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Eu e a preguiça
(Copyright da Imprensa Brasileira Reunida Ltda. (I.B.R.) - Exclusividade para a "Folha da Manhã" no Estado de S. Paulo)
Afonso Schmidt
Há trabalho e trabalho; o trabalho propriamente dito, útil e criador, que a gente faz com gosto, e o trabalho que nos é imposto pelas condições em que vivemos, sem consultar das
nossas disposições naturais. Há também o que se chama, em linguagem corrente, "fazer cera", isto é, fingir que trabalha para encher tempo.
Assim dividido, o trabalho perde muito da sua auréola; não é uma condenação que pesa sobre o destino humano, mas também não é nenhuma prova superior que dignifique a gente, como afirma a sabedoria popular. É uma
necessidade, apenas. Começou na floresta virgem, quando o primeiro macaco teve necessidade de bater um coco sobre a pedra, até despedaçá-lo, para matar a fome. O segundo macaco achou mais fácil colocar o coco sobre uma pedra mais ou menos achatada
e bater com outra por cima. Era a técnica que surgia.
Milênios e milênios de adaptação à natureza sempre hostil ensinaram muita coisa ao homem. O conhecimento organizado com o intuito prosaico de assegurar a alimentação e conforto, mesmo quando esse conforto se apura
ao ponto de necessitar das artes, é a civilização. Mas o conhecimento que se foi acumulando na raça, através de incontáveis gerações que sofreram as mesmas vicissitudes, é o instinto. Há animais que, pelo instinto, suprem largamente a inteligência:
a formiga, o cupim, a abelha. Ainda hoje o cachorro, quando vai deitar-se, dá uma volta inexplicável sobre si mesmo: dizem que é a lembrança do tempo em que foi lobo e tinha de amassar a erva sobre que devia estender o corpo.
Por esse vago instinto, o homem, embora ignorante, distingue os diversos trabalhos que lhe são confiados; o útil alegra-o, leva-o mesmo a praticar heroísmos, como se observa entre os lixeiros, os mineiros e os
bombeiros. Esse mesmo instinto, subindo numa escada intelectual, apresenta-nos o inventor que se sacrifica na sua obra e o cientista que brinca com a morte, sem outra aspiração além daquilo a que ele chama simplesmente "de gosto pela ciência".
Por ouro lado, o trabalho inútil degrada. É dessas profissões exclusivamente individualistas que são a maior parte dos criminosos. Ninguém mata, por exemplo, por ser botequineiro; pode matar porque a sua profissão
o deprimiu ao ponto de tornar possível nele o gesto de destruição do seu semelhante.
Mas a vitória do trabalho está no nosso desejo de poupar trabalho. A preguiça é grande aliada da ciência. Quem inventa uma máquina ou compra um determinado aparelho é com o intuito de poupar trabalho.
Essa preocupação é que movimenta o mundo. Até mesmo quem se excede no trabalho é "para mais tarde descansar".
Quando a máquina a vapor começava a prestar os seus primeiros serviços, ainda era preciso manter ao lado um rapaz que mudava a corrente de vapor dos cilindros, puxando uma cordinha. Quando um êmbolo subia, ele
puxava a corda, abria uma válvula e o vapor passava para o segundo cilindro, fazendo reabrir o outro êmbolo que arrastava o volante. Esse rapaz fez isso tanto tempo que um dia resolveu adaptar à máquina uma peça destinada a suprir o seu já
aborrecido gesto. A máquina trabalhou sozinha e ele foi um grande inventor.
Edison, depois de vendedor de jornais, foi trabalhar como telegrafista numa estaçãozinha de estrada de ferro. Seu serviço era bater durante a noite, incessantemente, o aparelho. Quinze dias depois não podia mais
de sono. Então arranjou "um jeito" do aparelho receber sozinho os despachos, e foi dormir. Assim que souberam da sua esperteza, despediram-no, mas o telégrafo estava aperfeiçoado...
O homem é um animal preguiçoso. Mas tem direito ao ócio. Sua inteligência, se fosse aproveitada com o fim de assegurar o descanso, teria realizado uma obra maravilhosa. As máquinas existentes em 1900 dariam para
produzir o necessário e a gente viver largamente com três horas apenas de trabalho bem distribuído. Com as plantações talvez se dê o mesmo e se por acaso não se dá - o remédio é fácil, principalmente no Brasil, onde a terra produz quatro vezes por
ano.
O diacho é que quando há produção de sobra (será de sobra mesmo?) o Brasil queima café, a Argentina queima gado e Cuba atira açúcar ao mar. Já se queimou trigo e artigos manufaturados...
Nos não merecemos a bondade divina; aprendemos muita coisa mas não sabemos viver, como família inteligente, bem educada, alegre, neste planeta em que tudo é fácil. Só nos aperfeiçoamos nas ciências da guerra.
O interessante é que as maiores invenções, que poderiam facilitar ainda mais a existência humana, são guardadas em segredo. Ainda há poucos dias li numa revista técnica que o problema da lâmpada elétrica está
inteiramente resolvido. Não sei onde, guarda-se, a sete chaves, uma máquina capaz de produzir diariamente, com duas turmas de seis homens, todas as 800.000 lâmpadas elétricas que o mundo inutiliza cada dia. Essa máquina não é posta a funcionar por
um excesso de delicadeza dos donos do mundo: eles receiam que eu e o leitor fiquemos zangados ao perder esta deliciosa preocupação de comprar uma lâmpada por 5$000 quando, em realidade, poderíamos comprá-la por $400 réis...