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O poeta e a morte
(Copyright da Imprensa Brasileira Reunida Ltda. (I.B.R.) - Exclusividade para a "Folha da Manhã" no Estado de S. Paulo)
Afonso Schmidt
(Autor de "Pirapora", "Curiango", "Os Impunes" etc.)
Há trinta anos São Paulo tinha um poeta eminentemente popular: Saturnino Barbosa. Professor público, amigo dos livros ele, de quando em quando, alarmava a nossa sensibilidade
romântica de provincianos com livros que faziam barulho. Tudo nele era novo para aquela época, da abolição da métrica ao sentido filosófico, gritadoramente negativista, da sua poesia.
Com o passar do tempo, o que nele era escândalo tornou-se moeda corrente, no que se refere à feitura dos versos. Mas até hoje ainda não se fez a justiça de dizer que o movimento chamado moderno que mais tarde
desabrochou e floriu, até entrar novamente em declínio, teve como precursor aquele professor público, gordo, alto, vermelho, com um bengalão destinado a enfrentar a crítica que, na verdade, para a sua obra, esgaravatou o dicionário à procura de
novos apodos.
No mundo dos nossos poetas, ele agitou as sensibilidades, mostrou o caminho para muitos e deu por terminada a sua missão. Durante os anos seguintes deu pouco que falar de si. De quando em quando, um livro
filosófico, mas em prosa, por sinal que escorreita. Ele, que brigou com Castilho, tem uma grande simpatia pelos clássicos. Sabia-se também que ele era presidente de uma Academia de Letras, entre as 44 que mandam fazer os fardões no Garcia imperador
da moda.
Há dias encontrei Saturnino Barbosa. Ainda usa o bengalão cujo ponteiro alarmava os críticos de 1907, mas pareceu-me um tanto alquebrado. A idade não é biscoito. Trinta anos são uma existência. Nos olhos, um par
de lunetas fumadas; na boca um sorriso bom, que as coroas tornam dourado. Foi um grande prazer esse encontro, tanto mais que o poeta ofereceu-me um exemplar do seu último livro, intitulado: "A Filosofia da Morte". Não conheço outro trabalho desse
gênero.
Ele, inovador como sempre, achou um caminho novo ou pelo menos atualizado na floresta literária, onde todos os caminhos já foram palmilhados. Espiritualista, crente de que a evolução humana é uma linha pontuada em
que cada ponto representa uma existência à parte, ele indica nessa obra às pessoas de relevo nas leras, nas artes, na política, na administração etc. - aspectos de suas vidas anteriores, a que chama de "painéis etéreos". Essa obra interessou a todo
mundo, tanto mais que, segundo parece, está fora do mercado.
A nossa geração - pelo que se depreende das suas páginas - está cheia de papas, reis e grandes nomes do passado. Para dar uma ideia da riqueza de grandes nomes de antanho que andam por aí e nos acotovelam na rua
de São Bento, citarei o meu caso. Eu sou, com certeza, o mais modesto dos "reencarnados". Um trovador errante. Nada mais que Pierre Vi[]al, nascido em Toulouse no século
XII e morto nos primeiros anos do século seguinte, depois de haver vagabundeado por toda a Europa, até msmo por alguns países do Oriente. Fiquei tão impressionado... comigo mesmo, que já escrevi a Paris, encomendando as "minhas" obras. Claro que na
carta não empreguei a palavra "minhas", para não impressionar mal ao livreiro...
Mostrei essa obra a um médico, meu amigo, que após trinta anos de clínica se recolheu a uma chácara onde cria galinhas de raça e paradoxos. Ele leu algumas páginas e depois disse:
- Está certo. A tendência atual é para tirar a importância da morte. É uma obra piedosa como qualquer outra, pois tranquiliza aos que não se conformam com o aniquilamento da personalidade. Eu, por mim, durante a
clínica, cheguei a conclusões muito interessantes que nada têm a ver com este livro, mas vou enumerá-las. Por exemplo: quando você vir num jornal que alguém se suicidou por causa de uma "moléstia incurável", pode ficar certo de que essa pessoa foi
vítima de um pavoroso engano, pois o fato de ter chegado a tal extremo é a prova segura de que não sofria da enfermidade que supunha, ou se padecia, a moléstia não era incurável.
- Eu explico melhor. Entre todas as doenças só existe uma verdadeiramente incurável: é a que nos mata. Mas essa, a julgar pelas estatísticas, poucas vezes pertence ao número daquelas que têm nomes sombrios, que
nos arrepiam. É geralmente uma gripe, uma unha encravada, uma espinha que a gente espreme com as unhas...
Mas há uma profunda diferença entre a enfermidade que mata, seja ela a mais modesta influenza, e a doença que não mata, mesmo que seja uma apendicite supurada. A verdade é esta: a doença que mata prepara o doente
para a morte, torna-o cordato e conformado, chega mesmo a dar-lhe um inexplicável desejo de extinguir-se. A doença que não mata é precisamente aquela que exaspera todas as nossas possibilidades de reação. Quem não quer morrer não morre. Se assim
não fosse, poucos morreriam na cama; teríamos de andar caçando agonizantes pela rua, pois é restrito o número dos que se vão extinguindo aos poucos até desaparecerem.
Ainda um pormenor que deve tranquilizar os vivos: a moléstia que mata, de um certo ponto em diante, não produz sofrimento. Ao contrário: o doente entra num inesperado bem estar. Foi o que observei em numerosos
casos. Quando começa o período final, que pode iludir a parentes e amigos mas não ilude o enfermo, porque ele já percebe em si a eclosão de um estado diferente, tem-se a impressão de que ele melhorou. É o bem-estar de que falei: é o que chamamos
comumente de "visita da saúde".