Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de
12/6/1936 com o texto
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Uma cadeirinha desceu a Rua São Gonçalo e virou a Rua Direita, escoltada por dois cavaleiros; os
pretos iam roncando uma toada embaladora. Parecia muito tarde. Os sobradões vizinhos da Sé e a igreja de São Pedro estavam adormecidos; nem pelas
frestas se lobrigava sinal de vida lá dentro. Então, os dois rapazes seguiram a rua que vai para Santa Tereza e, a meio caminho, tomaram para a
direita: era o beco das Minas.
Talvez não medisse cem metros de comprimento; era estreito, escuro e se compunha de casebres onde o
paulistano retardatário sempre encontrava virado com torresmo, bolinhos de camarão do rio, cachaça, quentão, caramuru e gengibirra. Havia também o
Vira Copos, cujo vinho gozava fama entre os estroinas e as moças que viviam de ser erradas. Mais adiante estava a casa das Cigarras, mas essa era de
propriedade de duas velhas e para lá entrar era preciso pelo menos envergar uma opa. Claro que preferiram o Vira. A larga porta de uma só folha
abriu-se e os dois entraram.
Como sempre, o corredor terminando na sala de chão batido; algumas mesas com os respectivos mochos,
meia porta para a cozinha onde se via o poial aceso e duas pretas que iam e vinham. Ao lado, um estrado de madeira sobre o qual se alinhavam três
barris com as torneiras pingando em canecas. Havia pouca gente. Conversava-se mais do que se gastava. O Vira parecia habituado àquilo e, sem dar
trela aos fregueses, andava de um lado para outro.
Assim que entraram, foram saudados por dois estudantes que estavam sentados à mesa do fundo. Um era
o famoso Boi, que deixou nome na crônica; outro era Augusto Candido da Silveira Pinto, professor de Francês no Curso Anexo, de quem Rendon dizia:
"Não é mau homem, mas propende para a relaxação..." Nas horas vagas, dirigia a sua estalagem no Beco dos Mosquitos.
Ourique fez as apresentações. Silveira Pinto prosseguiu na anedota que estava contando:
- O Brousson quis dar à sua alfaiataria, na Rua da Freira, o nome de Agulha de Ouro. Chamou um
mestre pintor, disse-lhe o nome e não apareceu dois dias na casa. Quando voltou, leu estarrecido sobre a porta: "Alfaiataria da Águia de Ouro". Mas
o título pegou... Hoje é a "Alfaiataria da Águia de Ouro"...
O Vira trouxe quatro canecas de vinho verde e a conversa prosseguiu animada.
Outros estudantes foram chegando e dentro de pouco a prosa se havia generalizado; discutiu-se
matéria de estudos e literatura; fez-se crítica dos lentes e lá pelas onze o botequineiro preveniu que já era tarde e precisava fechar a casa. Mais
uma rodada de canecas de vinho e os quatro rapazes, já íntimos, na maré das confidências, deixaram a taverna e foram para o pátio da Sé.
A tasca do Chico Ilhéu já estava fechada. Tudo escuro e silente. Apenas um homem que se havia
deitado nos degraus da escadaria altercava com a sombra. Era o Zé Prequeté. O Pinto e o Boi despediram-se e sumiram na noite.
Como não sentissem sono e aquele passeio a horas mortas estivesse agradável, Ourique e Frank
dirigiram-se para o pátio da Misericórdia; de lá seguiram pelo Beco da Caixa d'Água e Rua do Ouvidor, à toa, em direção das bandas do Capim. Antes,
porém, de lá chegar, ouviram no silêncio uma música muito distante, seguida de vozes. Onde seria? Pararam, orientaram-se. Era no alto da Rua da Cruz
Preta, quase ao chegar ao largo de São Gonçalo. Voltaram e subiram rua acima. Ao passarem pela esquina da Rua do Jogo da Bola, onde morava o
conselheiro Silveira da Motta, Ourique explicou a Frank:
- Aqui existia ainda há pouco uma grande cruz, mas os rapazes, uma noite, carregaram-na, atirando-a
lá no Piques...
- E não sabem quem fez isso?
- Mais ou menos; parece que se trata da súcia do nosso amigo Boi. É um estudante levado da breca.
