ser bom!

(MUTAÇÃO)


TERCEIRO QUADRO

O mesmo "hall" do primeiro quadro, sem os vasos. Luna está sentada à mesa e, diante das cartas, consulta o porvir futuro. Paulino, de libré, o tricórnio para a frente, os braços cruzados no peito, guarda a porta.

CENA I

Paulino e Luna

LUNA - Outra vez, sete de ouros!

PAULINO - Que quer dizer isso?

LUNA - Uma novidade importante.

PAULINO - Não sei que novidade será essa, com o patrão morto lá dentro.

LUNA - (Sempre ocupada com as cartas) - Você gostava dele?

PAULINO - Não tenho queixa de Pandorga. Sempre me tratou bem. E era folgazão. Toda noite, depois do bródio banquete, eu o tomava nos braços e o deitava ali naquele quarto, onde ele está agora. Ai ai! Que vou eu fazer desta vida...

LUNA - É curioso...

PAULINO - Então não hei de ser curioso?

LUNA - Não é com você. Refiro-me às cartas.

PAULINO - Ora, as cartas... Que nos adianta saber o que vai acontecer, se não podemos mudar o destino?

LUNA - Pois é curioso. Até há pouco, as cartas falavam de morte. Agora, de um momento para outro, não falam mais. Não sei o que deva preferir... (Voltando-se para Paulino) - E você, o que prefere?

PAULINO - Prefiro com soda e muito gelo.

LUNA - (Lendo as cartas) - Uma novidade pela porta do quarto... vai nascer um homem... Grandes coisas acontecerão.

PAULINO - (Sacode a cabeça, coça o queixo) - Se isto continua assim, eu boto a cara no mundo... Esta mulher me faz medo...

CENA II

Os mesmos e Genoveva

GENOVEVA - (Entra assustada) - Já sabem? O médico não quis passar o atestado de óbito. Disse que Pandorga teve uma congestão e vai acordar dentro de daqui a pouco.

LUNA - O sete de ouros!

GENOVEVA - Que sete de ouros?

LUNA - (Mostrando a carta sobre a mesa) - Este.

GENOVEVA - Ah! Pensei que fosse algum remédio.

PAULINO - Vão ver que Pandorga tapeou a morte. Ele não respeita nada. Nunca vi uma coisa assim. Quando vivo, só usava cheque. Não escondia dinheiro com a mão direita com medo da canhota.

GENOVEVA - Vão tomar conta dele. Eu tenho de ir à farmácia.

LUNA- Paulino! Venha comigo.

PAULINO - Eu?...

LUNA - Você mesmo. Quem havia de ser?

PAULINO - Por que não vai com o valete de copas? Eu sou nervoso. Não gosto dessas cenas...

LUNA - Pandorga morre, ninguém chora. Pandorga nasce, ninguém ri (Some-se no interior da casa).

GENOVEVA - Estou perplexa (Pinta os lábios e sai).

PAULINO - Estou assombrado. (Vai à cortina do fundo e espia para dentro) - Lá vem a bruxa carregando o patrão.

CENA III

Pandorga, Luna e Paulino

PANDORGA - (Chega pelo braço de Luna. Veste um terno metade branco, metade preto [esquerdo]. Arrasta a perna branca [direita], tem no bolso do paletó o braço branco). Cuidado... Cuidado...

Luna - Paulino - venha ajudar.

PAULINO - (Correndo a auxiliá-la) - Afinal, ele não está morto como dizem.

LUNA - Meu caro Pandorga. Aqui no "hall" você estará melhor do que lá na cama. Aqui respira-se ar fresco.

PANDORGA - Onde está a minha perna esquerda?

PAULINO - Está aqui. Olhe só para ela.

PANDORGA - E o meu braço esquerdo?

PAULINO - Parece vazio. Tem a mão metida no bolso.

LUNA - Sente-se aqui nesta cadeira. E não fale muito, para não fatigar-se. Está ouvindo? (Paulino e Luna sentam pandorga na cadeira).

PANDORGA - A que horas deu-se a morte/

LUNA - A morte de quem?

PANDORGA - A minha, está claro ora! De quem havia de ser?

PAULINO - SE começam a falar assim eu meto a cara...

LUNA - Você teve um ataque há meia hora.

PANDORGA - Meia hora? Então tudo o que aconteceu passou-se em meia hora?

LUNA - Vamos lá, quarenta e cinco minutos.

PANDORGA - Foi uma coisa do arco da velha. E onde está o Anjo?

LUNA - Que Anjo?

PANDORGA - O Anjo da Guarda.

