Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de
15/4/1945 com o texto
VII - O descobrimento da Europa
A vida de bordo, naquela terceira classe atulhada de passageiros, prosseguiu no mesmo ramerrão.
Mas, pouco a pouco, o ambiente foi se modificando. Cada dia que passava os viajantes se sentiam mais próximos da Europa e, como consequência, os
ares entraram de esfriar. A princípio, limitamo-nos a esconder as mãos nos bolsos. Depois, começaram a aparecer sobretudos, capas, até ponchos dos
imigrantes que regressavam dos pampas. Por último - e esse foi o meu caso - alguns passageiros, pela manhã, ao subirem para o convés, trouxeram o
cobertor às costas, como manto.
Na semana seguinte, já havia gente que, mais sensível à temperatura, se deixava ficar no porão, só de lá saindo para o rancho. Na coberta, as
famílias reuniam-se em grupos, muito unidas, aquecendo café na espiriteira, ou fervendo água na chaleira de alumínio, para o chimarrão. Entrava-se,
pois, em águas da Europa, ainda varrida pelos aquilões de fevereiro. O céu baixo e nevoento, o mar encarneirado, o vento afiado como navalha. Foi,
como se pode imaginar, uma festa, quando o marinheiro Benjamim, um sabe-tudo, nos informou:
- Amanhã chegaremos a Vigo.
Durante aquela noite, o guindaste trabalhou retirando cargas e bagagens do porão, depositando-as na coberta. Mas, durante a manhã e parte da tarde,
nossos olhos ansiosos não lobrigaram terra à proa. Ao pardejar da hora, já com mar encapelado, encontramos um lugre que parecia divertir-se em
montanhas russas. Arvorava bujarrona e carangueija. E dava a impressão de que não se movia, pinoteando loucamente no mesmo lugar. Os passageiros
correram para a amurada, a vê-lo. No passadiço, também apareceu gente de binóculo. Foi quando se ouviram assobios e toques de sinetas. A ré
ergueu-se um turbilhão de águas, agitadas pela hélice, em sentido contrário.
Mestre Vieitas indicou-nos um ponto à meia-nau: ainda estávamos a olhar para ali, quando foi içada uma adriça com diversas flâmulas. E o ex-patrão
do Rio Sado esclareceu-nos:
- O Berenguer-el-Grande está perguntando ao lugre se necessita de socorros. Esperem que ele agora vai responder...
Dito e feito. Lá longe, entre os mastros do veleiro, subiu para o céu uma adriça de flâmulas. O lobo do mar botou a mão em pala, considerou, depois
traduziu os termos da resposta.
- Não necessitamos de nada. Todos vivos e com saúde. Esperamos chegar na próxima semana. Comunique aos armadores.
Ouviu-se novamente o tam-tam da hélice, o toque da sineta, e o Berenguer-el-Grande retomou a marcha. O veleiro lá ficou, perdido na cinza do
crepúsculo. Devia seguir o seu roteiro fantástico, levado pelo vento, por um caminho todo feito de estrelas.
Já noite fechada, divisamos a bombordo o fogacho intermitente de um farol. Depois, outro a estibordo. E o navio rumou por entre ambos, com um alto e
regular bater de hélices. O céu foi descendo no mar, sob a forma de nevoeiro. Os moços de bordo andavam de um lado para outro, com lanternas. De
minuto a minuto, o navio soltava um uivo profundo que atroava a noite. A marcha lenteceu, tornou-se apenas perceptível. Uma hora, duas... Depois, no
lençol do nevoeiro, começaram a aparecer luzes que, lentamente, iam mudando de posição. Umas apagavam, outras acendiam. Por último, a cerração
tornou-se dourada, transparente. À proa apareceram linhas de luzes; umas horizontais, formando patamares, outras, oblíquas como nas ladeiras, as
últimas verticais como janelas iluminadas de arranha-céus. Era a cidade que vinha ao nosso encontro.
Por essa altura, eu estava encostado à amurada, com a cara lanhada pelo vento e as mãos roxas de frio. Uma sombra amável aproximou-se de mim e,
depois de condoer-se da minha solidão, dividiu comigo, cristãmente, o seu manto, isto é, abriu o xale como asa escura e, com a parte que lhe
sobrava, defendeu-me da intempérie... Era Rosalina, a filha de José Francisco Joaquim, minha conterrânea que se fazia notar pela palidez do rosto e
pela vivacidade dos olhos. Foi, pois, sob a proteção de um xale azul orlado de cinzento, com grandes franjas macias, que entrei no porto de Vigo.
Aquele xale cheirava a mormaço.
Vista de dentro da baía, numa noite de neblina, a capital da Galiza pareceu-me uma cidade monumental, tipo norte-americano, apinhada de prédios de
oitenta andares. E, tendo descoberto a Europa, fui dormir. No dia seguinte, com um sol claro a entrar pela vigia, acordei. Imagina-se a pressa com
que subi para o convés. O Berenguer-el-Grande já estava atracado no ais. Ao primeiro olhar, vi que a cidade não era aquela que me tinha
parecido à noite. Mas, nem por isso deixava de ser linda.
Está edificada em anfiteatro sobre a baía. À direita, o amontoado medievo do bairro de El Castro; à esquerda, uma orla de penhascos cinzentos
sombreados de verdura, onde o mar tece grinaldas de escuma. E, sobre esses penhascos, com suas torres agudas, seu casario caiado, os numerosos
distritos dos quais Vila Garcia é o mais pitoresco. Minha primeira vontade foi desembarcar. No portaló, havia grande movimento de bagagens. Gente
que saía, gente que esperava no cais. Por toda parte, pedidos de informações, adeuses, recomendações, lembranças. Quando ia descer, vi dois soldados
da "benemérita" em seus postos. Com farda castanha e vermelha mochila, botas luzentes, tricórnio de couro, fuzil de baioneta calada, eretos,
imperturbáveis. Funcionários da polícia exigiam papéis, discutiam. Foi então que eu, com o ar seráfico que tão bem me fica, acompanhei a família de
d. Carmen Fontela e, entre seus filhos, saltei para o cais. Logo depois, a polícia interditou o navio. Os inspetores, à viva força, queriam saber o
paradeiro dos quatro anarquistas. Mestre Vieitas, que apareceu a meu lado, confidenciou-me:
- Se eles têm boas pernas já devem estar longe. Vi-os esta madrugada, vestidos com os macacões dos foguistas, descerram ao cais e desapareceream.
Ainda me disseram adeus, os marrecos!
Ao tomar o caminho da estação, para alcançar o trem de sua terra, a boa senhora estendeu-me a mão:
- Estamos em Santiago de Compostela, postigo de Arriba n. 7...
- E eu...
- Não se esquece?
- Não.
Tantos anos decorridos, ainda me lembro daquele endereço. Na primeira esquina, olhei para trás; ela os filhos acenavam-me com o lenço. Logo adiante,
uma mulher, que viera no mesmo vapor, já agenciava fregueses para o restaurante do filho. Entrei, afinal, na cidade. Vi logo que todas as mulheres
vestiam de preto. Parecia uma população de fim de guerra: era a Semana Santa. Ouviam-se vozes, distinguiam-se pregões de mercadores. Subi a calle
Carral. A cidade, apesar de sol claro da manhã, estava toda molhada. A água jorrava das calhas, descia pela sarjeta, despencava em cachoeiras. Era a
visão comum das cidades da Europa, no fim do inverno.
Ao passar pelo Hotel Continental, descobri uma tabuleta que logo me interessou: "Peluquero". Entrei. Homens vestidos de veludo cor de garrafa e
botina conversavam. Um mostrava qualquer coisa na primeira página de El Faro, outro argumentava com El Noticero. Ao ver-me, o fígaro
ofereceu-me a cadeira, mas, notando o estado das melenas, ficou perplexo.
- Como quer que eu lhe corte?
- Com a tesoura, se for possível.
Ele tomou do pente que trazia enterrado na própria grenha e tentou botar em ordem o meu caos capilar. Impossível. Então, com as pontas dos dedos da
mão esquerda levantou o chumaço de cabelos e, com a tesoura armada na mão direita, começou a cortá-lo por baixo, como o enfermeiro faz com a casca
de uma ferida. Feito esse trabalho, o homenzinho, num gesto cômico que ainda não lhe perdoei, levantou a cápsula felpuda e deixou-a cair no chão
como se fora uma gorra basca, de estopa. Uf! Senti-me aliviado como se me houvessem tirado, depois da cura, um cataplasma de mostarda. Fui ao
espelho; estava irreconhecível.
