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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 50D

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta novela foi publicada em várias edições de 1945:

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(material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

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A primeira viagem

Affonso Schmidt

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Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de 13/5/1945 com o texto

X - Um pacotinho de amêndoas

Correu pela Ribeira Nova a atoarda de que eu mantinha comércio com as Musas. Mas, só vim a saber disso no sábado de aleluia, quando, por estar sem vintém, me dirigi à casa de pasto dos Carreras, na esperança de que ele me abrisse uma continha, até receber um dinheiro que, dentro de pouco, chegaria do Brasil... Quando entrei no salão, onde os primeiros fregueses degustavam a tigela de caldo chorudo e o decilitro de vinho de pipa, observei que estava sendo esperado. E o ambiente me pareceu de desconfiança. Lá se encontravam o Casimiro, dono da Mercearia, o Silva Preto, meu companheiro de pensão, e uma cara antipática que só tive o prazer de ficar conhecendo naquela ocasião. Era o Professor.

Assim que entrei, chamaram-me para a mesa do canto, protegida da curiosidade da sala por um biombo de madeira com pinturas desbotadas. Atendi ao apelo e desde logo compreendi que estava diante de um tribunal. O Silva Preto mexericara que eu fazia versos, os outros não quiseram acreditar. Saiu discussão. Aposta. Formaram-se dois partidos. O africano estava do meu lado, o Professor contra mim.

Ainda hoje me pergunto por que motivo toda gente o chamava de Professor. Não tinha cara de ensinar coisíssima alguma. Vestia traje escuro, sensivelmente curto. As calças mal lhe cobriam os artelhos, o casaco mal lhe chegava até onde devia chegar, as mangas esforçavam-se por alcançar-lhe os pulsos. Acrescente-se a isso o chapéu redondo, atirado pra trás, deixando as melenas a lhe caírem pela testa, a gravata com vistoso laço a mover-se de um lado para ouro, e a ponta de mau charuto a fumegar no canto da boca. Ao primeiro olhar, sentimo-nos irremediavelmente inimigos. Era ele quem presidia a reunião.

- Tu és mesmo brasileiro?

- Sim.

- Que vieste cá fazer?

- Passear...

O homenzinho teve um acesso de riso, tão despropositado, que por pouco ia engolindo a ponta do charuto. Depois, serenado o ataque de hilaridade, prosseguiu no interrogatório.

- Aqui o Silva Preto, que entende tanto de rimas como eu de relógios de parede, anda a dizer que és poeta. Confirmas?

- Confirmo.

- Não me parece. Não tens cara disso. Em todo caso, para que não se diga que o Professor é mau juiz, recita para aí alguma coisa.

Dizendo isso, empinou a ponta do charuto, apoiou as mãos nas coxas e ficou a olhar-me, com olhos duros.

- Não sei nada de cor.

- Um soneto, uma quadra, uma glosa...

- Nada.

Ele voltou-se para os companheiros, piscou-lhes significativamente um olho e comentou:

- Estão vendo? É como lhes dizia. Intrujices...

E, satisfeito com a vitória, lá se foi a abanar as calças, sem ao menos olhar para mim. Os outros que, naturalmente, haviam perdido a aposta, não me perdoaram o crime de não ser poeta. Sentindo o fio do ambiente, disfarcei e fui-me embora. Só no caminho, senti toda a angústia. Se ao menos não me houvessem furtado a valise, eu poderia tapar-lhe a boca. Lá se encontrava um exemplar dos Lírios Roxos, versos dos 15 anos, publicados na Tipografia Stocco, à Rua Quintino Bocaiuva. Era um caderninho de capa verde, mas, que diacho... Passando pela Travessa de São Paulo entrei num estanco e comprei papel almaço, tinteiro, caneta e um "bico". De posse do material, fui para casa, mas, ao chegar à porta do prédio, o Tretas estatelou-se na minha frente:

- Já cambiaste o ouro?

- Já. Mas não trago comigo. Amanhã sem falta...

- Está bem.

Tinha esquecido, lamentavelmente, de pagar os nove tostões do chapéu. E só agora me lembrava, depois de ter gasto o último tostão da libra. Como fazer? Que dia horrível aquele... Subi ao quarto, fechei-me por dentro e, durante duas horas, a pena chiou sobre o papel. Depois, juntei as tiras espalhadas pelo chão e li o trabalho, corrigindo-o linha por linha. Daria um doce (um doce para mim, naquele momento, representava uma fortuna) ao tipógrafo que conseguisse entender semelhantes rabiscos. Dei-lhe o título de Ninho abandonado. Uma historiazinha boba, de amor e melancolia. Mas, que fazer dela? Levá-la ao frege do Carreira e mostrá-la aos que ousaram duvidar do meu estro? Não. Sou de natural esquivo, pouco amigo de conversas, ainda menos de discussões...

Meti os linguados no bolso, dirigi-me à escada e, espiando pela janela do patamar, esperei o Tretas apanhar a sua mosca. Sim, apanhar a sua mosca. Aquele lojista tinha sido aranha na outra encarnação. Ficava à porta do buraco a negacear os passantes. Conhecia os homens pelo traje, pelo andar, pela ocupação que davam aos olhos. Eu lá no alto da janela, a estudar o Tretas, o Tretas cá em baixo, encostado à porta da loja, a estudar os transeuntes. Passou um frade. Passou uma beata. Passou um tenente de Artilharia!... De repente, a mosca surgiu na esquina da Travessa de São Paulo. A aranha estremeceu. A mosca - usava chapéu de grandes abas, calças de veludo, sapatos de couro cru - veio vindo, veio vindo... Quando defrontou a loja, a aranha deu o salto, envolveu-a na sua teia, enrolou-a, enrolou-a e, quando a viu impotente, empurrou-a bruscamente para a lura. Exultei. Graças a essa ocupação do Tretas, pude descer tranquilamente a escada, sair para a rua e tomar o lado oposto à sua porta.

No Largo do Município (nisto não vai nenhuma revelação...) estava situado o palácio da Câmara Municipal, com suas colunas, seus capitéis floridos, sustentando um frontão pesado de altos relevos. Uma festa de ninfas e de sátiros. E a postura realista dos capros, assanhados como se tivessem visto o passarinho verde, escandalizava o beatério subjacente. Mas, aquilo não me interessava no momento. O que de fato me interessava era um quiosque, instalado na esquina do palácio e onde, nas minhas idas e vindas, eu admirava diariamente a exposição de jornais, furtando leitura para inteirar-me do que se passava no mundo.

Lá estavam expostos o Diário de Notícias, o Século, o Mundo, o Diário Ilustrado, e periódicos de menor formato. Entre esses, o Novidades, diário católico, muito apreciado pelo apuro da linguagem e seleção dos colaboradores. Examinei o cabeçalho, especulei o endereço da redação e toquei para lá.

Se não me falha a memória, estava instalado na Rua Garrett, num primeiro andar. Subi a escada com corrimãos de metal amarelo. Mas, era a hora do almoço. Aquela gente não jejuava como eu, almoçava. Apenas um contínuo, no patamar, diante da sua mesa, recebia notícias e publicações. Não tive dúvidas. Pedi-lhe a pena, uma tira de papel, e escrevi um bilhete ao diretor, apresentando aquele "modesto trabalho que, devidamente julgado por V. S., e se tal honra merecer, poderá ser publicado nas páginas do Novidades, que diariamente leio e aprecio". Pregada a mentira, despenquei pela escada, com a última vergonha que me restava. E não pensei mais naquilo.

