Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult063m03.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 04/09/16 17:45:37
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, na Folha - 03

Leva para a página anterior

Affonso Schmidt foi também colaborador do jornal paulistano Folha da Manhã, (que daria origem ao jornal Folha de São Paulo e ao grupo homônimo. Na edição de domingo, 5 de setembro de 1937, página 6, foi publicado este texto do escritor (acervo Folha - acesso em 9/4/2016 - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Brinquedos

(Copyright da Imprensa Brasileira Reunida Ltda. (I.B.R.) - Exclusividade para a "Folha da Manhã" no Estado de S. Paulo)

Afonso Schmidt

Li há dias que, nas proximidades do Natal, será organizada, nesta capital, uma grande exposição de brinquedos, onde se encontrará de tudo, desde a bruxa feita de trapos pelas mãos das crianças pobres até os minúsculos trens elétricos que eu vi no catálogo de uma grande firma norte-americana que enriqueceu realizando o sonho das crianças.

Essa notícia levou-me a pensar em tanta coisa bonita. Conheço muitos brinquedos, até mesmo os melancólicos. Sim, o drama de certos brinquedos que, geralmente, levados ao belchior da Rua Brigadeiro Tobias, o produto da venda não daria talvez para pagar a passagem no bonde. Um desses...

Eu devia ser ainda muito pequeno. Morávamos no mato. Um dia, a lavadeira levou-me, com o filho, da minha idade, para a beira do riacho onde lavava a roupa. Aquele barranco era o presépio mais bonito do mundo. Avançava sobre a água num emaranhamento de cipós de espinho, onde repontavam flores alegres. O mais, era um gramado fino que as cabras aparavam rente.

Meu divertimento favorito era deitar-me de bruços e mergulhar a vista na contextura desse tapete; havia ali uma verdadeira floresta em miniatura: árvores de três polegadas, cipós, flores pequeninas que pareciam joias e, no meio disso tudo, andavam as formigas, os besouros, os misteriosos insetos que pareciam viver exclusivamente naquele mundo de mentira...

Naquele dia, ao pé da cachoeira que se atirava contra o barranco e sumia, o filho da lavadeira mostrou-me o seu boneco, feito por mãos ociosas, de um pedaço de ronco, onde os galhos tinham sido aproveitados para braços. Era um trabalho reles. Não sei porque, peguei no monstro e atirei-o à água. Vi-o emergir mais adiante e depois desaparecer para sempre.

Nunca imaginei que o moleque pudesse gostar tanto daquilo. Era incrível. Foi um choro que durou a tarde inteira. Embalde eu me multipliquei em promessas, para consolar o pequeno. Prometi-lhe tudo quanto me veio à cabeça. Mas ele instava, queria aquele mesmo, e chorava e chorava. Até hoje escuto o seu choro. Nunca mais pude esquecer a cena.

Entre os brinquedos melancólicos lembro aquela grande boneca, muito enfeitada, que dormia na cama de um casal de velhos. Era tratada como filha. Era a filha que eles tanto desejaram e que não tiveram. Meu velho amigo Victor Hugo dizia que "o primeiro filho é a continuação da última boneca". Naquela casa não houve última boneca; elas continuaram melancolicamente pela vida em fora, entraram pela velhice e certamente acompanharão na morte os seus donos. De noite, nos longos serões, quando o marido fuma na sala de jantar, a mulher, sozinha no quarto, passa horas inteiras a alindar aquela criança de massa cujos movimentos eram seguidos do cloc-cloc das emperradas juntas...

Sei também de um cavalinho mutilado que vivia na gaveta do guarda-roupa. Ninguém me contou a história desse pobre animal. Nem eu perguntei. Mas uma vez, num corre-corre, aquela gaveta foi aberta por engano e mãos profanas levantaram no ar o pobre brinquedo:

- Que é isto?

- Ah! O cavalinho do Zizico!

Fez-se um silêncio doloroso e logo depois a dona da casa, não podendo resistir, correu para o quarto contíguo, afogada de saudade.

Durante o carnaval, vi uma criança doente interessar-se por uma fantasia de Pierrot. O pai saiu à rua para comprar, mas já era noite e a cidade tumultuava, desvairada de alegria. Ele era professor, um homem grave, emaciado pelo sofrimento. Depois de muito andar, parou na porta de uma loja improvisada, onde havia batalhas de lança-perfume, e comprou a fantasia. Alguém interrogou-o:

- Vai pra farra, hein:

A volta foi ainda mais triste. Não havia bondes. Os grupos cercavam-no e muitas vezes arrastavam-no nas suas danças. E ele corria. Afinal chegou à casa, o pequeno vestiu a fantasia e num grande esforço levantou-se, começou a descer a escada, mas parou no meio, desanimado. Durante uma hora ali esteve a criança doente, vestida de Pierrot, sentada num degrau, com a cabeça apoiada na palma da mão.

Ah! Como é dolorosa uma fantasia de Pierrot!

Contaram-me que essa mesma criança, já muito mal, ali pelo entardecer fazia questão de ouvir no rádio a sessão de Nhô Totico. Era sua única alegria. Ria gostosamente. Então eu pensei na obra admirável desse moço que se fez compreender pelas crianças, que conversa com elas, que as diverte, que as alegra, que consegue animar e fazer rir até mesmo as que estão doentinhas no fundo da cama. Não sei de ninguém no mundo como o Nhô Totico. Se de outro planeta me pedissem um exemplo de bondade humana, eu não teria dúvida, responderia: Nhô Totico. Se me perguntassem o que eu desejaria ser numa nova encarnação, eu responderia do mesmo modo: Nhô Totico.

E a verdade é que nunca vi Nhô Totico, nem mais magro nem mais gordo...

Leva para a página seguinte da série