Paguei-lhe as duas moedas de cobre e saí acompanhado pela curiosidade dos circunstantes. Ainda não tinha dado vinte passos alcancei um grupo de
homens que subiam pelo meio da rua: eram o Anjo, o Patudo e os dois passageiros clandestinos que, ladeados por guardas, se dirigiam para o centro da
cidade, naturalmente para a repartição de polícia. O Anjo lá ia com o seu "cavour" de abas esvoaçantes, o livro grosso debaixo do braço; o
Patudo conduzia um violão às costas, suspenso por uma correia, e na mão quatro peças de roupa embrulhadas em jornal; o clandestino mais velho ia sem
chapéu e o mais jovem, aquele que tão bondosamente me conseguira uma caneca de água fresca na cozinha de bordo, ia descalço, martirizando os pés
brancos no empedramento da rua. Fez que não me viu. Abaixou a cabeça, puxou o chapéu para os olhos; talvez estivesse chorando.
Não posso dizer que fiquei conhecendo a cidade de Vigo nas horas que lá passei. Mas, há um estabelecimento universalmente franqueado ao primeiro que
chega e que, em qualquer parte, com boa vontade, pode ser considerado a sala de visitas da cidade. É o café. Quando por lá passei, a cidade da
Galiza ainda contava numerosos desse estabelecimentos. Com certeza, lá como aqui, como em toda parte, esses cafés, acotovelados pela pressa de
nossos dias, foram substituídos pelos expressos, onde a gente entra olhando para trás, compra uma ficha, encosta no balcão e recebe a xícara
fumegante. Mas, em 1907, ainda os havia e de diversos naipes.
Atravessei diversas praças, onde a água escorria no chão e nas paredes, à luz do sol de inverno, e admirei a sua atividade. O comércio é assaz
animado, não raro transborda das grandes lojas e armazéns, para encantoar-se em barracas, galpões, até mesmo nos terrenos vagos e nos desvãos dos
edifícios. Quem não quer entrar nas vastas e esplêndidas lojas poderá comprar nessas bibocas tudo o que necessita: roupa, calçado, frutas, doces,
aparelhos de barbear, cintos, carteiras, conservas até livros. As tendas são cobertas por lonas coloridas. Os balcões dão sobre a rua. As grandes
cestas de figos secos e de passas, as pilhas de pão de mel e de torrão de Alicante transbordam para o passeio. Devia ser aquela a hora das compras.
Por toda parte, mulheres de avental, carregando cestas atulhadas de verduras. Empregadinhos de mercearia, rechonchudos e corados, transportavam
tabuleiros com carne, queijo, frascos de leite e salpicões. Um velho, conduzindo um garrafão de vinho em cada mão, parou diante de mim e mostrou-me
a cigarrilha apagada, pedindo fogo.
Eis-me na principal artéria da cidade: calle Príncipe. Bem edificada, ampla, concorrida. Olho para a direita e a esquerda e encontro, afinal,
um café. É o "Mendez Nunez". Está instalado no rés do chão de velho edifício ao gosto peninsular. Entra-se no estabelecimento, empurrando a porta
envidraçada. Dá-se no salão alumiado por diversos globos incandescentes. O "Mendez Nunez" não se parece, em nada, com os nossos cafés, daquela
época. Não lembra um estabelecimento público. À meia luz das lâmpadas, vi mesas grossas e escuras, de rebordo trabalhado, poltronas almofadadas, a
velha lareira com vasos e estatuetas, embora a temperatura fosse regulada por tubos de calefação, pinturas a óleo pelo teto, painéis de muito gosto
pelas paredes escuras, reposteiros, chapeleiras de acaju - tudo isso multiplicado ao infinito por grandes espelhos "bisautés".
Penetrei nesse salão com o ar despreocupado com que nós entramos em qualquer café, mas, ao deparar tamanho aparato, tive um movimento de hesitação.
Felizmente, o garçom estava ali mesmo, para me encorajar. Era um homem alto, de "smoking" de alpaca, sapatos lustrosos, barba raspada,
pondo-lhe na fisionomia clara e rósea uns tons de chamusco. Indicou-me a mesa do canto. Acanhado de pedir apenas café, optei por chocolate. Dali a
pouco, o pedido veio numa bandeja de metal prateado, com o copo de água e... Ai de mim! Era uma endrômina difícil de explicar. Nada menos do que um
bloco de matéria cristalina que participava de esponja e de vidro. Media aproximadamente um palmo de comprimento, por três polegadas de espessura. E
estava atravessado sobre a taça de chocolate...
Para que serviria aquilo? Outro qualquer que tivesse mais prática de viajar, num caso como esse, chamaria o garçom e, com toda naturalidade, lhe
perguntaria: "Faça o favor de me explicar para que serve este negócio..." Mas, naquele tempo, eu contava 16 anos, tinha a timidez de um provinciano
e a candura de uma flor. Com o rabinho do olho, examinei os outros fregueses. Na mesa do fundo, uma senhora e um cavalheiro haviam tomado o seu café
e conversavam em voz baixa. À esquerda, um clérigo, vergado sobre a tigela de nata, parecia absorvido nos mistérios do céu. E a bandeja diante de
mim. O chocolate a esfriar. E o estranho objeto a rir da minha entaladela. Pedi um jornal. O garçom trouxe o prendedor de madeira, com as folhas do
dia: li o Faro de Vigo, depois o Noticero... E, lendo, suplicava aos céus que me mandassem outro freguês, e que esse outro freguês
pedisse, como eu, um chocolate. Queria ver o destino que ele daria ao cabuloso lagarto de cristal. E os céus, como sempre, atenderam ao meu pedido.
A porta envidraçada abriu-se e um senhor de cabelos brancos alisados sobre a calva apergaminhada, muito bem posto, com passinhos miúdos, entrou no
salão. O garçom correu-lhe ao encontro.
- Bom dia, senhor Dom Segismundo. Como vai a saudinha?
Ele limitou-se a gemer:
- Assim, assim...
Entregou-lhe o chapéu duro, a bengala e o cachecol vermelho e azul, às listas, objetos que o garçom foi depositar cuidadosamente na chapeleira.
Depois, voltou e, sempre sorrindo, ajudou-o a tirar o sobretudo castanho com viçosa gola de astracã, as galochas, as polainas salpicadas de água. Só
depois desse ritual pude ver a D. Segismundo como ele, com certeza, nestes quarenta anos decorridos, compareceu diante de São Pedro. Estava trajado
de preto, muito bem escovado, plastrão de seda, colarinho duplo, uma esplêndida rosa na lapela e um par de luvas cor de canário, que ele, depois de
amesendado, levou bem dez minutos para descalçar.
O garçom serviu-lhe um chocolate igualzinho ao meu. Imagine-se o interesse com que eu, no meu canto, obsevava os seus movimentos. Vi-o depois tomar
do "azucarillo" (o nome só aprendi mais tarde) e mergulhá-lo tranquilamente no copo, para adoçar a água. Fiz o mesmo. Acho que dei aos
presentes a impressão de que em minha vida nunca fizera outra coisa senão tomar chocolate com "azucarillos"...
À tarde, passeando pela calle Príncipe, entrei no "Café Colon". Era um estabelecimento de outro gênero, bem mais popular. Funcionava num
prédio de arquitetura estrambótica, pintado a verde e a vermelho. No passeio, havia mesas entre as colunas. No rés do chão, uma sala muito
concorrida, onde homens de chapéu para a nuca discutiam "stocks", preços, peixe em lata e frutas em cestos. O luxo estava no primeiro andar;
ali, havia um terraço sobre a rua, onde, nos claros dias de sol, as famílias se reuniam para tomar sorvete e ouvir música.
Só à noite, sem chapéu e de mãos nos bolsos, fui ter ao "Giralda". Era um café-concerto. Encontrei-o por acaso. Andava a vagabundear pelas ruas
velhas e estreitas de El Castro, o bairro medievo, quando ouvi uns acordes de piano e uma canção alegre. Corri para a faixa de luz que se estendia
sobre o passeio. Era lá mesmo. Na porta, dois cartazes a giz de cor anunciavam o programa da noite: uma "chanteuse à voix", uns palhaços
internacionais e duas ou três cançonetistas da terra. Em baixo dos cartazes, uma frase sugestiva: "Entrada grátis". Abaixei a cabeça e fui
entrando... Mas, o porteiro, um sujeito dobrado, vestido de libré verde, peruca de algodão e tricórnio, atravessou a bengala na minha frente.