A Rua Garrett descia, depois subia. A meio caminho, vi-me no Chiado. Conhecia-o pelo que tinha visto nos cenários das revistas portuguesas, representadas pelas companhias que mambembavam pelo Brasil. Lá estavam as grandes lojas e a Igreja do Loreto. Só faltava... E o que faltava para a completa identificação daquele ponto "chic" de Lisboa, apareceu logo... Num correr de velhos sobrados, ao lado de uma porta larga, vi uma tabuleta negra com letras de ouro: A Brasileira.

Lembrei-me de todos os escritores portugueses que faziam referência ao famoso café. Passando-lhe pela frente, olhei o interior. Se não fosse a tabuleta, ali, batida pelo sol, não o teria reconhecido. Para falar verdade, o estabelecimento não correspondia à ideia fantástica que dele fazia. E estava ainda a admirar o luxo de seus espelhos, quando um senhor que ia a sair estacou à porta, a ver o movimento da rua. Era alto, gordo, trajado de cinzento escuro, colete de seda branca, "botas de polimento", o que, traduzido em brasileiro, dá "sapatos de verniz", polainas de camurça, colarinho duro, "plastron", monóculo entalhado no olho, gaforina grisalha, chapéu tipo Borsalino posto um pouco de banda, com certa pacholice.

Apoiou a mão enluvada no castão de ouro da bengala e ali ficou um pedaço, embasbacado diante da rua onde passavam senhoras, arrepanhando graciosamente a cauda do "vestido alfaiate", para mostrar os borzeguins, padres rotundos que subiam oscilando o corpanzil pela calçada do Loreto; freiras que pareciam ensaiar voo com as largas asas das toucas, batidas pela claridade meridiana, jovens militares fardados de azul claro, casaco curto, botas espelhantes, uma cápsula de estofo no alto da cabeça; Cavalaria 1, Infantaria 3... O mais, eram homens de negócios, batendo na calçada com as botinas "bico de pato", funcionários públicos que dessedentavam ao sol, corretores de pasta, cavalheiros de fraque e chapéu redondo a conversarem pelas esquinas, cauteleiros apregoando os últimos bilhetes.

Um "coupé" de portinhola armoriada desceu ao trote de duas parelhas - o cocheiro de casaca azul e cartola branca; o trintanário, sentado na rabeira refulgindo nos galões dourados da libré. Uma velha coroca, com capa de vidrilho, dormia no fundo do coche. Depois, um "pháeton", puxado por um pônei, surgiu por trás das muralhas da Igreja do Loreto. Desceu pela Rua Garrett. Era guiado por esbelta jovem loura, com largo chapéu de palha de Veneza, luvas de camurça que lhe davam para cima dos cotovelos, e brandia no ar o comprido mas inofensivo chicote. Ao passar pelo café, inclinou-se ligeiramente, saudando o cavalheiro estatelado à porta; este sorriu, desbarretou-se, numa grande vênia...

Quem seria, afinal, aquele grande escritor, que ali estava à porta da Brasileira? Na porta da Brasileira, àquela hora, com tal indumentária, devia ser, forçosamente, um grande escritor... Não consegui identificá-lo com as fotografias que me lembrava ter visto em livros e almanaques. Talvez, não fosse escritor. Os maiores escritores de Portugal, naquele tempo, não se vestiam à maneira de escritores. E estava absorvido em tais reflexões quando alguém estacou diante de mim.

- Pois ainda não morreste?

Era aquele misterioso Luís. Quando eu o imaginava às voltas com a Boa Hora, comprando bilhete, para o Limoeiro, ei-lo que surgia do chão, à minha frente, como o Tinhoso da Pera de Satanaz, representado pelo ator Brandão. Estava primorosamente vestido, parecia um príncipe. Compreendendo com certeza o olhar curioso com que o examinei, ele procurou explicar-me a sua presença ali, depois dos fatos que eram do meu conhecimento. Disse:

- São vantagens de ser português no Brasil e brasileiro em Portugal. A amizade dos povos traz os seus benefícios para os indivíduos...

Naturalmente, ostentando a sua caderneta de brasileiro, a nº 2, conseguira escapulir à curiosidade da polícia.

- Felipe, aposto em como você ainda não almoçou...

- Acertou. Isto é que se chama adivinhar. Por que não monta um consultório de cartomante?

- Pois bem, ofereço-te um almoço, mas mediante condições. O dinheiro de que disponho não é suficiente para nós dois almoçarmos no Gibraltar (os lisboetas costumam dizer Gibráltar, como também costumam dizer hótel). Por isso, tu vais comigo sentar-te à minha mesa, recusas ferozmente os meus oferecimentos e, depois, à saída, eu te darei o suficiente para matares a fome num frege de porta de mercado. Aceitas?

A carne é fraca, mas quando transformada em bife, tem muita força. Além disso, a necessidade tem cara de herege, como se dizia no tempo de Pina Manique. Aceitei. Feita a avença, conversando como velhos amigos, fomos caminhando para a banda das Janelas Verdes. Depois de quebrarmos algumas esquinas, entramos na Rua do Ouro.

Luís, vi logo, tinha paixão por aquela rua. De um lado e de outro alinhavam-se as ourivesarias. Grandes e pequenas. Ricas e riquíssimas. Discretas e esplêndidas. Algumas alarmantes. Nunca vi tanto ouro em exposição. Os largos escaparates eram forrados de papel dourado. Sobre esse fundo, brilhavam cordões de toda classe, de todo peso, que pareciam medir metros de comprimento. Argolas de todos diâmetros, de todas espessuras, capazes de com seu peso rasgar lóbulos de muitas orelhas. Anéis, em séries, que iam de fio de cabelo louro, com a estrelinha de um diamante, ao disco largo e grosso, encimado, pelo esplendor de uma constelação. Toda uma gama dourada de alianças. Enfiadas coruscantes de brincos, florescendo em todas as cores, numa primavera de pedras preciosas.

E braceletes pesados como algemas, com fechos de pedrarias. E pulseiras reforçadas, que deviam pesar como deliciosos suplícios. E broches, arrecadadas, "pendentifs", "riviéres", cascatas de diamantes a correrem festivamente por trás dos espessos cristais das vitrinas. Mais adiante, eram espátulas, para violar romances; fechos de ouro para livros de Horas; cinzeiros, pesa papéis, cruzes de ouro que deviam ser mais milagrosas do que as pobres cruzes de cedro.

Ainda mais para a frente os mostruários eram tomados pelas baixelas de ouro maciço, com a firma do lavrante, e uma qualquer coisa de antiquado, que sugeria a época de Gil Vicente. Senhoras e cavalheiros, com excessiva preocupação de "chic" principalmente os cavalheiros, estacionavam diante das lojas, hipnotizados, mesmerificados, pelo olho magnético dos grandes solitários. E, para fora do meio fio, não se atrevendo a subir para o passeio de pedrinhas brancas, com desenhos feitos com pedrinhas pretas, talvez com receio de serem suspeitados, os pobres diabos, os "street-men", espiavam de olho comprido aquele quadro de mágica, como a dizer: "Um pedacinho desse ouro faria por hoje a minha felicidade..." E eu, para ser franco, era da mesma opinião.