Foi ele quem introduziu o uso do cacete, por aí. Há dias, meteu-se numa enrascada e como se recusasse a atender ao convite do juiz de paz, que é o
nosso colega Pires da Motta, para comparecer à sua presença, foi amarrado na vara e carregado como se fora um porco; mas a verdade é que ninguém
pode com ele. A estas horas, já deve andar por aí, a raptar leitões e cabritos que encontra pelas ruas de fora...
Julio Frank sorriu misteriosamente, lembrando-se talvez do Andorinha. Depois, entristeceu. Aquele
Andorinha tinha-o roubado e traído; foi uma topada na sua vida, uma topada que o fez mudar de caminho.
Aproximavam-se de um sobrado, já nas proximidades da esquina, onde a claridade de muitas velas se
filtrava pelas cortinas de crivo, tão finas e alvas que pareciam a bruma da manhã. Das sacadas pendiam colchas de damasco. Lá dentro, ouvia-se o
sussurro de vozes de moças. Súbito, o terceto de rabeca, flauta e violão iniciou uma polca e tudo cessou por encanto, para só se ouvir o rodopiar
dos sapatinhos nas tábuas do salão.
Ourique logo encontrou conhecidos; manifestando o desejo de penetrar no baile, os rapazes que lá
estavam começaram logo a trabalhar para introduzi-los sem convite, ignorados do dono da casa. Levaram os chapéus o mais ocultamente que puderam e,
lá em cima, foram ao quarto e os deixaram sobre um leito, entre dezenas de outros. Depois, voltaram à rua e, tendo distribuído os recém-chegados por
diversos grupos que tomavam a fresca, foram entrando na casa, como se lá tivessem chegado com todas as honras de um convite especial.
Tais trabalhos se prestavam de boamente uns aos outros, porque a sabedoria é velha e conhecida:
hoje por mim, amanhã por ti. E todos aqueles rapazes tinham um pequenino delicioso caso de namoro lá consigo; sabiam que de um dia para outro teriam
necessidade de penetrar numa casa cujo dono desconheciam completamente.
O vasto salão estava rodeado de cadeiras de estado e de bancos, e aí, numa parada inesquecível, se
viam as moças mais bonitas de uma terra que deslumbrava os viajantes com a beleza de suas filhas.
Vestiam sem luxo, quase com severidade. Eram saias-balão de sarja verde, azul, ouro, granada ou
violeta; punhos e golas de renda; penteados polca, cabelos soltos ou então enrolados ao alto, deixando escapar cachos cor de asa de andorinha, por
trás das orelhas finas e brancas.
De quando em quando, uma avozinha, de vestido negro e cabelos que pareciam empoados, dava ao
conjunto um ar de quadro muito antigo, como só se via nas caixinhas de música. Os homens ficavam nos corredores, a conversar e a rir, e só entravam
no salão quando a música irrompia, para tirar o seu par.
Frank, apesar da vida que tinha levado, era de maneiras distintas e não destoou dos demais jovens.
Os que dele se acercaram dentro de pouco sentiam-se encantados com o seu trato, o seu espírito fulgurante, a facilidade com que falava dos mais
diversos assuntos.
Não dançou. Ou melhor, quando se formou a fila de uma quadrilha que serpeou através de alcovas e
corredores, em que damas e cavalheiros trocavam de pares, ele percebeu-se notado por certa lourinha que, talvez num procurado acaso, o arrastou no
giro vertiginoso e furtivamente, com sua vozinha que de tímida mais parecia um segredo, perguntou-lhe:
- Por que não dança?
E, durante muito tempo, ficou com aquela frase a cantar-lhe no ouvido: Por que não dança? Mas lá
dentro, na sala de jantar, havia o grupo dos que bebiam, e ele dentro de pouco lá estava, esvaziando copázios de Porto. Ali ficou. Insinuou-se de
tal maneira nas boas graças do dono da casa, que este quis saber quem era e onde morava, para que, sempre que houvesse um daqueles saraus, muito
frequentes, porque a família era numerosa e quase todos os meses alguém fazia anos, mandasse convidá-lo muito particularmente.