- Não senhor. Isto não é para meninos!
Senti um repelão nos nervos. Essa era a maior humilhação que alguém me poderia fazer naquele tempo. Recebi-a com um desgosto só comparável à
satisfação que essa mesma frase hoje me causaria... E desanimado, ia sair, quando encontrei um homem alegre e espalhafatoso.
- Chê, hombre! Que te ocurre?
Era Dom Bustamante. Ele estava, visivelmente, com um grãozinho de chumbo na asa. Muito bem trajado, o chapéu de coco atirado para trás, as faces
incendidas, o charuto a fumegar entre os dentes. Tomou-me pelo braço e, sem dar atenção ao porteiro, conduziu-me a uma mesa dos fundos, perto do
tablado. O salão era modesto, com mais ou menos quarenta mesas, onde a rapaziada passava algumas horas, ouvindo números de café-concerto. Ao garçom,
que nos atendeu, recomentou:
- Uma garrafa de Málaga, no gelo, sanduíches de atum, com rodelinhas de cebola e batata palha...
Depois, olhando-me com olhinhos divertidos, disse-me:
- Como vês, nem todos os que viajam de terceira classe são labregos. Aqui estou eu que sei comportar-me em sociedade. Neste momento, voltando ao meu
terrunho quero fazer-lhe as honras da casa.
O tablado ficava encostado à parece do fundo. Teria, quando muito, meio metro de altura. Era todo atapetado de grená. Servia-lhe de perspectiva um
pano de fundo em que se via a torre da Giralda, entre amendoeiras em flor; era essa torre sevilhana que dava o nome ao estabelecimento. Uma mulher
subiu pela escadinha lateral e, entre palmas, começou a cantarolar. Dom Bustamante encheu os copos, fez-me uma saudação cordial e depois virou-se
para o tablado. Com o chapéu na mão, marcava o compasso das coplas. E dava gritos:
- Viva tu madre, gitana!
O homenzinho estava mesmo impossível. A umas tantas da noite, não se conteve diante da melodia malaguenha bem arrulhada - o vinho de Málaga misturou
com a canção de Málaga - e ele atirou o chapéu de coco no tablado, aos pés da cantora. Terminado o número, a jovem veio restituí-lo: chegou bem
próximo de nossa mesa, abriu um grande leque de plumas sobre o peito e falou por cima dele, como de uma tribuna. Seu penteado era alto, amparado por
trás pelo largo pente de tartaruga, em forma de cauda de pavão, com riquezas de lentejoulas. E trazia uma rosa na boca. Disse o seu agradecimento
com tal graça, com tal chiste, que as suas palavras me pareceram extraterrenas. Os olhinhos melosos de Dom Bustamante eram como o termômetro da
ternura. Vi-os alcançar todos os números do cristal. Olhar 37, olhar 37 e 5 graus, olhar 38, olhar 39, olhar 40. Quando chegou ao olhar 42, deu-se a
cena que não cheguei a compreender. Foi assim: o garçom veio, apresentou a conta. Dom Bustamante pagou, deu uma régia gorjeta e ia continuar nas
suas expansões, mas sobreveio um senhor de fraque que se disse gerente e lhe falou no ouvido, pedindo que se retirasse.
Só vendo o desespero do estroina. Ficou de pé, invocou exemplos de Montevidéu e Buenos Aires, gesticulou com os braços curtos e desandou a xingar
todo mundo. Foi nessa altura que o guardião (aquele sujeito dobrado de que falei pouco antes) tomou-o cuidadosamente pelo braço e foi depositá-lo na
via pública. Acompanhei-o, por espírito de solidariedade. Mas, o homenzinho deu-me um trabalhão. Queria à viva força voltar, desancar o porteiro,
tomar de assalto o café-concerto e salvar aquelas pobres cantoras dignas de outro estabelecimento, menos pícaro...
Um homem encapotado surgiu no fim da rua e dirigiu-se lentamente para o nosso lado. Era o rondante. Mostrei-o ao meu companheiro. E ele, com um bom
senso que eu estava longe de esperar, deixou-se conduzir para a cidade. Braço dado, escorregando pelas ruas perenemente molhadas, a escorrerem água,
seguimos na direção das ruas centrais. Perguntei-lhe onde estava hospedado. Era no Hotel Continental! Quando lá chegamos, apertei o botão da
campainha e o criado não se demorou a atender.
- Leve este senhor ao seu quarto: amanhã, ele lhe dará uma boa propina.
O homenzinho rosnou.
- É a segunda vez que me aparece assim...
- Não repare. Ele está alegre. Voltou à terra. A terra lhe subiu à cabeça...
- Diga antes: a água! Foi a água que lhe subiu à cabeça!
Começava a alvorecer. Desci a calle Carral sem muita certeza de poder entrar no cais, muito menos ser recebido no portaló do
Berenguer-el-Grande. O frio aumentava. Uma cerração espessa obscurecia a iluminação da cidade. Os lampiões eram apenas perceptíveis como bolas
transparentes. Ouvia o ruído da água a jorrar das calhas, a formar alegres cachoeiras ao longo das sarjetas. Quando cheguei a uma grade de ferro que
barrava o caminho, a silhueta inconfundível de um "benemérito" deu o alarma. Estaquei.
A sombra veio ao meu encontro, pediu papéis que eu disse terem ficado na mala, a bordo... E estava nessa conversa que terminaria fatalmente pela
proibição de entrar no cais, quanto a Providência mandou um dos mensageiros com que costuma socorrer-me nos momentos difíceis. Não trazia ao redor
da cabeça um halo luminoso. Longe disso: estava vestido de zuarte, o boné de couro puxado sobre o olho direito, o lenço de cores enrolado no
pescoço, um animal escuro a agitar-se debaixo do braço. Era o marinheiro Benjamim. Ao ver-me, veio apresentar-me o gato que encontrara, abandonado,
na rua.
- Que nome devo dar-lhe?
- O nome do "Trovador".
- Diga lá...
- Manrico de Luna.
Ele acariciou o gato:
- Manrico... Manrico...
Graças à sua amistosa intervenção, consegui atravessar aquela barreira. Acompanhei-o. Todas as portas se foram abrindo à nossa frente, como por
encanto.
Ao aproximar-me da minha cama, encontrei Luís, como sempre, a manipular o baralho. Um baralho que - segundo me afirmava - era ensinado. Dava, no
momento oportuno, a carta que ele pedia...
- Você está levantando cedo?
- Não. Estou deitando tarde.
E sem dar mais trela, saltei para a cama, virei para o canto e dormi até tarde. Quando levantei, o navio jogava, jogava forte como um jogador
profissional. Compreendi que já havíamos deixado [... (N. E.: linha ilegível no original)].
Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de
22/4/1945 com o texto
VIII - Águas do Tejo
Viajamos três dias dentro do nevoeiro. Só quem passou por esse mau bocado poderá fazer ideia da vida a bordo do Berenguer-el-Grande. A
maior parte dos emigrantes de torna-viagem tinha ficado em Vigo. Restamos, ao todo, uma centena de passageiros, na sua quase totalidade portuguesa.
Por essa altura, já havíamos travado relações de amizade e, nas conversas, nos tratávamos familiarmente pelos nomes.
Os porões mantinham-se quase desertos. Aqui um homem sentado à borda da cama; lá no fundo, outro, empacotando a roupa suja da viagem. No convés e na
proa, raramente se encontravam reunidas duas dúzias de pessoas. O rancho, organizado nos primeiros dias, estava desmantelado. Por isso, nós, de
acordo com preferências e afinidades, fomos constituindo novos grupos. Aderi, quase sem dar por isso, à família de José Francisco Joaquim. Rosalina
tinha descido em Vigo e abastecera a cesta de viagem; passávamos o dia inteiro tasquinhando figo seco e torrão de Alicante. Não faltavam cadeiras,
nem cobertas, pois os passageiros espanhóis, na ânsia do desembarque, haviam enjeitado no convés pilhas de preguiçosas, rolos daqueles cobertores de
mata-borrão.
Mas, a verdade é que o nevoeiro transtornava tudo. Tinha-se a impressão de viver num aquário. Não se via nada a um palmo do nariz. As figuras
desmanchavam-se e desapareciam à nossa frente. E o navio não dava esperança de chegar. A marcha reduzida ao mínimo, em certas ocasiões, ele parecia
estar parado. O bater da hélice era lento, o cachoar das águas na popa não passava de um murmúrio. De dia, sobre a capa de nevoeiro, pairava uma
vaga luminosidade que bem podia ser o sol; de noite, porém, aquele véu lactescente se tornava tão unido que as próprias lanternas errantes dos
marinheiros não passavam de bolas douradas, a rolarem pelo navio.