Diante das vitrinas, com o rabinho do olho, observava Luís. Compreendi que o ouro para ele era mais do que uma necessidade, chegava a ser um vício. Apertava os olhos e dormia na contemplação daqueles tesouros. Suas mãos tremiam imperceptivelmente, na ânsia de se estenderem, de vararem o cristal, de acariciarem ouro e pedraria. Dos seus braços de carne se ergueram duplos etéreos, tomaram as joias, sopesaram-nas e as foram retirando uma a uma, através dos vidros de duas polegadas. Mas, aquilo era alucinação...

Luís, numa atitude que muitas vezes lhe surpreendi, olhou desconfiadamente para a direita e a esquerda. Só então viu que um pobre diabo, igualmente deslumbrado pelas riquezas expostas, fora colocar-se a seu lado. Ele deu um passo brusco para o outro lado, encarou o desconhecido e, provocadoramente, se pôs a abotoar os botões do paletó. O desconhecido notou o gesto de desconfiança, corou, empalideceu e, cego de humilhação, lá se foi, arrastando tragicamente os pés.

- Que susto foi esse?

- Hum... Na Europa há ladrões por toda parte...

Chegamos ao Terreiro do Paço, dirigimo-nos à Rua das Janelas Verdes. O Gibraltar ficava lá em baixo, numa esquina, já nas imediações do porto. Era dos mais "chics", dos mais caros de Lisboa. Mesas cobertas de linho, com jarras floridas, cadeiras de altos espaldares, garçons vestidos com apuro. Estava repleto de fregueses. Senhoras e cavalheiros, na sua maioria turistas. O garçom indicou-nos uma mesa, deu-nos o menu e ficou à espera. Luís passou-me a lista:

- Escolhe tu, primeiro.

- Obrigado, não almoço fora.

- Faço questão de que me acompanhes...

- Inútil. Esperam-me no Hotel Amazonas. Obrigado.

Eu, representando a comédia, suava. E ele insistia:

- Vamos, qualquer coisa, só para me acompanhar.

O garçom esperava as minhas ordens. E o Luís:

- Não me ponhas de mau humor, apenas uma omelete. Que tal?

Disse isso com tamanha convicção que eu, amolecido, ia aceitar, mas só vendo o olho feio que ele me deitou. Então, caindo em mim, voltei a recusar, com decisão. E, sem querer, como compete a um menino bem educado, assisti ao seu almoço. Vi os pratos alinharem-se na mesa. Frango de cabidela. Arroz de forno, de onde emergiam rodelas de salpicão e nervuras amanteigadas de repolho. Um troço de carne entrouxada de lardo e ervas de cheiro. Uma posta de atum boiando no azeite, coberta de salsa e fatias finas de cebola. Um prado de frutas coberto de gelo moído. Meia botija de vinho de raça, vinho mágico que no fundo do copo se mudava em rosa líquida. Depois, um havano... Tudo aquilo ficou em 635 réis, mais a gorjeta, 650 réis. Uma fortuna.

O garçom, cheio de vênias, veio trazer-lhe o sobretudo, o chapéu e a bengala. Saímos. Chegamos à esquina da praça, ele parou, abriu a escarcela de prata, estudou meticulosamente o conteúdo, depois, com as pontinhas dos dedos, catou uma moedinha de prata de meio tostão e ma entregou, assumindo ares importantes. Ali nos despedimos e, como ele estivesse de viagem marcada para o Brasil, aconselhou-me calma, temperança e, principalmente, economia. Afinal, aquele homem era um mistério, capaz de crimes espantosos como narcotizar pobres emigrantes de torna-viagem, para tomar-lhes as economias, rezava e persignava-se ao sentar à mesa dos restaurantes "chics" e, mais de uma vez, comigo mesmo, tinha dado prova de bondade e filantropia. Meditei no caso e cheguei a uma conclusão: atrás daquele homem devia existir uma grande força benéfica... Talvez uma mulher... Muitos anos depois, já no Brasil, tive ocasião de verificar que o meu julgamento fora acertado.

Seguindo pela rua, encontrei uma casa de pasto, das mais modestas, onde eu, com aquele meio tostão, poderia pagar almoço de príncipe. Ia entrar, mas um sujeito que de lá saía, palitando os dentes, embargou-me o caminho. Era o Silva, o Silva africano, o Silva Preto. Falava macio, num tom de voz que me era familiar, que me fazia lembrar dos queridos pretos de minha terra.

- Já almoçou?

- Já. Ali naquele restaurante...

- No Gibraltar?... - e todo se maravilhou. Depois, catando um fiapo de carne que lhe ficara entalado entre os incisivos, contou-me a sua preocupação:

- Esta é a noite dos presentes. Quem tem um amigo, um conhecido, vai levar-lhe um doce. Eu sou muito grato ao sr. Timóteo e à sra. Ludovina. Eles não nos tratam como pensionistas, mas como filhos. Toda gente na Ribeira Nova sabe disso. Aqui onde me vê, quero dar-lhes um presente. Não me importo de gastar até dez tostões. Compreendes.

Entramos em lojas, em confeitarias: ele examinava, perguntava o preço, escandalizava-se. Acabou comprando uns pastéis de nata, tão finos e açucarados que tinha de levar o embrulho na palma da mão a fim de não desmanchá-los. Eu, acanhadamente, comprei meio tostão de amêndoas cobertas; não era um presente principesco mas demonstrava carinho por aqueles bons amigos.

Guardei o presente e só, à noite, na sala de visitas, entreguei o embrulhinho à menina Graziela. Ela fez uma festa! Vieram as pessoas da casa, souberam da ocorrência. Ao ver aquilo, a sra. Ludovina tirou conclusões e disfarçadamente enxugou uma lágrima no canto do olho. Tinha compreendido, com certeza, o sacrifício que me haviam custado aquelas modestíssimas consoadas. E, donos da casa, e a sobrinha, a menina Graziela, os três estudantes de pilotagem, me arrastaram para a sala de jantar, onde havia carne assada, pão branco, cestas de frutas cobertas de gelo moído e um alentado garrafão de vinho que o rapaz de Setúbal ali perto fora buscar de véspera à casa dos pais. Houve brindes, cantigas e até bailarico. A menina Alzira acabou por dizer-me:

- Tu me agradas, porque és louro e maneirinho.

Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de 20/5/1945 com o texto

XI - No tempo do rei

Alguns dias depois, meti os dedos no bolso do colete e tive uma surpresa: estava sem vintém... E, o que era mais grave, não tinha a quem pedir. Acreditando, com razão, que Pluto não iria visitar-me no quarto, botei o chapéu e saí à cata de Pluto. Mas, o mofino deus das riquezas não andava por ali, como o Tretas da loja, a Conegundes das cautelas e a varina que morava na trapeira do prédio; era preciso procurá-lo. E pus-me a descer, pensativamente, a escada.

Por falar em varina, lembro que elas procedem da vila de Ovar, nas vizinhanças de Aveiro, e se dedicam ao comércio ambulante do peixe. São mulheres fortes, tisnadas e tagarelas. Trazem as saias sungadas na cintura, mostrando artelhos sólidos e pés escuros em tamancos de cores vivas. Nos ombros, um pano de seda que a gente não sabe se é lenço ou se é xale. No pescoço, pesado cordão de ouro por cujas voltas se pode avaliar a abastança da portadora. Nas orelhas, argolas de ouro que, por vezes, atingem a duas polegadas de diâmetro. Seu cabelo é penteado em finas tranças e depois enrolado, formando coroa, uma coroa que às vezes é de ouro, às vezes de ferro ou de ébano. Sobre a cabeça, a rodilha de pano e, sobre a rodilha, o tabuleiro molhado, a pingar salmoura, com uma arroba de peixe fresco.