LUNA - Você está delirando.

PAULINO - Delirando? Isso é o resto da cambóca ressaca.

PANDORGA - Chamaram o médico?

LUNA - Chamamos. Ele esteve aqui. Genoveva foi aviar a receita.

PANDORGA - Que O que ele disse ele?

LUNA - Que era uma indisposição. Nada de importante. Voltará amanhã.

PANDORGA - Ele não viu que eu estava morto?

LUNA - Não fale nisso.

PANDORGA - Ah! Se não fosse o Anjo!

LUNA - Mas que Anjo?

PANDORGA - O Anjo da Guarda. É inútil explicar, pois vocês não entenderiam.

PAULINO - Quem sabe se uma xícara de café sem açúcar?

PANDORGA - Agora eu sou outro.

LUNA - Não. Você é o mesmo.

PANDORGA - Eu que digo é por que sei.

LUNA - Está bem. Depois você nos contará tudo.

CENA IV

Os mesmos e Genoveva

GENOVEVA - (Entra com um vidro de remédio) - Olá, que bom! Já sarou da sua indisposição. Sabe que nos assustou? O médico disse que não é nada de importante. Mandou-lhe este calmante... Como deseja tomar?

PANDORGA - Com "wisky".

GENOVEVA - Sempre o mesmo.

PANDORGA - Não. Agora sou outro. Vocês vão ver. Em primeiro lugar venderei este palacete, liquidarei as ações e "coupons" da dívida pública...

LUNA - Vai para uma estação de águas?

GENOVEVA - Vai viajar no estrangeiro?

PANDORGA - Vou distribuir o dinheiro pelos pobres.

LUNA - Mudou muito.

GENOVEVA - Quem diria... (Chama Luna de parte e diz-lhe ao ouvido, em tom veemente) - Pandorga está sofrendo da cabeça. Temos de chamar o advogado e prpor com urgência a sua interdição.

LUNA - (A Pandorga) - E eu? Fico a mendigar?

PANDORGA - Ora, você nunca vez outra coisa.

GENOVEVA - E a mim, você abandona na rua?

PANDORGA - A rua é uma vitrina. Você é um belo manequim.

LUNA - (A Genoveva) - Foi para isto que ele voltou a si?

GENOVEVA - Por que não ficou morto?

PAULINO - Morrer é triste, mas ressuscitar é muito mais.

CENA V

Os mesmos, Bravo, Rospo e Martinho

BRAVO - (Entra com ar compungido, trazendo um pão de rosca à guisa de coroa) - Meus pêsames, minhas senhoras. Vim trazer-lhes uma coroa. Como negociante de pão, achei melhor trazer uma rosca...

ROSPO - (Entra igualmente compungido, com uma grande couve-flor) - Quero também apresentar-lhes as minhas condolências. Pandorga era louco por couve-flor. Por isso trago isso, ao invés de rosas...

MARTINHO - Minhas senhoras. Em primeiro lugar os meus sentimentos. Depois a entrega desta bonita abóbora. Sei que Pandorga era da pele do Demônio e esta abóbora tem por fazer-lhe peso na tampa do caixão, no caso de que ele se arrependa de ir desta para melhor...

GENOVEVA - Ei-lo aqui. Está vivinho da silva e bem pode receber pessoalmente as suas homenagens. (As 2 mulheres se retiram).

BRAVO - Olhem aqui o maganão! Rijo e são como um pero!

ROSPO - Que susto você nos pregou!

MARTINHO - Ainda bem que o encontramos vivo.

PANDORGA - Meio vivo.

MARTINHO - Vá lá, meio vivo.

PANDORGA - Meio morto.

MARTINHO - Não entendo. Mas, meio vivo ou meio morto, você vai tomar de novo o fio do nosso negócio...

PANDORGA - Tomar de novo...

BRAVO - (Dá um beliscão em Martinho) - De novo quer dizer, depois que você se restabelecer...

MARTINHO - Não pense no velhaco do Nabiça, gerente dos Moinhos Beringela.

PANDORGA - Eu não penso em coisa alguma, vocês é que deixam transparecer.

ROSPO - Tudo continua como dantes.

PANDORGA - Pois eu tenho um saco de novidades.

BRAVO - Despeje o saco. Somos todos ouvidos.

PANDORGA - Antes do mais: estive no céu.

BRAVO - Não venha cá com intrujices. Onde é que se viu um homem como nós, ao morrer, ir parar no céu...

PANDORGA - E para onde vai então?

BRAVO - Nossa alma não sobe, cai. Não sobe para o céu, cai para debaixo da cama.