Além disso, os ruídos com que o Berenguer-el-Grande proclamava a sua presença eram inquietantes. De minuto em minuto, o grande apito dava um
berro curto que mais parecia gemido. A sereia botava a boca no mundo. E o sino de bordo, bulhento como o de uma capela de freguesia, punha-se a
badalar malucamente. Temia-se abalroamento. Se tal desastre se desse, estaríamos perdidos. De pouco nos valeriam coletes de cortiça e botes
salva-vidas. A cerração amortalha em vida os náufragos. Mesmo que os sinais de socorro fossem atendidos e os barcos mais próximos acorressem ao
lugar do sinistro, como encontrar os infelizes a debaterem-se na água?
Mas, sobreveio uma cena que muito me entristeceu. Gritos e pragas irrompiam no porão. Orientei-me e corri para lá. Pretendendo descer a escada, fui
atropelado por gente que subia. Dei a volta e, debruçando-me no quadrado de madeira que guarnece a escotilha, espiei para dentro. A princípio, só
lobriguei vultos que arremetiam uns contra outros. Era uma rixa. Luís, encantoado entre camas e malas, gritava por socorro. Estava pálido como
defunto. Diante dele, dois homens em mangas de camisa procuravam riscá-lo com suas facas. Pus-me a gritar, também. Então, dois marinheiros que por
ali andavam desceram correndo a escada, mergulharam no porão e prenderam os contendores.
O bolo de homens passou por mim. Ouvi o que diziam. Luís exclamava:
- Queriam matar-me!
E um dos agressores, sem saber o que fazer da faca, explicava:
- É um ladrão. Apanhei-o com a boca na botija, a narcotizar o meu amigo.
De fato, a terceira personagem vinha atrás, com ar apalermado.
Os marinheiros, sem lhes dar tempo a explicações, levaram-nos ao comissário de bordo. Vi-os subirem a escada de ferro, um depois do outro,
pendurando-se nos corrimãos quase a pique. E de lá não voltaram.
Só então tive a certeza daquilo que, desde o primeiro dia, havia suspeitado. Mas o diacho daquele Luís, afora os crimes, era tão bondoso, tão
simpático... Esse episódio serviu de assunto para as conversas até o fim da viagem. A própria sra. Maria, esposa do José Francisco, disse à Rosalina:
- Quem vê cara não vê coração. Parecia um homem tão direito. Benza-o Deus!
Mestre Vieitas sacudiu os ombros: declarava com isso estar farto de saber que Luís era o ladrão que se procurava. Tinha visto muita gente no mundo;
quem se lhe aproximava era como se trouxesse um letreiro grudado na testa. Dificilmente enganava-se... Olhou a gávea, considerou o tempo e
sentenciou: "Depois da chuva, nevoeiro, tens bom tempo, marinheiro".
Gostei do rifão; aquelas palavras cheiravam a sargaço. E sempre mastigando a tica de fumo, ele foi assinalando os pontos da costa que nós outros,
homens leigos, velados de branco pelo nevoeiro, não podíamos descortinar. Lá para trás havia ficado Viana do Castelo, tal como a tinha visto frei
Bartolomeu dos Mártires, na formosa narração de frei Luís de Sousa. E Leixões, com o seu penhasco plantado no centro da baía. Pedi-lhe informações
sobre dia e hora da chegada. Ele não se fez rogar:
- Estamos caminhando de longada pela costa. Mais hora menos hora, devemos aproar para a foz do Tejo. Se não me falham os cálculos, o navio já deve
ter o gurupês apontado para o Bugio...
Dali a pouco, inesperadamente, a capa de nevoeiro entrou de esfacelar-se. Apresentando-se de densidade desigual, dividiu o espaço em regiões escuras
e regiões transparentes. As águas dormiram. As maretas batiam de leve no navio, como a dar-lhe palmadinhas amigas no costado. De súbito, fez-se um
buraco no céu baixo e vimos um bocado de azul. O nevoeiro, sem cessar, foi se levantando. Já não tocava as águas. Vimo-lo a dez, a vinte, a
cinquenta braças de altura. Depois, do céu baixo e acolchoado, desceram farrapos brancos que pareciam enroscar-se nos joanetes. E desceram para o
mar. Vimos espectros brancos, finos e altos como bailarinas, a dançarem na ponta dos pés sobre o espelho fosco das águas. E o vento as levava,
dançando, para longe. Ainda estávamos a admirá-las, quando um raio de sol, claro como um fio de mel, atravessou as aglomerações de vapor e veio
bater obliquamente nas chaminés.
Foi então que, pelo buraco aberto no nevoeiro, apareceu uma mancha azul, pontilhada de casas, de árvores douradas e de bandeiras alegres. Era
Portugal. O ex-patrão do Rio Sado, que andava a medir o convés com suas passadas elásticas, não quis ver mais: correu à escotilha aberta e
despencou no porão, naturalmente para arrumar as trouxas. José Francisco Joaquim, a mulher e a filha debruçaram-se na amurada e lá ficaram, de olhos
perdidos na distância. Os dois velhos deleitavam-se em rever o berço de onde tinham partido havia tantos anos; a menina, ao seu lado, queria
conhecer a terra, a santa terrinha, de que tanto falavam os pais.
- Que praia é aquela? - perguntei eu a um marinheiro que passava.
- Cascais.
O Berenguer-el-Grande pareceu rumar para aquele ponto da costa, mas, retomando, ao fim, a marcha normal, deixou-o à esquerda; pensei que ele
se dirigisse à outra margem que, ainda turvada pelo nevoeiro, foi pouco a pouco soerguendo à direita. Era uma ponta, com um penhasco e uma torre.
Essa torre arredondada, riscada de fisgas, enegrecida pelos séculos, foi tomando posição à proa. Era a Torre do Bugio. Mas o barco, voltando a
bombordo, entrou pela foz do Tejo, de águas cor de folha de salgueiro, e pareceu navegar pela terra a dentro. A praia de Cascais estava florida de
para-sóis vermelhos, amarelos e azuis. Depois, Oeiras. Depois, uma torre quadrada, com ameias mirando-se nas águas. Era Belém. Na outra margem,
Trafaria, Caparica e Cacilhas...
O panorama desenrolava-se diante de nossos olhos: eram arrabaldes de Lisboa. "Cottages" inglesas, chalés suíços, avenidas sombreadas de
velhas árvores, ruas de casinhas brancas, floridas, para namorados, e as grandes chácaras ao gosto português; os muros pardos, cobertos de heras,
sombreados de grandes copas escuras, ondulavam pelas colinas. De quando em quando, surgia a nossos olhos uma residência senhorial, chata,
esparramada, com portão de arco e reflexos de azulejos nas paredes. Depois, o rio alargou-se, transformando-se numa imensa baía, onde os
transatlânticos dormiam e miríades de pequenas embarcações riscavam o espelho das águas, agitando no ar bandeiras azul e branco. E veleiros de
muitos mastros. E rebocadores, arrastando galeras rio acima, e navios chatos de transporte ribeirinho. E barcaças atulhadas de trabalhadores, entre
as margens do rio.
Por essa altura, já estávamos na cidade. Era um imenso anfiteatro. Para lá da avenida marginal, delineavam-se grandes construções, surgiam parques,
desembocavam ruas, passavam bondes elétricos, carros de praça, um formigueiro humano. Larga praça se escancarou à nossa frente, cercada de arcaria
de pedra, com uma estátua equestre ao centro. Estávamos - segundo me informaram - no Cais das Colunas. O navio lenteceu de todo a marcha. Ouviu-se o
escorrer das amarras pelos escovéns e o mergulho pesado da âncora. Fundeamos na baía. Ao lado do Berenguer-el-Grande, um navio inglês,
apinhado de emigrantes, esperava a hora da saída. Com a correnteza os dois barcos chegaram a aproximar-se umas duas braças, a tal ponto que os
marinheiros lançaram as bolas de cortiça, a fim de amortecer o choque, no caso de colisão.