Andam em grupos, requebrando os fartos quadris, anunciando aos gritos o pescado. E dão à língua. Umas despachadas como garotos, outras desbocadas como tropeiros. Mas, apesar disso, a severidade dos seus costumes é proverbial. Vivem à parte, irredutíveis, com o seu tabuleiro e com o seu homem. Quando um calaceiro as provoca, são capazes de competir com ele no desbragamento da linguagem, mas quando o trelente é um rapazola adamado, da alta, elas não gastam palavras, descalçam um pé de tamanco e com ele achatam-lhe a bitácula...

Ouvindo tais coisas, fiquei com medo das varinas. Quando as encontrava na rua, a discutirem entre si, não me atrevia a encará-las. Aconteceu, porém, que, como já disse, na traperia do nosso prédio morava uma delas, precisamente aquela que, na opinião da Ribeira Nova, era a mais bonita de todas. Alta, forte, cor de canela, cabelos negros, rosto oval, olhos grandes e escuros, boca carnuda, colo alto e rijo, mãos compridas e inesperadamente finas. Aquilo não era uma varina, era uma estátua grega fugida das Janelas Verdes. Tinha muito de mármore, cheirava a coroa de louro. A primeira vez que a topei na escada, olhei-a de esguelha e, mais de medroso que de ousado, saudei-a:

- Bom dia...

Ela fechou a cara e passou sem me responder. Dois dias depois, à mesma hora, novo encontro:

- Bom dia, menina...

A Rosa (tinha um nome de flor) percebeu a minha existência. Parou, mediu-me de alto a baixo, e achou com certeza que dessa vez ainda não devia responder-me. Mas, naquela manhã ia eu descer a escada quando, no primeiro patamar, a encontrei com o tabuleiro no chão, diante de uma porta, onde certamente havia vendido alguns de seus peixes. Fui mais longe...

- Bom dia, Rosa.

Ela ergueu-se, apoiou as mãos nas ancas e fulminou-me com os olhos de deusa:

- Ó coiso... Quem foi o sabichão que te assoprou o meu nome?

- Não leves a mal. Eu moro ali no segundo andar. Foi a menina Alzira quem me disse que tu te chamas Rosa.

- Ahn... Então pediste informações a meu respeito...

Esperei para ver se ela tirava o tamanquinho do pé, mas a varina gostou da minha perturbação, mostrou os dentes preciosos numa risada vermelha e voltou a esforçar-se por levantar o tabuleiro. Corri a ajudá-la. Mas, a varina não precisava do auxílio de ninguém; tomou do grande quadrado de madeira atulhado de peixes, levantou-o a pulso e acomodou-o sobre a rodilha. Estava levemente corada. Uma madeixa de cabelo negro e áspero desceu-lhe pela fronte. E lá foi escada acima, fazendo as tábuas gemerem com o peso.

Ficando só, no patamar, corri à janela e espiei para baixo. O largo estava dourado de sol. Os sinos da igreja de São Paulo batiam lâminas de ouro na ourivesaria da manhã. Onde estaria o Tretas? Talvez a aranha estivesse na lura, a chupar a sua mosca. Esperei mais um pouco e como o lojista não aparecesse, desci o último lance da escada e precipitei-me na cidade.

Não tinha destino. Entrei pela travessa à esquerda e tomei a Rua 24 de Julho. A mercearia do Casimiro estava apinhada de fregueses. A casa de pasto dos Carreras, àquela hora, ainda se apresentava quase deserta. Um saloio decilitrava junto ao balcão de zinco; o Ramiro, em mangas de camisa, esfregava as grandes mesas negras. Lá do fundo, vinha um cheiro forte de atum de caldeirada. Cumprimentei o rapaz; ele ergueu a cabeça, reconheceu-me, sorriu-me mas sem entusiasmo.

Atravessei a rua e entrei no mercado. A batalha de todas as manhãs estava no fim; as bancas vazias, as ruelas atapetadas de detritos, os velhos mercadores, de cócoras, contavam moedas. Uns homens esguichavam água sobre o empedramento irregular, outros varriam o chão com grandes vassouras. Encontrei o Silva Preto. Estava de macacão azul, com manchas de graxa.

- Hoje, chegou um rebocador brasileiro - informou-me ele.

- Está atracado?

- Não. Ficou ao largo. Mas os rapazes andam por aí...

Atravessei o mercado e fui ter ao porto, que me pareceu em construção. Junto ao cais, somente embarcações de pequeno calado. As outras, as grandes, fundeavam na baía. Entre elas um navio negro, de proa alta e popa baixa, com duas chaminés. Devia ser o rebocador. À beira da linha férrea, havia um barracão de zinco, cheio de mercadoria para embarque. Sentei-me numa caixa com letreiros a fogo e esperei. Onde estariam os meus patrícios? Se o capitão quisesse fazer a camaradagem de me transportar no rebocador e me despejar no Rio de Janeiro... Passaram-se horas. A profecia do Luís soava-me sinistramente aos ouvidos. Além disso, umas mãos geladas apertavam-me cada vez mais o estômago. Desisti da espera. Voltei pelo mesmo caminho. De repente, parei... No chão, dobrado ao meio, estava um papel colorido que me pareceu uma nota... Apanhei-o. Não era dinheiro, mas rótulo de garrafa de cerveja, no qual se via, a muitas cores, o Pão de Açúcar. Afinal, era alguma coisa do Brasil. Guardei-o no bolso.

Da esquina, espiei a porta: o Tretas continuava ausente. Subi ao quarto, deitei-me como estava e procurei dormir, para esquecer. Mas, alguém bateu mansamente à porta.

- Menino Felipe, a Sra. Ludovina acaba de fazer café; venha fazer-nos companhia.

- Não. Muito obrigado. Desta vez recuso...

Ela entrou, tomou-me pela mão e arrastou-me. À minha espera, no canto da mesa, estavam uma tigela de café e duas fatias de broa, de uma polegada, cobertas de manteiga.

Quando terminei, ela levou-me à sala de visitas e, tirando do bolso um pião de quatro faces com letras marcadas, explicou-me:

- R rapa. T tira. D deixa e P põe...

- Que é isso?

- Isto é o rapa! Vamos jogar?

Sentamo-nos à mesa do centro e ela ordenou:

- Case...

- Case o quê?

- Os botões...

- Mas, eu não tenho botões...

- Está bem, empresto-te alguns.

E o jogo começou. Ganhei e perdi. De quando em quando, arrancava uns botões inúteis da roupa... Passaram-se horas. Lá pelas tantas, a Sra. Ludovina convidou-me a ir até a outra sala; era uma surpresa.

- Vais comer um peixe como não existe no Brasil.

Relutei fracamente; já tinha perdido de todo o acanhamento. Na ponta da mesa de jantar, sobre guardanapo de linho, estava um prato azul, de ramagens diluídas, e, sobre o prato, um peixe frito, dourado, que media palmo e meio de comprimento. E cheirava como um banquete.

- Mas isso é muito para mim!

- Coma o que quiser... Deixe o resto...

