(Copyright da Imprensa Brasileira Reunida Ltda. (I.B.R.) - Exclusividade no Estado de S. Paulo para a "Folha da Manhã")
Afonso Schmidt
No ano passado fui a Porto Alegre, como repórter que sou, publicar algumas impressões sobre a Exposição Farroupilha. É sempre com prazer que vou ao Rio Grande do Sul, pois tenho
grande simpatia por aquele povo e pela sua vida de campanha.
Lembro-me de que certa vez, nas proximidades de Valença, recebi convite para jantar numa chácara, em companhia de outras pessoas. Desde que transpus a porteira, fui como que tomado por uma visão: comecei a
reconhecer as árvores, a casa velha, o barracão ao lado, onde se via um carro com os varais para cima... Depois, o largo corredor atijolado, as salas, a mobília, a varanda com a grande mesa ao centro, e, por fim, - isso me pareceu inacreditável - o
pátio interno, de terra escura, onde se erguia uma árvore solitária... A minha emoção devia ser muito forte, pois chamou a atenção do dono da casa que, a sorrir, me perguntou o que é que tanta admiração me causava:
- É incrível; este cenário é exatamente aquele em que fui criado, no litoral de São Paulo; não ficaria admirado se meus avós me viessem receber como antigamente, quando eu tinha oito anos...
Mas, como ia contando, no ano passado estive em Porto Alegre, durante a Exposição Faroupilha e, por falta de acomodações no hotel a que me destinava, hospedei-me numa pensão do Caminho Velho, modesta mas muito
interessante pela fauna de pensionistas. Na manhã seguinte fui procurado por uma colega da imprensa gaúcha. O cartão dizia assim: Maura de Senna Pereira, jornalista. Devia ser algum assunto relativo à exposição. Dirigi-me à sala e lá encontrei-a à
minha espera. Era uma moça que logo à primeira vista me pareceu muito inteligente.
- Vim entrevistá-lo.
- Deve ser engano; eu não sou da comissão.
- Não. É ao senhor mesmo.
- Mas eu sou seu colega. Não dou, costumo pedir entrevistas...
- Quero que me fale sobre... Sobre teatro...
- Como sabe que eu gosto de teatro?
- Li sua peça que há pouco foi publicada; quem escreve uma peça assim deve ter ideias diferentes sobre teatro.
Não sei o que lhe disse, mas o caso é que logo depois apareceu num dos grandes jornais de Porto Alegre a entrevista. E estava interessante. Ela, de fato, era escritora e cheia de vivacidade e encanto, pois
conseguiu, sem sair da verdade, dar interesse a umas palavras que eu, na minha rara condição de entrevistado, fui-lhe dizendo com o ar que julguei mais consentâneo a um homem de quem se deseja conhecer a opinião para transmiti-la ao público.
Logo depois tive oportunidade de encontrar Maura de Senna Pereira em diversas reuniões e pude, então, admirar o seu belo talento, cheio de delicadeza e novidade. Nascera em Santa Catarina, de uma tradicional
família de homens do mar. Casada, profundamente artista, fora para Porto Alegre, onde o meio lhe oferecia maiores possibilidades de êxito. Entrou ali para um vespertino que teve existência efêmera e desse jornal passou para outro, de tradição e
tiragem. Tornou-se dentro de pouco uma figura das mais brilhantes do mundo intelectual de Porto Alegre, mas a sua arte, absolutamente moderna, espontaneamente diferente, não era a mais desejável para os editores de lá como para os editores do mundo
inteiro.
Remeti para certo jornal do Rio de Janeiro uma de suas poesias e no domingo seguinte, na página de honra, lá vinha ela vertiginosamente ilustrada por um grande artista. Não sei a sua impressão porque a esse tempo
eu já tinha voltado do Sul.
Há dias recebi uma carta de Maura de Senna Pereira: está passando uns tempos em Florianópolis, na casa de sua família, antes de seguir para o Rio de Janeiro, onde vai trabalhar na imprensa, pois tem decidida
vocação para o jornalismo. Sua arte ainda não é muito conhecida na capital da República. No entanto, assim que ela fizer a sua entrada no mundo intelectual carioca, dando a conhecer seus admiráveis poemas, conquistará o lugar que lhe pertence de
uma das mais altas representantes do espírito feminino no Brasil.
Ninguém lê uma produção de Maura Senna Pereira sem guardar o seu nome para sempre; sua inspiração é larga, sua expressão inteiramente nova para nós, sem apresentar, no entanto, a mais ligeira sombra de artifício.
Acredito que ela alcançará, de modo diferente e muito seu, o êxito que aureola o nosso grande poeta Catulo da Paixão Cearense. Sua arte, além de nova, é também inconfundível.