E a festa só terminou ao alvorecer. Os outros rapazes foram buscar o alemão, que não manifestou
muita pressa em sair. Na escada, perguntou a Ourique:
- Quem é aquela loura?
- É d. Felipina. É alemã, filha de uma senhora viúva e mora no Beco da Lapa, entre as ruas São
Bento e São José...
Frank pareceu não ligar maior importância ao relatório com que o amigo respondeu à sua ociosa
pergutna.
Na rua, não se via um palmo adiante do nariz. Uma garoa espessa e gélida amortalhava a cidade. Os
galos amiudaram alegremente pelos quintais. O horizonte amarelava. E, quando desciam a Rua de São Gonçalo, começou a alegria dos sinos, uma matinada
gloriosa de badaladas: São Francisco, São Bento, Misericórdia, todos os sinos da religiosa cidade de S. Paulo, baralhadamente, em diversos tons,
cantavam a aleluia da madrugada.
- Que dia será hoje?
- Ontem era sábado: se a folhinha não está errada, hoje deve ser domingo.
E Frank, um tanto cético, ajeitando o chapéu alto que descia para a nuca:
- Pode bem ser.
Com os ventos da manhã, a garoa virou neblina, que foi atirada para as várzeas. Quando entraram na
Rua de São José, um sol ainda medroso alumiava as cumeeiras. Magotes de fiéis passavam para as missas. à frente, vinha a mucama com o caçula ao
colo; em seguida, por ordem crescente de idade, os filhos da casa; depois, vinha a sinhá moça, de saia redonda e botinas de camurça, penteado alto,
coifa e mantilha de serafina. Atrás dela, a sinhá, com vestidos adamascados e, atrás de todos, o chefe da família, de robição, calça de ganga, meias
de seda e sapatos de fivela; usava chapéu de Braga, de copa baixa e abas larguíssimas. Andando, batia com a ponteira do bastão nas pedras da rua.
XVII - Professor de História
As aulas de Julio Frank prosseguiam na "república" da Rua São José. Quando, no ano seguinte, chegou
a época dos exames, ele, mais como colega do que professor, acompanhou os alunos até a porta do Curso Anexo e ali passou ansiosos momentos à espera
do resultado. Mas, como sempre acontece, aquela sincera dedicação não podia ser infrutífera: seus alunos brilharam em todas as cadeiras.
Foi então que o tenente-general Rendon, diretor dos Cursos Jurídicos, ouvindo falar tanto em Julio
Frank, quis conhecer esse alemão que havia empolgado a mocidade estudantina. Manifestado o desejo numa roda de escolares, viu-o logo satisfeito.
Certa manhã, o bom velho foi procurado pelo segundo-anista Pimenta Bueno, que lhe apresentou o homem de quem os estudantes tanto falavam.
Como as aulas estivessem para começar, o diretor convidou-o a entrar um pouco e, na sua sala
conversa vai, conversa vem, ficaram juntos até a tarde. No domingo seguinte, Frank foi à sua chácara. Desde aquele momento, firmou-se entre ambos
uma viva simpatia.
Com essa e outras relações de amizade, que pouco a pouco obteve naquele meio tão fechado, teria
conseguido assegurar um futuro se fosse esse o desejo do jovem ao embarcar um dia para o Brasil. Mas, como tantos fatos o demonstraram, não era um
ambicioso de haveres nem de glórias; era um homem que ninguém compreendia, nem mesmo ele próprio. Como havia confessado anos antes - fazia o seu
sossego do próprio desassossego.
Dentro desse modo de entender e de agir, no dia em que se viu estimado, requestado, com todas as
portas abertas diante da sua cultura e do seu trabalho, sentiu a nostalgia da queda e uma grande inquietação começou a perturbá-lo.
Um dos motivos aparentes dessa inquietação, que ele procurava acalmar o melhor que podia com o
famoso vinho do Chico Ilhéu, no pátio da Sé, era uma coisa bem simples: o banho. Contado aos seus camaradas, nenhum acreditaria. A verdade é que, de
um dia para outro, deu-lhe uma imperiosa vontade de tomar banho, mas banho que durasse horas e horas a fio, banho que estivesse à sua disposição
tanto de dia como de noite. E isso a "república" não lhe podia dar.