Deixei uma parte daquele peixe: as galhas e as espinhas. Depois, já refeito, de alma nova, saí para a cidade, sem me preocupar com o Tretas. Andei, andei... Ao escurecer, vi-me na Avenida da Liberdade. Essa grande artéria de Lisboa começa nas imediações do Rossio e vai terminar nas proximidades da praça de touros do Campo Pequeno. É larga, asfaltada, com canteiros e árvores em toda a extensão. Os passeios são uma obra de arte, apresentam desenhos feitos com pedras brancas e pretas. Os artistas que compuseram aqueles lavores foram contratados pelo prefeito Pereira Passos, vieram ao Rio de Janeiro e aqui fizeram os primitivos passeios da então Avenida Central. As edificações da Avenida da Liberdade eram velhas e nobres. Duas linhas de prédios de cinco andares, quase todos com larga "porte-cochére", perdiam-se na distância. Ali morava a aristocracia e a finança de Lisboa.

Àquela tarde, porém, a grande artéria apresentava um aspecto assaz animado. Estava-se na primavera. A sociedade lisboeta, depois de assistir à tourada na praça do Campo Pequeno, fazia uma parada de elegância. Todas as carruagens de Lisboa permaneciam, de um lado e de outro da Avenida, encostadas ao meio fio da calçada. Eram vitórias, "coupés", "landaus", caleças. Os cocheiros, de casaca agaloada e cartola, permaneciam na boleia, eretos, com o chicote entre as botas lustrosas.

O trintanário ficava em pé, junto à portinhola armoriada, para abri-la à chegada dos amos. Nos passeios laterais, havia muita gente, atraída pelo brilho daquela tarde, ao último lampejo do sol, ostentando as modas de Paris e Viena. Grupos de amazonas, afogueadas pelo mormaço da praça de touros, excitadas pelo heroísmo dos toureiros, faziam caracolar os cavalos de raça sobre o asfalto. Não raro, investiam de encontro à gente que se amontoava junto das carruagens, e eram gritos, risadas e até pragas. Eu estava perdido na massa escura de homens de boné, de lenço no pescoço, de sapatos de lona. Era a malta. Esses populares reuniam-se ali por curiosidade, ou por não terem outra coisa que fazer. Ouvi as suas ameaças surdas, decifrei o ódio no fundo de seus olhos.

No meio da avenida, sobre o larguíssimo passeio de pedras brancas e pretas, os proprietários daquelas carruagens iam passando, a pé, numa ostentação de trajes e de joias. Os pares vinham, braço dado, o olhar perdido a vinte metros de distância, alheios à chusma que os cercava. Eles de fraque, chapéu duro, calças de fantasia, às listas, sapatos de verniz, bengala de castão de ouro, luvas descalçadas para mostrar os anéis. Elas, com os primeiros trajes claros, cintura alta, saias colantes até os artelhos, mas cuja cauda se abria como a cauda das focas e, com o mover dos pés, era atirada para a direita, para a esquerda, num ritmo de embalo. Caminhavam com seus passos miúdos e elásticos. Ouviam-se nomes conhecidos na boca da chusma. Os Bournay, os Castros, os Avelares...

E o desfile parecia não ter fim. Fora, os ardinas apregoavam os jornais, as dificuldades do gabinete, o julgamento do Porto, um artigo de Guerra Junqueiro publicado no Primeiro de Janeiro. Os sinos do Loreto começaram a cantar na tarde fina, cheia de essências, de almíscares femininos. Súbito, um toque de clarins, um estrépito de ferraduras sobre o asfalto, e vozes.

- O rei! O rei!

Os batedores passaram abrindo caminho para Sua Majestade. Os ricos passeantes estacaram na calçada central da avenida. Nós, a massa anônima, sem saber como, nos sentimos atirados para as carruagens que estacionavam junto ao meio fio. Os cavalos de raça estranharam nossa presença, ergueram e abaixaram o focinho, escarvaram o chão, relincharam. Os cocheiros levantaram a rédea à altura do peito, para frear os animais em caso de pânico. Os trintanários, encostando-se nas portinholas espelhantes, afastavam-nos furiosamente com as mãos, no temor de que sujássemos os brasões de armas.

Quando dei por mim, estava esmagado contra a parede do teatro da Rua dos Condes, que ficava numa esquina. Subi à soleira de uma porta e olhei a avenida. A multidão tinha-se repartido: o povinho miúdo comprimia-se nos passeios, para dentro das muralhas de carruagens, a gente "chic", que realizava a parada da elegância, conservava-se no centro da avenida, onde havia canteiros floridos e árvores umbrosas. O asfalto estava limpo.

Numerosos cavaleiros, em ricos trajes de montar, lá vinham das bandas de Campo Pequeno. Vestiam casacos de cores vivas, bonés de jóquei, "culotes" e botas compridas. Os cavalos eram magníficos, trotavam firmes e não saíam da forma. À sua passagem, a gente da alta, que estacionava no centro da avenida, agitava as mãos, gritava nomes conhecidos: e os cavaleiros, curvando-se na sela, correspondiam à saudação dos amigos.

Logo depois, ouviu-se um crepitar de palmas que se aproximava. Olhei para esse lado. Um homem corpulento, vestido com simplicidade e elegância, aproximou-se montado num cavalo rosilho. O animal era pequeno, o cavaleiro era grande, por isso, as suas botas, com esporas douradas, terminavam a pouco mais de dois palmos do chão.

As aclamações partiam de preferência do passeio central da avenida, das carruagens, dos grupos de pessoas distintas. Na chusma que me rodeava só escassamente se faziam ouvir. Aplaudi com entusiasmo. Afinal, era um rei; um rei a gente não vê todos os dias. Nesse ponto, tive a sensação de que estava sendo observado. Olhei para trás. Um homem alto, chapéu de coco, gravata de folhos, estava a magnetizar-me... Era o Professor. Um calaceiro, apertando-se contra mim, segredou-me ao ouvido:

- Estás com um boto agarrado aos calcanhares...

Não entendi. Só mais tarde me explicaram aquele inútil aviso. Mas, o rei já havia passado. Ia longe. As palmas acompanhavam-no; já ecoavam lá para as bandas do Rossio.

Acompanhei os grupos que regressavam ao centro da cidade. Chegando ao Largo de São Paulo, lembrei-me do Tretas. Encostei-me ao frade-de-pedra que havia na esquina da igreja e pus-me a espiar para a minha casa, a fim de certificar-me se a loja do vão da escada já tinha fechado a meia-porta. Estava tão distraído nessa ocupação que quase fui apanhado por um bonde.

Aqui entra uma explicação. Naquele tempo, Lisboa era servida por veículos de toda classe, entre os quais se faziam notar pela excentricidade os chamados carrinhos do Eduardo Jorge. Eram bondinhos de burros que trafegavam sobre os rails dos elétricos, mas, como não eram donos da linha, e como quem o alheio veste na praça o despe, ao aparecer um bonde elétrico na distância, o carrinho intrometido saltava fora dos trilhos e, apressadamente, rodava sobre os paralelepípedos, indo encostar-se à parede mais próxima, até que o soberbo carro americano passasse, a martelar nos tímpanos... Raspei um grande susto. Felizmente, encaixei-me num portal escuro até que, passado o elétrico, o bondinho do Eduardo Jorge voltou para a linha.

A loja estava fechada. Subi. Nos patamares escuros, junto às janelas que abriam para a praça, lobriguei silhuetas em idílio. Aquela Lisboa antiga, à claridade de um luar de primavera, entregava-se ao amor. Eu, decididamente, era um réprobo... Pensava nisso, quando tropecei em qualquer coisa, e numerosos gatos fugiram espavoridos miando, por entre as minhas pernas. Até os gatos! Senti-me degradado na minha espécie. Puxei o cordão da porta interna, levantei a tramela e entrei. Chegando ao quarto, deitei-me vestido como estava e, para fugir à realidade, que era de apetite e solidão, procurei conciliar o sono. Mas, não pude. Na sala de visitas, a menina Alzira ensinava a menina Graziela a cantar uma quadrinha que terminava assim:

"De Lisboa para fora
E do Brasil para dentro..."