Enquanto esperavam a visita da Saúde, da Alfândega e da Polícia, os passageiros debruçados a uma amurada do nosso navio tagarelavam com os que
estavam na amurada do navio inglês. Uns chegavam, outros partiam. Perguntas e respostas se cruzavam no ar. Um homem de jaleco azul, boné de couro e
lenço no pescoço perguntou a José Francisco Joaquim:
- De onde vem esse navio?
- Da América do Sul.
- Vocês são muitos?
- Para Espanha e Portugal vieram 960 passageiros de terceira classe, 40 de segunda e 8 de primeira.
- Se a América fosse mesmo o que dizem, devia ser o contrário: 960 de primeira, 40 de segunda e 8 desgraçados de terceira...
A turma toda escangalhou-se de rir.
Um velho de barba em colar, chapéu redondo de largas abas, interrogou a mestre Vieitas, que estava pronto para descer:
- Você é embarcadiço?
- Embarcadiço desembarcado.
- Lá ainda existe a árvore das patacas? É fácil encontrá-la?
- É. Pergunte a esses mariolas que viajam aí em cima... - e mostrou com o dedo os passageiros de primeira classe, reunidos no passadiço.
Novas risadas entre os passageiros. O homem do jaleco azul voltou a interrogar José Francisco Joaquim.
- Tu pretendes voltar?
- Sim. Eu digo que volto e voltarei mesmo: os que dizem que não voltam, voltarão também. Aquilo pode não ser bom, mas quem lá vive um tempo nunca
mais se adapta a outra vida. É um jogo, um vício. O jogador que frequenta a casa de tavolagem lá deixa a camisa, mas o seu único desejo é voltar, é
arriscar, para perder o que tem e o que não tem. Nós todos somos como o doente que se vira na cama: muda de lugar para ver se encontra alívio...
Compreendes?
- Ai compreendo, ai compreendo...
Ouviram-se apitos, toques de sineta, arrastar de correntes e, dentro de pouco, o navio inglês deslizou a favor das águas, rumo ao oceano.
Trocaram-se adeuses, votos de felicidades. E diante de nós, com a saída do transatlântico, surgiu o Terreiro do Paço. Feitas as visitas das
autoridades, quando o desembarque ia ser permitido, uma lancha encostou ao Berenguer-el-Grande e dela desembarcaram três homens de traje
escuro e chapéu de coco. Os visitantes subiram ao convés e grimparam pela escadinha de ferro do tombadilho. Daí a pouco, voltaram com Luís. O rapaz
carregava uma mala em cada mão e rompeu por entre os passageiros, cumprimentando-os com a cabeça. Ao passar por mim, depôs as malas e estendeu-me a
mão numa despedida:
- Se eu voltar primeiro, irei à casa de teu pai para contar-lhe o teu caso e pedir-lhe que te mande dinheiro para a volta.
- Por quê?
- Porque, toma bem nota do que te digo: tu vais morrer de fome...
E lá se foi, entre os homens vestidos de escuro, não se soube para onde. A verdade é que ninguém lhe mostrou sorriso escarninho, ou lhe atirou de
passagem uma palavra má. As atenções foram logo atraídas para o outro lado, onde uma barcaça movida a remos atracava com dificuldade ao costado do
navio. Enquanto os marinheiros não a sujeitavam com cabos, ela garrou diversas vezes, arrastada pela corrente do Tejo. Logo começou o desembarque.
Na segunda ou na terceira viagem, coube-me fazer o curto trajeto entre o Berenguer-el-Grande e o Cais das Colunas. Eu, o José Francisco
Joaquim, a sra. Maria e a Rosália, chegamos juntos a terra. Anoitecia. Fui despedir-me deles, mas o homem não quis nem por nada que eu me fosse
embora:
- Anda daí, vem fazer-nos companhia numa garrafa de vinho.
Do Terreiro do Paço, dirigimo-nos para os lados da Ribeira Nova. Atravessamos a Praça Duque da Terceira e entramos na Rua 24 de Julho. Essa rua era
constituída de velhos sobrados de quatro andares, com locarnas de trapeiras. Nos andares superiores, estavam estabelecidos hotéis, hospedarias e
residências de empregados do porto; mas, o rés do chão era ocupado por mercearias, estancos e 'casas de comidas' pertencentes a galegos que em
Lisboa existiam muitos. Homens rijos no trabalho, de costumes singelos e benquistos por todos, ali se dedicavam às mais humildes ocupações. E, o que
era miraculoso, enriqueciam. Por isso, naquele tempo, os portugueses emigravam para o Brasil e os galegos da fronteira emigravam para Lisboa.
José Francisco Joaquim caminhava pelo meio da rua, consultando o letreiro das casas de negócio. Chegando em frente ao mercado da Ribeira Nova,
prestes a fechar-se, de onde vinha um cheiro forte de peixe e legumes, optou por um botequim ainda mais modesto do que os demais e lá entramos
todos. Um salão escuro com diversas mesas lustrosas pelo uso. À direita, o balcão, coberto de zinco, as prateleiras bem sortidas. Era detrás desse
balcão que o velho Antonio Carrera, natural de Ourense, superintendia a casa. O filho Ramiro, jovem de vinte anos, andava de um lado para outro, o
guardanapo no ombro, a servir os fregueses. E gritava para a cozinha:
- Um caldo para o Vicente. E que seja chorudo!
- Uma sopa de garbanzos para a sra. Adelaide. Carrega no entulho!
Àquela hora, com o fechamento da Ribeira Nova, o salão estava repleto de fregueses. Homens, mulheres, famílias inteiras de vendedores do mercado,
ali iam refazer-se de um dia de trabalho, devorando pratarrazes, entornando bojudas canecas de vinho. Gente humilde, mas desafogada. Assim concluí
pelo desembaraço com que gastava. Os homens vestiam calças estreitas, estreitíssimas, colete de pano áspero e chapéu redondo, de abas largas. As
mulheres vestiam com garridice: saia rodada, xale de lã e resplandeciam de ouro. Eram pesados cordões, que lhes davam mais de uma volta pelo
pescoço, grossos anéis, largos braceletes, imensas argolas a oscilarem nas orelhas. E riam com gosto, mostrando dentes magníficos.
Ramiro conduziu-nos a uma mesa que acabava de ser desocupada. Depois de cantar os pratos do dia e de ouvir as nossas preferências, gritou para a
cozinha:
- Atum de caldeirada para quatro. Carrega na mão, que é para os brasileiros!
E José Francisco Joaquim, instalando-se o melhor que pôde no banco, acrescentou, no mesmo tom:
- E uma botija de vinho, daquele que vocês bebem à noite, depois que a casa fecha as portas!
Foi um jantar memorável. Duas horas depois, saboreando as últimas frutas de um cabaz que fora inteirinho para a nossa mesa, o chefe de família
chamou Ramiro e perguntou-lhe:
- Sabes de uma casa às direitas, aqui pela redondeza, onde se possa passar dois dias, visto que depois de amanhã embarcamos para nossa terra?
Ramiro sabia. Era a pensão do sr. Timóteo, no segundo andar daquele mesmo prédio. E prontificou-se a mandar chamar o proprietário. A fim de
esperá-lo, enxugamos convenientemente a segunda botija. Já ao fechar das portas, entrou um homem com uma farda azul de guarda aduaneiro e dirigiu-se
ao chefe da família. Era um senhor correto, de boas maneiras, que parecia iluminado pelo clarão interior da bondade. Não foi difícil chegarem a
acordo. A pensão ficava por cima do botequim, mas a entrada era pelo Largo de São Paulo, do outro lado da Ribeira Nova. Bebeu um copo em nossa
companhia, e depois Ramiro abriu uma fresta de porta para lhe dar passagem.
Ainda lembro aquela porta. Era larga, pesada e apresentava um óculo pouco acima da altura de um homem. Esse óculo tinha palmo e meio de diâmetro e,
para que ninguém pudesse penetrar por ele, era cortado por uma cruz de ferro batido. Eu estava sentado diante dele. Quando Ramiro apagou dois
lampiões, deixando apenas um, o que ficava para trás de minha cadeira, o óculo clareou. Pude, então, ver a noite transparente, riscada pela cruz. E,
com tristeza, me absorvi na sua contemplação.