Naquele tempo, as mulheres e os velhos tomavam banho em casa utilizando-se de alguidares de barro
vidrado. Os moços, de todas as classes, resolviam o problema do asseio em umas visitas que faziam ao Tamanduateí, para lá das várzeas. Ele, porém,
não queria submeter-se ao regime dos banhos difíceis, tanto mais que as aulas, sucedendo-se umas às outras, não lhe davam tempo bastante para tais
passeios.
Foi num desses dias que, arremangando a camisa, tomou de um martelo e desceu para o quintal.
Auxiliado pelos pajens dos outros inquilinos da "república", fincou duas estacas de um lado do ribeiro e duas de dentro e, mesmo à altura da
corrente, levantou três paredes de tábuas, deixando a última para servir de porta, que vedou com espessas cortinas. Estava feito, desse modo, um
rudimentar mas útil quarto de banho.
Então, passou a fazer diversas abluções por dia. Quando levantava de manhã ou quando alta madrugada
entrava em casa, embrulhava-se no chambre e lá ia para o Anhangabaú. Não raro, em plena aula, interrompia a exposição que estava fazendo, pedia
licença aos alunos e descia para o quintal: dali a pouco, regressava com os cabelos empastados e a pele avermelhada pelo mergulho. E retomava o fio
da explicação.
Uma tarde de 1833, um dos rapazes entrou na sala, todo afogueado, e disse-lhe:
- Frank, estivemos falando a seu respesito. No Curso nexo há um lugar de professor de História e
ninguém melhor do que você para preenchê-lo. Que diz a isso?
Ele agradeceu a lembrança, sem entusiasmo.
Estava atravessando no momento um daqueles períodos mornos em que o vício, cada vez mais exigente,
parecia embotá-lo; sua grande inteligência aparecia velada por densos fumos e, nas aulas para que a palavra retomasse o brilho e a persuasão que
eram o mistério da sua pedagogia, tinha de retirar-se para o quarto alguns momentos e quando de lá voltava parecia mais animado. Por esse tempo, já
se lhe havia manifestado leve tremor nas pontas dos dedos que, todas as manhãs, o impedia de escrever. Os íntimos previam para breve o agravamento
do mal e por isso trataram para que aceitasse concorrer à cadeira que fácil lhe seria conquistar.
A ideia foi logo comunicada aos demais amigos e a roda de Frank iniciou um persistente trabalho de
persuasão, de sugestão. Ele deveria comparecer ao concurso, dentro de pouco, e para isso - os amigos procuravam palavras escolhidas - Frank
precisava abster-se das suas noites em claro, até mesmo do conhaque e do rum da Jamaica de que tanto gostava.
Abriu-se a inscrição para o concurso.
Os rapazes foram buscá-lo na "república" e só faltou colocarem-lhe a pena entre os dedos para que
se inscrevesse. Frank, no seu crescente período de abulia, inscreveu-se.
Trouxeram-lhe a lista dos pontos; tomou o papel com as mãos trêmulas e, depois de lançar uma vista
apagada no escrito, depôs a folha sobre a mesa, deixando os braços caírem ao longo do corpo. Era preciso acabar aquilo - pensaram os companheiros -,
e com esse intuito organizaram em redor do professor um verdadeiro corpo de guarda que se revezava dia e noite. Acompanhavam-no ao almoço, ao
jantar, ao passeio e às visitas á noite. Preveniam aos amigos de que ele estava de dieta. Todos atendiam ao pedido, até mesmo o Chico Ilhéu, que se
desobrigou com voz triste, dizendo que o vinho tinha acabado e que em Santos já estavam desembarcando outras pipas. Era questão de dias.
Durante a noite, um dos amigos deitava-se na esteira, próximo à cama do professor, e ali ficava
atento, para que o sábio não se envenenasse, ao menos por uns quantos dias, até comparecer ao concurso.