Naquela mesma noite, ela recebeu a visita do namorado. Era um mocinho da nossa idade, bem vestido, falas macias, mas tinha cara de criança de peito. Os dois foram para a janela (fazia um luar correspondente) e ali ficaram a falar em voz baixa. Depois dessa conversa, ele tomou o chapéu e despediu-se, zangado:

- Pois eu me vou embora!

- Se assim o queres, vi-te com Deus...

Ouvi passos apressados, o bater de uma porta, nada mais. Ali pelas dez horas acordei. A família do Timóteo voltava da rua, talvez de uma visita. Havia assunto importante. O irmão do Casimiro, proprietário da mercearia, ao ver a Alzira com os parentes, perguntara:

- Então, agora só falas brasileiro?

Todos se amofinaram com aquela insinuação. Na sala, andando de um lado para outro, repetiam a frase com justificado desgosto. Mas, a menina, que era despachada (via-a com os olhos da imaginação), estendeu as mãos abertas, fulminou os parentes com os olhos gateados, e replicou:

- Pois falo brasileiro. Isso é cá comigo. E depois?

Senti-me comprometido. Além do mais, este aborrecimento com que não contava. Meu desejo foi desaparecer dali. Mas como? Esperei que a família se acomodasse e depois, pisando de leve, para que ninguém percebesse a fuga, abri a porta, desci a escada escura e saí ao largo. Fazia um luar de romance-folhetim. Dei a volta pela travessa e entrei na Rua 24 de Julho. A casa de pasto do Carreras estava com a porta cerrada: lá dentro havia luz e conversas. Empurrei a porta. Casimiro e Ramiro estavam sentados à mesa grande e escreviam, consultando-se... Ao notarem a minha presença, saudaram-me com entusiasmo... Que seria aquilo?

O Ramiro tirou do bolso um exemplar do Novidades, já muito puído por ter andado de mão em mão e apontou um artigo, em duas colunas, na primeira página: era o Ninho abandonado, o meu conto, generosamente acolhido pela bondade do seu diretor. Fiquei satisfeito, mas não dei excessivas demonstrações, afetando ar de quem estava habituado à letra de forma. Fizeram-me sentar e invocaram as minhas luzes jornalísticas... Só então soube que os dois rapazes, para matar os lazeres, redigiam correspondências de Lisboa para o Noticero e o Faro de Vigo. Naquela noite, estavam atrapalhados...

Tinha-se dado um crime espantoso na Calçada da Madalena. Certo Hernandez, proprietário de uma loja, no primeiro andar do prédio da esquina, tinha botado fogo no estabelecimento, sem levar em conta a vida dos inquilinos dos andares superiores. Uma jovem, enlouquecendo de susto, atirara-se do quinto andar sobre a via pública. Caíra sobre o lampião de gás, entortando-o, como se ele fora de requeijão. A chusma correra para o local. Em Lisboa, só se falava no crime da Calçada da Madalena. E os plumitivos desejavam contá-lo por miúdo aos jornais de Vigo, manifestando desgosto e reprovação.

Auxiliei-os quanto pude. Já passava da meia noite, quando saí da casa de pasto. O Casimiro acompanhou-me. A vinte passos da porta, parou, tomou uns ares graves e me disse:

- Sei que ainda não recebeste dinheiro. Posso emprestar-te uma pequena soma, até que o recebas. De quanto precisas?

- Dois mil réis.

Ele tirou a bolsinha de prata, catou algumas moedas e me deu. "Não te apoquentes, não tem pressa, ninguém precisa saber". Despedimo-nos diante da sua mercearia. Ele abriu a porta e entrou. Eu prossegui para o quarto. Mas, àquela hora, o prédio do Largo de São Paulo já estava fechado. Então lembrei-me das recomendações da Sra. Ludovina, para quando tivesse de entrar, fora de hora... Não dispondo de bengala, como toda gente, pus-me a bater com o pé na calçada. O guarda, que estava postado diante da igreja, aproximou-se.

- Onde mora vossemecê?

- Na casa do Sr. Timóteo, segundo andar, direita...

Ele tirou da cintura um molho de chaves de todos os prédios do quarteirão, abriu a porta, acendeu um pavio e me deu, desejando-me cordialmente boa noite. Passei-lhe meio tostão pelo serviço. Mas, ele não dispunha de troco.

- Não lhe poderei dar a demasia.

- Ora, fique com o resto.

Aquele homem admirou-me. E eu, com o pavio aceso na mão, subi os lances da escada que era larga, escura, povoada de fantasmas e, alta noite, exalava um cheirinho característico de xixi de gato.

Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de 27/5/1945 com o texto

XII - De olhos úmidos (conclusão)

Entrava tarde e saía cedo, para não encontrar as pessoas da casa. Passava os dias a trocar pernas pela cidade. Conheci-lhe os bairros pobres. Vi Alfama e Mouraria, onde as ruas eram estreitas como corredores e nas frontarias cor de açafrão janelas grandes e pequenas, fora de prumo, fora de alinhamento, dançavam a ciranda: pareciam rasgadas ao acaso da fantasia dos inquilinos. De dia, aproveitando a pobreza do sol que lá entrava a medo, havia roupas estendidas sobre os becos, e caldeireiros instalados nos degraus das escadinhas.

De noite, a iluminação era escassa, os lampiões de arco, pregados nas esquinas, só serviam para emoldurar um quadro triste, feito de sombras sobre colchas esticadas na largura das portas, de cafés de três mesas, de mulheres vestidas com o traje da aldeia em que nasceram, sentadas nos frades-de-pedra, à espera do convidado que não veio. Ouviam-se cantos queixosos, diálogos em redondilhas, ponteios de guitarras. E os homens passavam. Eram altos, magros, escuros. Usavam umas calças colantes que pareciam ter sido costuradas sobre as pernas e que ali ficaram para sempre. Falavam cantando, brigavam cantando, choravam cantando. Eu, a duzentas braças da Rua do Arsenal, tinha a impressão de estar do outro lado do mundo.

Conheci, também, os bairros elegantes, "as largas ruas macadamizadas" por onde passou a tristeza incompreendida do poeta Cesário Verde. Vi-lhes os palacetes, com telhados de ardósia, os largos portões com brasões de armas, lobriguei os jardins dos pátios, pedi fogo aos lacaios vestidos de libré que aquentavam sol nas grades cobertas de glicínias. Um dia tomei a estrada de Sintra, disposto a não voltar mais. Atravessei uma série de localidades, cada qual mais linda, com seus palácios, suas chácaras, suas ruelas, onde as casas se escondem atrás dos jardins. Cheguei até Benfica. Ao centro,havia uma grande chácara com árvores centenárias e uma casa silenciosa... Pensei cá comigo: "Quando eu deixar a vida ativa, hei de vir morar nesta chácara..." e, como encontrasse uma mulher, perguntei-lhe:

- Quem mora nesta casa?

Ela maravilhou-se de eu não saber. E respondeu:

- É o brasileiro Cata Milhões...