PANDORGA - Pois eu estive no céu. Lá um anjo me mostrou que eu estava errado e que não devo mais meter-me em negócios escusos, de marca daquele que íamos fazer para dobrar o preço do pão.

BRAVO - E onde está esse anjo?

PANDORGA - Está em toda a parte.

BRAVO - Quero ouvi-lo...

PANDORGA - Escute lá... (Grita) - "Não é assim?"

O ECO - ... Sim.

PANDORGA - "Quem me repreendeu"?

O ECO - ...eu

PANDORGA - "Mando esta gente embora"?

O ECo - ... ora...

PANDORGA - Como estão vendo, não posso mais seguir o caminho errado pelo qual vocês me conduziam.

ROSPO - Não queira nos intrujar. Isso é o eco. QUando eu era criança, ia gritar debaixo de uma ponte só para ouvir a resposta do eco. Todo mundo sabe disso (Grita) - "Quem sou eu"?...

O ECO - ... ladrão!

BRAVO - Não vale. Você pagou o porteiro para ficar atrás do muro, a fingir de eco.

PANDORGA - Com eco, ou sem eco, voltei à terra para mudar de vida. De hoje para o futuro serei um homem bom, honesto, benfazejo, um verdadeiro pai da pobreza...

BRAVO -  Olhem o malandro!

ROSPO - Como se sente morto, quer pregar um conto do vigário no céu.

MARTINHO - Mas que piada! É mesmo um piadão! Vou contá-la esta noite, aos meus fregueses. Eles vão estourar de rir!

PANDORGA - Passem-me cá o acordo assinado esta manhã.

ROSPO - QUe vai fazer?

BRAVO - Ei-lo (Dá-lhe um papel).

MARTINHO - Esta está mesmo na pontinha da orelha...

PANDORGA - (Rasgando o papel) - Acabou-se. O preço do pão não será aumentado de cinqüenta por cento, ao contrário, será reduzido na mesma proporção. Compreenderam?

BRAVO - Muito bem (Diz um segredo ao ouvido de Rospo, este aprova e vai repeti-lo ao ouvido de Martinho).

MARTINHO - (Depois de entender-se mudamente com os companheiros) - Meu caro Pandorga, a conversa está muito boa mas eu tenho de afastar-me. Até logo (vai saindo).

PANDORGA - Já? Eu ainda não expus tudo quanto de belo e útil vou fazer daqui por diante. Espere mais um pouco.

MARTINHO - Tenho pressa. Até logo.

PANDORGA - Mas, afinal, onde vai você?

MARTINHO - (Saindo) - Vou à esquina, bater uma carteira...

CENA VI

Pandorga, Bravo e Rospo

BRAVO - Agora, Pandorga, falemos a sério. Que pretende você com essa brotoeja de bondade que o acometeu?

PANDORGA - Quero levar uma existência digna.

BRAVO - Não nos esconda as suas intenções. Estamos certos de que se trata de um golpe gigantesco. Mas contra quem?

PANDORGA - Contra o céu...

BRAVO - E qual será o nosso interesse no seu último golpe?

PANDORGA - Desejaria tê-los ao meu lado, honestos, trabalhadores, benquistos por Deus e pelos homens...

BRAVO - O velhaco!...

ROSPO - O patife!

BRAVO - Vais abandonar-nos ao nosso destino...

ROSPO - Precisamente quando o golpe ia dar grandes resultados...

PANDORGA - Vou vender a casa, despedir as mulheres, botar os criados no olho da rua, vender as ações, negociar os títulos da dívida pública e depois...

BRAVO - Vais para a Europa.

PANDORGA - Não. Vou morrer em paz.

BRAVo - E que vais fazer do dinheiro?

PANDORGA - Restituí-lo aos pobres, para que as crianças não chorem por falta de pão, para que os homens não se matem por causa de um sovado, para que a chusma enraivecida e maluca não assalte e incendeie as padarias. Compreendem?

BRAVO - Compreendemos. Estás cansado de assaltar a terra, agora resolvestes assaltar o céu.

PANDORGA - E vocês?

BRAVO - Nós não topamos a parada. Achamos que esse golpe é um tanto perigoso. Preferimos assaltar um banco.

ROSPO - É isso. Preferimos um banco.

PANDORGA - Homens incrédulos! Homens endurecidos no crime! Que poderei eu fazer por vós? Acabrunha-me o destino que levareis...

BRAVO - Se você quer ir para o céu, vá sozinho. Nós nos arranjaremos para aqui mesmo...

PANDORGA - Será difícil.