O salão estava deserto. Apenas nós, a conversar, a lembrar. O velho Antonio Carrera contava a féria do dia. Abriu a gaveta e pôs-se a catar moedas,
que ia separando e empilhando sobre o balcão de zinco. Lá estavam as rodelinhas de 10 e 20 réis, os tostões, os dois tostões e os cinco tostões de
prata. As pilhas cresciam, cresciam. O proprietário movia os lábios, fazendo contas mentalmente. Pronta a contagem, tomou de um saco de veludo cor
de canário, fechado por cordel, guardou nele o dinheiro, fechou-o novamente, dobrou-o e levou-o consigo, como se fora um embrulho de coisas
insignificantes. Devia morar ali por perto. Depois que ele saiu, a porta ainda ficou aberta algum tempo. Ouvi o falatório de gente que passava. A
metralhadora de um guindaste trabalhando na descarga. Apitos afastados de transatlânticos, uivos remotos de sereias. O porto, mesmo a desoras,
continuava em atividade. Ramiro deitou os bancos e os mochos sobre as mesas, tomou da vassoura e tratou de varrer o estabelecimento. E nós ali...
A sra. Maria, os cotovelos apoiados na mesa, descaíra numa sonolência. O xale desceu sobre as espáduas. O lenço que trazia amarrado à cabeça
escorregou para os ombros. Seus olhos pequeninos estavam úmidos de ternura. As grandes argolas de ouro das orelhas oscilavam com a respiração. E o
cabelo repartido ao meio, depois enrolado na nuca num grande medalhão de terracota, começava a desprender-se.
José Francisco Joaquim, inteiramente embebido nas recordações de sua aldeia, evocava velhas noites de São João, alegres romarias e bailaricos pelos
adros das capelas, dançando o "vira"... Levantava as mãos à altura da cabeça, castanholava com os dedos e cantava entre dentes:
Agora viras tu, agora viro eu.
Viras tu, mais eu...
Rosalina, sentada à minha esquerda, não parecia interessar-se pela conversa. Silenciosa, absorta nos próprios pensamentos, molhava a ponta do
dedo numa poça de vinho e rabiscava sobre a mesa.
- Você está desenhando uma folha de malva? - perguntei-lhe.
Ela riu:
- Bobo. Não vê que é um coração.
Mas, eu já tinha voltado à contemplação da porta. Aquele buraco redondo, com uma cruz de metal, parecia fixar-me; era como se a noite lisboeta
estivesse a espiar-me com o seu olho azul... Para trás daquela porta, estendia-se a cidade, com todas as suas tentações, seus felizes acasos, suas
aventuras. Era o Chiado, que eu tinha entrevisto pelos teatros, nas revistas de ano. Os becos de romance-folhetim, com rixas e queixumes de
guitarra: as trapeiras com flores na janela. Enfim, uma Lisboa romanesca, que, por sinal, não existia mais...
Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de
6/5/1945 com o texto
IX - Lembrança da Ribeira Nova
O sr. Timóteo, da Alfândega, alugou-me um quarto na sua casa de hóspedes. O arrendamento - como lá se diz - ficou estipulado em 2 mil réis
mensais, a crédito... Hoje, compreendo que tal pechincha não estava mofando em Lisboa, à minha espera: devia-a eu um pouco à bondade do guarda
aduaneiro, outro pouco às generosas informações de José Francisco Joaquim.
A família do meu companheiro de viagem, devendo passar apenas algumas horas na capital, acomodara-se lá dentro, não sei onde. Eu, que ali devia
instalar-me por tempo indeterminado, fui conduzido ao meu quarto. Era tarde. Sentia os olhos pesados. Não tentei estudar os acontecimentos. Sabia
apenas que estava em Lisboa, num velho largo que, à meia noite, ainda tinha gente postada pelas esquinas.
Mas, gostei da nova residência. Era um dos três cubículos em que o proprietário dividira por tabiques um quarto de largas dimensões. Estava
guarnecido com uma cama de ferro, muito asseada, lavatório de ferro esmaltado, com bacia, saboneteira e jarro. À cabeceira havia um mocho, e sobre
ele, ao alcance da mão, o castiçal com o toco de vela, a bilha de água e os fósforos de enxofre, para os imprevistos da noite. E, o que representava
um privilégio para mim, a larga janela sobre a Ribeira Nova.
Apenas deitei, adormeci, para só acordar alta madrugada, ouvindo em sonho a frase de Luís: "Tu morrerás de fome". Só então, depois de ter sido feliz
nos primeiros passos, aterrorizei-me com a fúnebre advertência. Fiquei a virar-me na cama, a arquitetar planos, a redigir mentalmente a cara
angustiosa que, dali a pouco, escreveria à família, suplicando dinheiro. Mas, a minha literatura epistolar foi interrompida pelo falatório que
começou a erguer-se na rua. Corri à janela, abri-a, afastei a cortina de paninho floreado e debrucei-me na noite.
O vozeiro vinha do mercado. Na rua 24 de Julho, estacionavam volumosos carros de verduras puxados por bois. Os carreiros eram saloios do Ribatejo,
de calças mui justas nas pernas, colete cor de ferrugem e capuz negro, em forma de coador; a ponta caía sempre para a banda em que os donos se
inclinavam. Estavam munidos de altos varapaus e neles se apoiavam para conversar. Gritavam numa gíria cujo sentido dificilmente eu chegava a
compreender. Em baixo da minha janela, algumas casas de negócio já haviam aberto as portas, estendendo toalhas de claridade pela calçada.
Uma pipa entre duas rodas, puxada por um cavalo, veio da Praça Duque da Terceira e estacionou diante do "frege" do Carreras, que eu identificara por
ficar mesmo defronte do portão do mercado. O cocheiro tirou da garganta um pregão musical, e o Ramiro, logo depois, apareceu à porta, entre dois
grandes baldes, saudando-o:
- Bom dia, ó Ericeira!
A que o outro respondeu:
- Que Deus nos dê a todos, ó Ourense!
Ambos riram, dirigindo-se à traseira da pipa e a torneira foi aberta. Ouvi o líquido jorrar na vasilha.
- Quantos por agora?
- Quarenta litros para o almoço.
Era vinho. O ar ficou cheirando a mosto. Ramiro entrou, arcado entre os dois baldes; o cocheiro estalou os lábios, o cavalo acordou e a pipa lá se
foi, para estacionar mais adiante.
O lado esquerdo da Ribeira Nova era ocupado pelo mercado de peixe. Estava alumiado por doze tocheiros de querosene, fincados entre as pedras do
calçamento. As chamas altas dançavam ao vento do rio. À sua claridade ruiva, vi uma fila de homens e mulheres que transportavam, em grandes cestos
chatos, o pescado trazido por embarcações que, com certeza, estavam atracadas nas vizinhanças. Esses carregadores vinham uns atrás dos outros em
extensa fila. Chegando ao pé dos montes de peixes, viravam a cesta cheia de manchas luminosas e voltavam ao cais.
Os montes iam crescendo. Pareciam constituídos de lingotes de prata. A luz dos tocheiros lhes punha reflexos azulados. Ali perto, nas compridas
mesas de mármore, eu via enormes peixes estendidos e os mercadores com facas largas e curtas, os seccionavam em postas. Nas mesas quadradas, em
linha, da rua até talvez o porto, amontoavam-se as lulas, os camarões, as lagostas, as ostras e as inumeráveis riquezas do mar. Um pequeno comércio
madrugador, com caixas alumiadas por lanternas, enchia os ares de pregões.
Cansado daquele quadro, voltei à cama e adormeci. Quando acordei era tarde, o sol entrava pelas frinchas da janela e punha arabescos de ouro no chão
de tábuas largas, meticulosamente esfregadas. Foi com delícia que escancarei a janela. A primavera próxima anunciava-se pelo azul incomparável do
céu, pela doçura do ar impregnado das essências vegetais da outra banda do Tejo, pela tepidez acariciante da manhã. As andorinhas iam e vinham,
trissando ao sol.
O mercado pareceu-me uma miniatura de cidade. Agora, via-o melhor. Mostrava avenidas de verduras e legumes que iam do verde escuro dos espinafres ao
verde tenrinho das alfaces, do negro das berinjelas ao escarlate dos rabanetes, do alaranjado das cenouras ao cinzento das alcachofras. Avenidas
carnavalescas de flores, núncias de abril, em cestos, em ramos, em "bouquets", ou esfolhando-se sobre os bocais das vasilhas de barro
vidrado. Ruas de montes de ervilhas, cujas vagens túmidas ainda traziam o frescor das hortas de rio acima. E, lá no fim, mais ricas do que eu as
vira à luz das tochas, as praças de peixes. Os pequenos em montes, sobre lonas estendidas, os médios e maiores sobre o mármore das mesas.