Voltei no mesmo pé. Cheguei tarde a Lisboa. Já tinha travado relações de amizade com o guarda do Largo de São Paulo. Ele abriu-me a porta, deu-me o pavio aceso, e desejou-me uma boa noite. Em chegando o meu dinheiro, estava convencionado, eu lhe daria uma régia gorjeta...

Na manhã seguinte, ao sair de casa, encontrei a sra. Ludovina que subia a escada ajoujada ao peso de uma cesta de peixe e verdura.

- Que é feito do menino que ninguém mais lhe põe os olhos em cima?

Fiquei atarantado e resolvi explicar-lhe o motivo porque não tinha pago os dois meses vencidos de aluguel.

- Sra. Ludovina, até hoje não recebi dinheiro do Brasil, mas assim que ele chegar...

Ela entendeu outra coisa.

- Menino Felipe, não faça pouco dos seus amigos. A gente é pobre mas sempre dispomos de uns dez tostõezinhos para estas ocasiões...

Abriu a bolsa, tirou duas moedas de prata e passou-mas para as mãos. Quis agradecer-lhe, mas não pude, sentia um nó na garganta. Quando me repus da emoção, já a sra. Ludovina tinha subido o lance da escada e entrava na porta de sua casa. Desci a saltar de contentamento e quando ia precipitar-me na praça, encontrei-me cara a cara com o Tretas que parecia esperar-me.

- Quando é que me pagas aquele dinheiro?

- Já. Ei-lo.

- Onde estiveste tanto tempo?

- Em Caldas da Rainha, a espairecer.

Ele catou nos bolsos do colete e me devolveu o troco: um tostão em cobre. Estava visivelmente satisfeito: tinha-me estragado o dia.

À noite, depois de fechada a casa de pasto, eu ia conversar com o Ramiro. Lá apareciam outras pessoas da vizinhança. Fazia-se uma roda. Comia-se salpicão e bebia-se vinho. Não raro, o dono da casa ia ao seu quarto, lá no fundo do estabelecimento, e trazia a gaita de foles, enfeitada de fitas. Durante horas, ouvíamos músicas pastoris. Quando a noite estava agradável, levavam-me ao teatro. Foi assim que eu assisti no Trindade a uma das primeiras representações do "Ó da guarda", no Ginásio, à peça "Os Criançolas", pelo ator Vale.

Uma noite, caminhando pela Rua do Arsenal, de volta do teatro, entramos na Casa das Iscas. Era um prédio velho, de esquina, com grande salão e compartimentos reservados. Aquele estabelecimento tinha duas vidas: de dia era uma casa abaixo do modesto, onde quem estava com fome e dispunha de dois vinténs ia comer bifes de fígado, com elas ou sem elas, ou melhor, com batatas ou sem batatas. De noite, porém, mudava de aspecto. Terminados os espetáculos de Lisboa, que era grande centro teatral, artistas, escritores, jornalistas e estudantes boêmios iam cear na Casa das Iscas. Ali pelas duas da madrugada, o salão estava cheio dos grandes nomes, de vistosas "toilettes". Muito vinho, muita conversa, muita alegria. Abancamo-nos, mandamos vir o fígado acebolado, a garrafa de vinho e a cesta de frutas. Naquele tempo, era costume dos lisboetas tomarem partido por este ou aquele artista, como hoje fazemos com jogadores de futebol. Por isso, já no fim da ceia, armei-me defensor de uma das mais graciosas atrizes do Trindade, aquela que, pouco antes, do alto das torrinhas, eu vira brilhar à luz da ribalta.

- Sou pela Flora Dyson! Haverá por aí quem discorde?

Felizmente, ninguém discordou. Nessa noite, quando cheguei ao quarto tive uma surpresa. Entrei às apalpadelas e, chegando ao tamborete da cabeceira, acendi um fósforo. À sua luz trêmula, vi um vulto em pé, de costas para mim. Era uma mulher de xale e de lenço na cabeça... Acendi novo fósforo... Chamei-a... Nada.. Então saí a correr do quarto. Quando cheguei à sala de visitas, encontrei a sra. Ludovina e a menina Alzira que, com certeza, haviam entrado pouco antes. A menina deu-me uma vaia.

- Olhem o corajoso que tem medo de um boneco!

- Um boneco?

- Claro... É o nosso manequim... Botei-lhe o lenço e o xale...

E ria, divertidíssima. A sra. Ludovina desculpava-se:

- Eu bem lhe disse que não fizesse isso. Quem sabe lá se o menino sofre dos nervos. Mas, quando há falta de juízo...

E a menina Alzira ameaçando-me com o fura-bolos:

- Isso é para que tu não andes por aí, em más companhias. Estás a ouvir?

No dia seguinte, quando saí de casa e passei por entre os caixeiros estacionados diante das lojas, a conversarem entre si, ouvi um deles dizer a outro:

- Ontem à noite, ele fez uma zanguizarra, por causa de uma atriz...

Pobre de mim - como dizia um velho marinheiro que morava ali do outro lado do Tejo, em Cacilhas, e que a posteridade conhece pelo nome de Fernão Mendes Pinto. Talvez fosse ressaca, mas eu senti doloroso o vácuo daquela existência. Desencadeou-se em mim, de novo, a ânsia de viajar. O Silva Preto, que me havia convidado para o café, prometeu levar-me à África.

- Queres ir a Angola? O meu navio deve zarpar amanhã.

- Quero.

- Serás o primeiro brasileiro a pisar aquela terra.

- Estás enganado. Os brasileiros, em caravelas, já fizeram um desembarque em Angola.

O africano sentiu-se ofendido em seus brios. Discutimos. Apostamos. E para tirarmos o caso a limpo, corremos à biblioteca pública mais próxima, que era a do Conde Barão. Fizemos descer livros. Os estudantes que lá se encontravam às voltas com os compêndios tomaram partido. Foram transgredidas todas as recomendações de silêncio e compostura afixadas na sala. Para restabelecer a ordem, o encarregado convidou o brasileiro e o angolense a se retirarem do recinto... Descemos a escada, sentamo-nos num banco da praça e assentamos os pormenores da viagem. O Silva iria ter com o capitão, que vivera no Brasil, e lhe narraria o meu caso; depois arranjaria um servicinho para mim, a bordo, só para não dar na vista. Despedimo-nos satisfeitos e cada um foi para seu lado.

Tomei o caminho de casa, para despedir-me do sr. Timóteo e sua família e, com palavras graves, assegurar-lhe que um dia, apenas me encontrasse no Brasil, lhe mandaria pontualmente a importância do meu débito. Subindo a escada fui estudando o discurso. Quando cheguei à sala de visitas, encontrei a menina Alzira com O Século estendido sobre a mesa, a ler um anúncio e a rir...

- Menino Felipe, venha ver isto!

Alguns jornais de Lisboa, naquele tempo, publicavam correspondência de namorados. A seção era na quinta página, em meia coluna, com um nome feminino a servir de título. Olhe os avisos: Elena, Mariana, Judith, Alzira...

Era mais ou menos assim: "Alzira. Estou arrependido. Desejo conversar um momento contigo. Avisa-me. Mil a e mil b do teu - Albino".

- Quem é esse Albino?

- É o meu conversado. Despachei-o há dias.

- Por que motivo?

- Isso é cá comigo...