BRAVO - (Rindo) Difícil?

ROSPO - (Mostrando os dentes) - Difícil? Mas que idiota!

PANDORGA - Que farão vocês?

BRAVo - Arranjaremos outro homem dinâmico.

PANDORGA - Como eu?

BRAVO - Mais eficiente do que você.

PANDORGA - Não acredito. Os homens dinâmicos, capazes de levar a cabo uma grande empresa, não andam por aí, aos pontapés...

BRAVO - Já temos um em vista.

ROSPO - E que homem! Que dinamismo!

PANDORGA - (Suspeitoso) - Quem é ele?

BRAVO - O Nabiça, dos Moinhos Beringela.

PANDORGA - O velhaco do Nabiça! Resta saber se ele aceita. Não acredito.

BRAVO - Há de aceitar.

PANDORGA - Quando vão vocês propor-lhe a marosca?

BRAVO - Já estamos tratando disso.

PANDORGA - Neste momento?

BRAVO - Neste momento.

PANDORGA - Vocês são dois urubus; não respeitam a metade de um cadáver.

BRAVO - Nós vivemos na terra. Isto aqui não presta, mas para falar verdade, tem as suas doçuras...

CENA VII

Os mesmos e Martinho

MARTINHO - (Chegando da rua) - Rapazes, fui à esquina, telefonei ao Nabiça, ele topou a parada. Está pronto a chefiar um aumento de cem por cento do preço do pão. Só vendo como ele falou. Aquilo é que é homem dinâmico. Com um homem dinâmico daquela marca eu irei até o inferno!

BRAVO - Está vendo, Pandorga? Ninguém faz falta no mundo.

ROSPO - Eu sempre disse que o Nabiça é que é o tal.

PANDORGA - (Erguendo-se) - Então vocês pensam que eu entreguei assim as minhas cartas? Ainda não morri de todo. Ainda me sinto com forças para lutar com a concorrência...

CENA VIII

Os mesmos, Genoveva, Luna e Paulino

Saem dos fundos da casa e passam pela frente do "hall", um atrás do outro. Genoveva conduz uma mala, Luna uma cesta de pano e Paulino uma trouxa às costa. Passam diante do "hall" onde se encontram os quatro homens.

BRAVO - Lá vão, de mala e cuia...

ROSPO - Eles têm faro. Sentiram que a casa cheira a miséria.

MARTINHO - Nem se despediram do Pandorga.

PANDORGA - Esperem um pouco! (Eles estacam) Eu ainda não disse a última palavra!

GENOVEVA - Se havia de ser amanhã, seja hoje.

LUNA - É melhor sair do que ser obrigada a sair. O baralho só está dando quatro de paus...

PAULINO - À greve! À greve!

PANDORGA - (Aos companheiros) - Se o velhaco do Nabiça lhes promete um aumento de cem por cento, eu lhes garanto aumento de cento e cinqüenta por cento!

BRAVO - Será possível?

PANDORGA - Vocês sabem que eu não minto.

ROSPO - Então está resolvido?

PANDORGA - De pedra e cal.

MARTINHO - Vamos começar hoje. Mas como?

PANDORGA - Escondendo os "stocks" de farinha. Produzindo a metade do pão. Declarando que o trigo é insuficiente, agitando a multidão, estabelecendo um câmbio negro.

GENOVEVA - E o Anjo?

LUNA - E o Anjo?

PAULINO - E o Anjo?

PANDORGA - O anjo é do céu, não entende destas coisas comezinhas cá da terra.

Genoveva, Luna e Paulino fazem meia volta e tomam pelo mesmo caminho. Bravo, Rospo e Martinho vão a sair.

BRAVO - Viva o Pandorga!

ROSPO - O homem dinâmico!

MARTINHO - O homem insubstituível!

PANDORGA - Boa noite.

BRAVO - Mas ainda não é noite...

PANDORGA - Eu faço os dias e as noites. Querem ver? (Torce o comutador da luz, acendem-se as lanternas, a cena fica iluminada de roxo, os sócios caminham rindo para a direita, os da casa, lentamente, para a esquerda. Ele fica só, pensativo. Depois, respondendo a si mesmo):

PANDORGA - As cenouras são de boa qualidade, a horta é que está mal plantada... Isto é Ou melhor: os homens são bons, a humanidade sociedade é que não presta!

***

Trecho relevante de carta enviada a Aldo Schmidt pela professora de artes cênicas Lúcia Amélia de Oliveira Alencar, em 28/7/1993

Imagem cedida a Novo Milênio por Aldo Schmidt, em 19/3/2008

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