Àquela hora, Lisboa afluía para os seus mercados. Homens de cesta, senhoras de bolsa de lona, criadas amparando as compras na dobra do avental,
enchiam o recinto. Falavam ao mesmo tempo, apreçavam, regateavam, travando vivos diálogos com os vendedores. Uma atividade, uma cordialidade, uma
alegria!
A outra banda do rio, constituída de campos, de colinas, de lugarejos caiados, doía na vista. As águas do Tejo, à luz da manhã, estavam luminosas.
Os transatlânticos dormiam como monstros diluvianos. Uns descochavam cordas de fumo negro, outros esguichavam vapor das máquinas, formando nuvens
róseas que eram as únicas do céu. Embarcações miúdas riscavam o espelho das águas, iam e vinham, faziam grandes curvas, como aqueles insetos que
patinam sobre a superfície esverdeada das lagoas. Velas brancas oscilavam ao vento de fora. Bandeiras, flâmulas e semáforos da estrada de ferro, ao
longo do cais, punham notas vivas no quadro.
Ouviam-se, incessantemente, amaciados pela distância, urros dos grandes navios, berros dos rebocadores, gritos estrídulos das sereias, metralhar de
guindastes da descarga, bater dos para-choques dos vagões de mercadorias, atirados pela manobra contra os vagões de lastro, apitos de locomotivas,
esguichos finos de caldeiras, silvos de válvulas abertas. E, mais próximo, a sineta dos elétricos, a campainha dos carrinhos do Eduardo Jorge, as
buzinas dos primeiros "Berliets", quadrados, escuros, desajeitados que nem pareciam automóveis... E os mil pregões dos vendedores ambulantes. Lá
vinha um barítono, de voz de ouro, a cantar maciamente: "Vassouras, espanadores, escovas e castiçais..." Outro, também liricamente, apregoava a
excelência das águas de Queluz. Ainda havia os que ofereciam carvão de Leiria, queijo da Serra, pastéis de Sintra. E azeite. E vinho. E mel. E vasos
de terracota com plantinhas hortenses. E os ardinas que gritavam, álacres, os jornais. E os cauteleiros que anunciavam a "gorda" para aquele dia.
Todos os ruídos e vozes se casavam, misturavam-se e harmonizavam-se musicalmente na sinfonia daquela manhã de março.
Com a alma em festa, fui preparar-me para sair. O pedacinho de sabonete que encontrei no pires do lavabo cheirava a alfazema; lembrei, com saudade,
o cheiro da gaveta da cômoda de minha casa. Enquanto me vestia, ouvi alegre diálogo na sala contígua. Uma menina pajeava uma criança. Ambas cantavam
e, quando era o caso, sapateavam no assoalho. Já vestido, consultei os meus haveres: uma moedinha de prata e duas de cobre. Aquilo não daria para
nada. E a advertência de Luís (que seria feito do pobre diabo, naquele momento?) ressoou lugubremente na minha memória "Tu morrerás e fome..."
Quando entrei na sala iluminada pela larga janela, a menina que pajeava a criança veio ao meu encontro, perguntando-me:
- Vossemecê é que é o menino Felipe?
- Sou eu mesmo.
Ela riu, com gosto. Deduzi daquele riso que a minha figura não correspondia à ideia que, pelo nome e referências, ela havia concebido da minha
pessoa. Devia orçar, como eu, pelos 17 anos. Trajava vestido de sarja verde-malva que lhe batia pelos pezinhos bem calçados. Trazia a cabeça envolta
num lenço de seda com ramagens: as pontas enlaçadas caíam-lhe sobre o colo nascente. O rosto era de um oval perfeito, iluminado por grandes olhos de
água marinha, sombreados de longas e escuras pestanas. Tudo naquela figurinha eram graça e alegria.
- Pois eu sou a menina Alzira. Sobrinha do sr. Timóteo e da sra. Ludovina. Meu pai anda à vida, minha mãe morreu há dois anos. Então, eu vim para a
sua companhia. Este inverno quase morri de febre. Chegaram mesmo a cortar-me os cabelos. Veja o menino Felipe em que estado me puseram...
Atirou o lenço para os ombros, mostrando a cabeça loura, mas lisa, onde começavam a crescer os cabelos. Senti uma emoção estranha. Naquele tempo,
mulher de cabeça rapada dava a impressão que hoje sentiríamos ao ver homem de tranças. Nada se parece mais com um homem de cabelos compridos do que
uma mulher de cabelos curtos... Mas, a minha impressão não durou muito. Achei-a graciosa. O cabelo nascente descia-lhe em pontas pela testa, pelas
têmporas, por trás das orelhas. Erguia-se na nuca, arrebitado como cauda de escorpião. Feita a apresentação da cabeça, para que não houvesse dúvidas
sobre a sua pessoa, ela repôs o lenço.
- Isso não impede que sejas graciosa. Daqui a alguns meses, voltarás a ter bastos cabelos...
- Esta garotinha que aqui está é minha prima, filha do sr. Timóteo e da sra. Ludovina. Chama-se Graziela. Não acha que é um lindo nome? Menina
Graziela, não olhes assim como parva, para o nosso hóspede! Aqui onde vossemecê me está vendo, eu lhe trago um saco de novidades. Não sei se
vai rir, ou chorar. Isso é lá consigo. Quer que desembuche?
- Claro que sim.
Catou qualquer coisa no fundo do bolso e estendeu a mão fechada.
- Adivinhe o que cá está, se for capaz. É um presente para si...
Como eu não procurasse adivinhar, ela retomou o fio da conversa:
- O sr. José Francisco Joaquim, a sra. Maria e a menina Rosalina embarcaram esta manhã para a sua terra, pelo comboio de Coimbra. Não quiseram
acordá-lo, para as despedidas. Já no patamar, o sr. José Francisco Joaquim, que é muito seu amigo, chamou-me de parte, confiou-me isto que aqui está
e pediu-me que lhe entregasse, dizendo que no Brasil conversariam a respeito...
- Mas, afinal, que é isso?
Ela abriu a mão estendida e, na palma, vi brilhar uma rodelinha de ouro.
- Tome lá, uma libra esterlina, para si!
E satisfeita com a minha boa fortuna, pôs-se a bater palmas. Mas, logo assumiu uns ares confidenciais, para dizer-me:
- Sabe? A menina Rosalina sofreu muito com a partida. Quando o pai resolveu apressar a viagem, porque a mulher se lamentava de saudades da Água
Fria, da sua rica Água Fria (que Água Fria é essa, menino Felipe?) a Rosalina se pôs a chorar, a chorar... Vi-a nesta sala, a andar de um lado para
outro, a enxugar no lenço os olhos vermelhos. Depois, se conformou e lá foi com os outros. Não quero dizer, mas isso, cá para mim, cheira a
namoro... Menina Graziela, tu continuas a encarar o nosso hóspede, com olhos parvos!
A sra. Ludovina entrou da sala contígua, enxugando as mãos num guardanapo de cozinha. Cumprimentou-me com afabilidade. Era alta, magra, ossuda, os
cabelos amarrados no alto da cabeça. Mais feia que bonita. Mas irradiava simpatia. Deu-me a impressão de uma pessoa da família encontrada pela
primeira vez. Envergava traje castanho, com fichu preto pelos ombros: quando saía a compras, não tinha mais do que puxá-lo para cima, cobrindo a
cabeça, até quase os olhos. Perguntou se eu estava satisfeito com o quarto que o marido me havia dado à noite; prometeu mudar-me para outro melhor,
assim que um dos rapazes terminasse o curso e se fosse embora, para a terra. Seus inquilinos - explicou-me - eram estudantes de pilotagem: um de
Aveiro, outro de Setúbal, o terceiro de Lourenço Marques... A menina Alzira aproveitou a oportunidade para botar a colher na conversa:
- Esse é o Silva Preto.
- Intrometida... Menino Felipe, não lhe dê trela... Esses estudantes são rapazes pobres, mas às direitas. Vai gostar muito deles. Quero dizer-lhe
que não está numa casa de hóspedes, mas na sua própria casa. Se à noite se sentir mal, não se acanhe, vá bater à nossa porta. Ninguém está livre de
indisposição. Um escalda-pés, um chá de hortelã, um copo de vinho fervido com cravos da Índia, muitas vezes são necessários.
Agradeci-lhes a bondade e dirigi-me à porta para sair. Elas me acompanharam, falando, explicando o ritual a que eu teria de submeter-se no caso de
voltar à casa fora de horas. No patamar, a sra. Ludovina perguntou-me:
- Já sabe o seu endereço?