Tocaram a sineta da porta. Dali a pouco, a sra. Ludovina entrou do corredor com uma carta para mim. Era registrada, com selos do Brasil. Abri-a com uma curiosidade fácil de imaginar. Um cheque! Cem mil réis fortes! Saí a correr e despenquei pela escada. Fui ao banco. Mas era preciso carteira de identidade. Corri ao Ramiro, este correu ao Casimiro, a Ribeira Nova interessou-se pelo assunto. Foi o Casimiro quem apôs o carimbo da mercearia e a sua firma, para que eu recebesse o dinheiro. Aquilo montava a 25 libras esterlinas, ou seja, uma fortuna em cruzeiros. Comprei roupa, calçado, substituí o cabuloso chapéu de pelotiqueiro e, quando voltei a casa, estava outro.

Paguei com lisura as dívidas, fiz presentes. Digo paguei com lisura as minhas dívidas, referindo-me às dívidas em dinheiro. Quanto às outras, de bondade e hospitalidade que encontrei em Lisboa, essas, não as poderia pagar com dinheiro algum. Os moços estarão velhos, os velhos já terão morrido, mas quando os vejo no quadro da lembrança, é para mandar-lhes um doce pensamento de gratidão.

A sra. Ludovina censurou-me:

- Já sei da sua viagem. Se eu conhecesse o endereço de seus pais, mandaria avisá-los, por telegrama, que o menino vai fazer uma loucura...

E a menina Alzira, perplexa:

- Ir para a África! E com o maluco do Silva Preto!

Só então me lembrei do trato que havia feito com o piloto angolense.

- Não! Eu não vou para a África! Eu vou é para a França!

As duas mulheres ainda assim não se conformaram. E para evitar seus conselhos saí de casa, prometendo que voltaria para os adeuses. Elas, porém, não acreditaram. Fui despedir-me do Ramiro e do Casimiro que tão bons haviam sido para mim. Os dois rapazes abandonaram os seus afazeres e me acompanharam até a esquina. Abraçamo-nos, comovidos. Quando fiquei só, olhei a janela do meu quartinho, o vento do Tejo agitava a cortina de percal, num adeus. Na outra janela que correspondia à sala de visitas, estava a menina Alzira, a acompanhar-me com os olhos. Fiz-lhe uma saudação e ela respondeu-me.

Segui pela Rua 24 de julho, para as bandas de Santos, onde passava o elétrico. Andei uns cem passos e, por curiosidade, olhei novamente a janela. Lá estava ainda debruçado, a acompanhar-me com os olhos, aquele vultinho solitário. Virei a primeira esquina e tomei, a pé, o rumo da estação dos caminhos de ferro. E, caminhando, ia vendo em imaginação aqueles olhos verdes que me espiavam da janela de um segundo andar. Durante muitos anos, ainda os senti sobre mim, magoados e tristes, como uma saudade.

Chegando à estação do Rossio, fui direito à bilheteria dos trens internacionais. Ergui-me na ponta dos pés, a fim de alcançar o "guichet".

- Uma passagem de terceira classe para Paris.

O bilheteiro espiou pela abertura da gaiola.

- Grande ou pequena velocidade?

- Pequena.

- Olhe que esse comboio gasta 96 horas até a gare Paris-Orleans.

- Quanto mais tempo demorar, melhor.

- Os papéis?

- Sou brasileiro, não trago documentos.

- Nem ao menos o passaporte?

- Nada.

Nessa altura, por um milagre que só mais tarde eu deveria compreender, o Professor (aquele cabuloso Professor que não havia acreditado no meu estro...) destacou-se da sombra, falou em voz baixa com o bilheteiro e, o que mais me admirou, colocou-se do meu lado.

- O rapaz é mesmo brasileiro. Conheço-o de longa data. Podes vender-lhe a passagem.

Mas, o homenzinho recalcitrava. E tinha razão. Em 1907, os jovens da minha idade, nascidos do outro lado do mar, gastavam fortunas e metiam-se em aventuras, a fim de mudar de um país para outro, e escapulir ao serviço militar que, segundo diziam, lhes tirava dois belos anos da mocidade. Compreendi tudo isso. O Professor interveio:

- Nem ao menos carta do Brasil?

Despejei os bolsos diante do "guichet". Lá estavam duas cartas e - eu já não me lembrava mais... - aquele rótulo de garrafa de cerveja, encontrado no cais. O Professor, que estava mesmo disposto a despachar-me, ligou-lhe a maior importância:

- Olha cá.... Cerveja do Brasil... Não vês que é mesmo brasileiro?

Diante de tal argumento, o homenzinho da gaiola recebeu 23$260, em papel, prata e cobre, e passou-me uma caderneta cor de chocolate. Os bilhetes internacionais eram assim. Durante a viagem eram tão picados e carimbados que, quando a gente chegava à estação final, já deles pouco restava. Ao entregar-me rogou uma praga:

- Dentro de uma semana estarás aqui de novo, pois não poderás desembarcar em parte alguma.

O carro de terceira classe era pouco melhor que um vagão de carga. As portas laterais davam sobre bancos atravessados, de altos espaldares, de modo que seis passageiros viajavam de frente e seis de costas. Mal podiam comunicar-se com os companheiros de outros bancos. Meus sócios de compartimento não se destinavam à fronteira; eram trabalhadores que iam para cidades e aldeias do caminho. Uns levavam sacos de roupa, outros embrulhos de compras.

O saloio que sentava à minha frente equilibrava um gadanho entre as botas de couro cru. A mulher a meu lado mantinha sobre os joelhos uma cesta fechada de onde, frequentemente, saíam gritos de aves. Nessas ocasiões, ela arregalava os olhos, apreensiva, e a turma se escangalhava de rir. Como a partida demorasse, um homem abriu o farnel e, com a sevilhana, começou a cortar bocados de broa negra e de queijo rançoso. Depois, levou a garrafa à boca e - glu, glu, glu - deu-lhe um corte de meio palmo.

O relógio da estação bateu seis horas, pausadamente. Na plataforma já umbrosa, alumiada por lampiões, aglomeravam-se os passageiros. Gritinhos, risadas, adeuses. Uma espanhola alta, envolta em guarda-pó de palha de seda, chegou entre dois carregadores com malas e caixas de chapéus. Foi uma dificuldade para encontrar acomodação. Os passageiros se interessavam pelo caso, vieram funcionários, travaram-se discussões e, por fim, ela sumiu na portinhola de um vagão. Mas, logo depois, botou a cabeça para fora da janelinha e começou a chamar por um cachorrinho que não se via na plataforma.

- Negrito! Negrito!

Ouviram-se campainhas. Os últimos viajantes correram para os carros. A máquina resfolegava. Soltava esguichos de vapor. Súbito, um prolongado apito. E o comboio moveu-se lentamente, lentamente. Entrou num cenário crepuscular de morros, onde se viam linhas de combustores, ruas tortuosas, ladeiras, escadinhas. Depois, novo apito, e precipitou-se de chofre num túnel. Fecharam-se janelas com estrépito. Esperei que o trem saísse novamente do túnel. Um minuto, dois, três, quatro... O compartimento estava saturado de vapor. Começava a faltar-me o ar. A lâmpada do alto já havia desaparecido na noite esbranquiçada. Uma angústia... Mas, o trem saiu do outro lado, longe da cidade, numa campina aberta, iluminada pelo plenilúnio. Viam-se caminhos ladeados de salgueiros, fitas azuladas de drenos e chãos quadriláteros, onde as plantações se sucediam ininterruptamente.

Por aquela altura, Lisboa, já ficando para trás, não passava de um clarão entre as serras. Não passava de uma lembrança, de uma ternura, de uma saudade.