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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, na Folha - 15

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Affonso Schmidt foi também colaborador do jornal paulistano Folha da Manhã, (que daria origem ao jornal Folha de São Paulo e ao grupo homônimo. Na edição de terça-feira, 24 de novembro de 1936, página 6, foi publicado este texto do escritor (acervo Folha - acesso em 9/4/2016 - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

A profissão de escritor

(Copyright da Imprensa Brasileira Reunida Ltda. (I.B.R.) - Exclusividade  no Estado de S. Paulo para a "Folha da Manhã")

Afonso Schmidt

Houve um tempo em que ser escritor era, só por si, uma espécie de glória. O homem que manejava a pena, porque não gostava da enxada, a pá ou o martelo, sentia ao redor da cabeça uma luminosidade sobrenatural. Felizmente, as condições especiais do nosso século estão pondo cobro a tais desmandos da imaginação e, com grande prazer e honra para nós, profissionais da letra redonda, estamos sendo reintegrados na comunhão honesta dos que trabalham para viver.

A produção literária é, sem favor, um gênero de primeira necessidade. Ao escrever esta frase lembro de uma tradição familiar. Minha bisavó, uma vicentina, repetia a cada passo: "Prendam-me, mas deem-me livros". É frequente sabermos de pessoas que sacrificam o vestuário e até a alimentação em proveito da compra de livros. Mas não precisamos recorrer às exceções: qualquer pessoa medianamente culta já não passa sem o livro, a revista ou o jornal, como também sem o cinema ou o rádio, que são ramos novos da profissão de escritor.

O escritor, portanto, já tem a honra de figurar entre os carpinteiros, os médicos, os engenheiros, os tecelões e todos os profissionais. A história de que nas horas de inspiração as Musas vinham auxiliar os poetas a fazer os seus versos acabou. Parece-me que foi Amadeu Amaral a protestar contra isso, afirmando que o melhor do verso é a dificuldade que se sente ao fazê-lo e que esse prazer ele se recusava a compartilhar com Polymnia, Erasto ou Clio. Verso custa sangue. O seu ao seu dono. Se o poeta não é um ser sobrenatural, por ouro lado não recebe auxílios exteriores que lhe diminuiriam o valor do trabalho. "Gênio é paciência", dizia um de nossos maiores.

Quanto ao romancista, então, é que as lendas de inspiração, de dom, de predestinação etc. se desvanecem por completo. Escreve romances quem quer, ou melhor, quem escolheu essa profissão e dela fez um ligeiro aprendizado. Há países onde as dificuldades de vida, ou talvez, o elevado salário dos escritores, criam novelistas com fartura. Na América do Norte, a "história-curta", destinada aos dez mil magazines que lá se publicam, é "um bico" para funcionários aposentados e prestimosas donas de casa. Quem tem uma ideia, escreve um conto e leva ao jornal: são 500 dólares pela certa.

Os enredos para filmes são escritos por estudantes, soldados e ascensoristas. Geralmente são uma espécie de jogo de paciência: a fábrica de filmes dispõe de um naufrágio, uma corrida de cavalos, a construção do último andar de um arranha-céu, o estouro de uma boiada. Então, pede aos seus colaboradores que reúnam tudo isso num enredo. Eles não têm mais do que articular, com uma certa lógica, as referidas peças. E o trabalho está pronto.

Se o admirável Cervantes não houvesse naufragado numa ilha deserta e não tivesse sentido a necessidade de encher o tempo com alguma ocupação, talvez a literatura universal não contasse hoje uma das suas mais lindas expressões: o Dom Quixote de la Mancha.

Ainda mais: Fernão Mendes Pinto, que é um dos mais legítimos clássicos da língua portuguesa, nunca soube que era escritor. Se lá no Paraíso, onde ele deve estar, lhe contaram que deixou sobre a terra páginas primorosas e que é considerado um mestre da língua que falou, ele, como bom marujo, há de dar gostosas gargalhadas. Sabe-se que depois das suas viagens, já velho e cheio de achaques, recebeu uma tença e foi morar pobremente do outro lado do Tejo, naquela pitoresca Cacilhas, dos passeios dominicais sobre jericos. Ali também, para matar o tempo que o matava, ele foi escrevendo as Peregrinações, na completa ignorância dos seus coevos e de si mesmo. Mais tarde compreendeu-se que aquilo não era apenas um livro: era um monumento.

Aqui mesmo temos exemplos. Manoel Antonio de Almeida, autor de Memórias de um Sargento de Milícias, que é um precursor e um grande romancista, foi tratar da vida. Diz um de seus críticos: "Escreveu-as de um jato, vê-se, e com uma absoluta despreocupação de forma - mais: com um relaxamento imperdoável". Os editores baratos, durante quase um século, acabaram de comprometer o aspecto da obra.

"E assim chegou até nós essa obra-prima -, acrescenta o crítico -, linda criatura coberta de frangalhos, cara suja, cabelos despenteados, unhas compridas..." Só ficou como devia quando alguém - parece-me que o nosso grande Lobato - deu-lhe um banho com caco de telha.

Outro livro interessante: O Paulista. Escreveu-o o dr. Augusto Cesar Barros Cruz, de Itu, nos anos que se seguiram a 1890; foi publicado naquela cidade, numa modestíssima edição, em 1895. Conta-se que a obra encalhou e quando o autor morreu ainda havia montões de livros, atulhando quartos. Esse romance que o autor escreveu - segundo conta o prefácio - porque a crise não permitia que exercesse com vantagem a sua profissão de advogado, é nada menos do que uma linda novela do tempo das bandeiras, mostrando notável conhecimento de história, com figuras bem desenhadas e quadros nitidamente evocados do nosso remoto passado. Apresenta-nos também Palmares, com uma forte emoção. No entanto, é o trabalho inesperado de um homem de talento que, no fim da vida, por motivos exteriores, quis escrever um livro. Ele, com certeza, não sabia que era romancista.

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