- Vou saber agora...
- Pois tome nota, para não esquecer-se: casa do Sr. Timóteo Aires, Largo de São Paulo n. 7, segundo andar, direita...
- E se eu entrar ali, à esquerda?
- Essa é a porta dos fundos do Hotel Amazonas. Ali tudo é de luxo, mas o menino já não se sentirá, como aqui, em sua própria casa... Ah! Quero
fazer-lhe uma recomendação: em Lisboa, há três coisas que um rapazinho da sua idade não deve conhecer; o frontão do Município, a estátua do Eça de
Queiroz e a Travessa do Cotovelo...
Riram muito; a porta fechou-se sobre as suas risadas. Desci pela escada de madeira, larga e escura, com lances de vinte degraus e patamares
cheirando a mofo. Em cada patamar, escancarava-se uma janela sobre o largo, a fim de receber luz e ar. Sentindo-me só, tomei a libra esterlina,
sopesei-a, mordi-lhe o rebordo, fi-la cantar no chão. Autêntica. Existia mesmo, não era sonho. Bendito José Francisco Joaquim! Onde quer que
estejas, recebe este meu pensamento, delicado como uma flor, pelo grande bem que me fizeste!
No último lance, já à vista da rua, a escada dividia-se ao meio por um tabique de tábuas, de modo que meia porta servia ao prédio e meia porta à
loja do Tretas, com quem eu deveria travar relações comerciais, para maior brilho desta história. Naquele tempo, cada prédio do Largo de São Paulo,
como de alguns outros largos, mantinha a sua loja no desvão da escada. Olhando-as, não se via tabuleta nem escaparate. Mas, diante das mesmas,
caminhando de um lado para outro, a gesticularem e a trocarem piadas entre si, os seus proprietários mediam a calçada.
- Ó viróscas!
- Não me toscas...
Não passava por ali cara nova sem que eles intimassem a entrar, a ver o sortimento, ainda mesmo que não fosse para fazer compras... Mas, a verdade é
que, entrando numa daquelas bibocas, ninguém de lá saía sem trazer o seu alcaide. Quando transpus a porta e pisei a calçada, o lojista mais próximo
segurou-me pelo braço. Era o Tretas. Estou a vê-lo, ainda. Baixo, espesso, arquejante. A cabeça lhe assentava sobre o tronco. Parecia estar sempre
encolerizado. O sangue afluía ao rosto, a respiração se fazia curta e difícil, os olhos se lhe esbugalhavam de aflição.
- Tu é que és o brasileiro? - Está claro que és. Já me contaram que teu pai é dono de uma mina no Grão Pará. Não podes, pois, andar assim com a
cabeça à vela, que isso cá na terra é muito reparado. Só andam assim os que fogem do Limoeiro ou de Rilhafoles...
E, arquejando, empurrou-me para o desvão da escada, onde à primeira vista, só havia roupas feitas. Com agilidade imprevista, trepou no balcão e,
remexendo na última prateleira, desencavou uma caixa de cartão. Ajudei-o a descer. Estava escarlate, apoplético. Mas, assim mesmo, abriu a caixa e
dela tirou um chapéu estranho, que naturalmente já fora enjeitado por muitas gerações de fregueses. Em 1830, estivera na moda. Em 1850, fora
considerado alcaide. Em 1870, devolvido à fábrica. Em 1890, entrava no acervo de uma falência. Em 1906, o Tretas adquirira-o a troco de conversa na
Feira da Ladra. Em 1907, devia ter a honra de contribuir para a minha elegância. Lembro-me de que naquela sua última encarnação, era um chapéu de
copa muito alta e abas muito estreitas. O lojista, com a almanjarra suspensa na ponta dos dedos, admirava-a e sorria. Depois, depondo-a no balcão,
bateu carinhosamente com o rebordo da destra sobre o alto da copa, amolgando-a com um sulco sedutor.
- Como este na se encontram dois em Lisboa. Tu lançarás a moda. Uma vez, o Príncipe de Gales, por não ter onde por o último lenço que lhe deram,
meteu-o no bolsinho do casaco: dali por diante, o mundo inteiro passou a usar lenços de cor no bolsinho de cima. Assim... As grandes modas nascem
por acaso. Para qualquer outro freguês, eu o venderia por 2 mil réis, mas para ti, que és republicano, filho de pai republicano, deixo-te pela
miséria de 13 tostões!
Colocou o chapéu na minha cabeça, ajeitou-o, mostrou-se satisfeito:
- Até parece o Arreda, quando ele tinha a tua idade.
Acabou deixando-o por 9 tostões, mas surgiu ligeira dificuldade no ato do pagamento.
- Isto é uma libra esterlina!
- Eu só uso dinheiro em ouro.
- Nesse caso, pagarás amanhã, depois, quando dispuseres de moeda corrente.
E, sem mais dizer, começou a enrolar uma peça de casimira. Enrolava e fungava. Olhei cautamente, num espelho quadrado, que pendia da parede. De
casacão comprido, apertado na cintura, calças de listas e chapéu de tal feitio, senti-me pelotiqueiro, um daqueles pelotiqueiros que, a espiolhar
pelos "sebos", a gente encontra nas gravuras dos "Moicanos de Paris"...
Ao sair da loja, uma preta gorda e alta procurou impingir-me bilhetes de loteria. Pareceu-me um pugilista de saias. Mas, a pobre falava doce, como
as nossas pretas velhas de outros tempos. Não tendo conseguido o que pretendia, lá se foi a rebolar os quadris excessivos. O Tretas, sempre
enrolando a peça de casimira, pôs-se a falar:
- Gosto dessa mulher porque ela enganou o gabinete Conservador. É filha de um soba assaz poderoso, dos confins da África. Há anos, o rei negro
passou-se para o nosso lado, com armas e bagagens. Então, com o intuito de deslumbrá-lo, as autoridades trouxeram-lhe a filha em visita à Metrópole.
Um dia, ela, a... (e pronunciou um nome africano que já não lembro, mas que era rebarbativo como Conegundes) chegou a Lisboa. Foi recebida na alta.
Encheram-na de agasalhos e blandícias. Batizaram-na, crismaram-na, levaram-na às missas. Ela gostou. Por isso, quando quiseram devolvê-la ao pai, a
Conegundes bateu os pés, chorou, não houve forças que a conduzissem a bordo. Aqui ficou e, entregue a si mesma, passou a frequentar as rodas
boêmias. Dançou num bailado excêntrico, no Coliseu dos Recreios, Fez o papel de Conegundes, isto é, de si mesma, numa revista do Trindade. Esquecida
dos políticos e sem recursos, passou a viver por aí, pelos mercados, pelo cais, pelos cafés do "leps". Agora, é cauteleira, prefere vender
bilhetes na Ribeira Nova a ser princesa de aringa da Citanda.
À proporção que contava a história da negra assanhada, ia se exaltando. Ao terminar, estava escarlate, a respiração estertorante. E exigia o meu
voto contra o gabinete Conservador.
- Que quer isso dizer? Não tenhas medo de dar a tua opinião, que estás falando a um republicano dos quatro costados. Vamos, dize lá... - e, com as
mãos trêmulas, procurava agarrar-me pela gravata.
E eu, com esta indiferença glacial que tão bem me fica:
- Ora, Tretas, não te amofines...Isso prova que a Conegundes é negra inteligente e que a Ribeira Nova é como o Paris de Henrique IV: vale uma missa.
Dito isso, saí depressa, para não o ver estourar.
A despeito do meu nenhum conhecimento da cidade, consegui achar a Travessa de S. Paulo, apinhada de marujos e varinas, e entrei na Rua 24 de Julho.
Dirigi-me à casa de comida, onde jantara na véspera, e obtive do Ramiro que me "cambiasse" a libra esterlina. Ele o fez com lisura: deu-me por ela 4
mil réis fortes, que hoje, valeriam bem 200 cruzeiros. Além disso, ensinou-me o caminho de uma repartição que, nos últimos dias, enchia os meus
pensamentos. Depois de diversas voltas, subi a Rua do Arsenal e, nas proximidades do Terreiro do Paço, por baixo das arcarias de pedra, descobri o
Correio. Afinal...
Escrevi à família. Minhas palavras eram tão vivas, meus argumentos tão convincentes, minha angústia tão real que, ao reler aquelas linhas, para
inteirar-me do que havia escrito, fiquei com os olhos úmidos. Sentia pena de mim mesmo... |