A decadência prosseguia, desanimadora. Passou a ter longos períodos de imobilidade. Durante as
lições, que não havia interrompido, estacava ao meio de uma frase e ficava imóvel a olhar os alunos como quem perdeu de todo a faculdade de pensar e
não sabe que ali está, nem para quê. Os olhos se apagaram nas órbitas. O afogueamento do rosto transformou-se em lividez. O cabelo caía para a testa
em mechas louras e as mãos se faziam mais compridas, na extremidade de braços que pareciam bater pelos joelhos. Frank extinguia-se.
Por esse tempo, já os amigos mais íntimos se haviam arrependido de o haver inscrito para o
concurso, pressentindo a possibilidade de uma derrota, justamente na matéria que lhe era mais familiar; se o exame não correspondesse ao que dele se
esperava, estaria aniquilada a fama que havia conquistado com tanto trabalho e, talvez, até os próprios alunos que no seu saber tinham confiança
plena começassem a abandonar-lhe as disputadas aulas...
Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de
19/6/1936 com o texto
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A tais pensamentos se opunham outros não mesmo razoáveis; se era verdade que ele se ia progressivamente embotando, mais um motivo para
assegurar-lhe emprego em que o trabalho se tornasse mais leve e mais bem remunerado, pondo-o a salvo da miséria que, com a doença, certamente o
alcançaria. Assim, já sem as reservas dos primeiros dias, os estudantes se empenharam na sua dieta. Era preciso levá-lo, tal como estivesse, mas
levá-lo consciente até à banca examinadora.
A véspera do exame chegou. Frank ainda não tinha tomado conhecimento do programa. O papel ainda lá estava como haviam deixado, no canto da mesa,
com um livro por cima. Apesar da abstinência forçada, o embotamento ia crescendo, crescendo...
Seu estado roçava pela inconsciência. Não reagia a coisa nenhuma, nem mesmo demonstrava desejo de reagir. Quando o contrariavam, sorria, um
sorriso triste, ausente, de noctâmbulo... Ao menos se recalcitrasse, se arguisse os seus amigos transformados de um momento para outro em guardas,
pois não o deixavam ficar sozinho um momento que fosse, talvez dessa reação ressuscitasse o belo espírito que ia mergulhando na noite da
inconsciência. Mas nada. Absolutamente nada.
Chegou a noite. A "república" encheu-se de pessoas que iam cumprimentá-lo, dizer-lhe palavras de conforto e animação. Mas encontraram-no sentado
à cabeceira da mesa, com os cotovelos fincados na tábua e as mãos distraídas a arrepiar os cabelos despenteados. O lábio inferior parecia descido,
como descolado. Os olhos mal se abriam naquela sonolência. Quando andava, era com o busto arriado e as pontas dos pés para fora.
Diante desta figura tão diferente daquela outra, viva e galharda, que os estudantes conheciam, espalhou-se doloroso desânimo. Os rapazes que o
haviam inscritos já eram apontados como autores do crime de atirá-lo às incertezas de um desastre. E, noite adiante, os que lá ficaram na missão de
vigiá-lo, já tinham perdido a alegria e se acostavam pelos ângulos, como se se tratasse de um velório.
Frank não dormiu; não dormia nunca. Cerca de meia noite, vendo-o ali, na mesma posição, com um movimento de maxilares como se estivesse
perenemente a mastigar borracha, forçaram-no a deitar, no que foram atendidos com uma submissão de criança doente. Mas, deitado, com um braço por
baixo da cabeça, ficou a olhar para cima, sem ver, ausente de si mesmo. E nessa posição permaneceu durante muitas horas, sem ouvir o cuco da sala de
jantar. Não dormiu nem falou. Parecia haver perdido a palavra. Diante desse homem cuja inteligência se apagara, os que lhe estavam próximos
compreenderam o erro de apresentá-lo em tal concurso. Mas já era tarde, visto que o exame deveria realizar-se dali a pouco.
Quando o sino de São Bento tocou a matinas, ele teve um sobressalto. Desenhou-se na sua fisionomia, até ali parada, a luta que lhe ia no
interior. Viram-no invocar os últimos lampejos da vontade e sentar-se à beira da cama. Hesitou muito tempo em levantar-se, como se temesse arrastar
as pernas feitas de chumbo. Mas, com um novo arranco, levou mais longe o sacrifício: ergueu-se, despiu-se, tomou o roupão sobre a credencia e desceu
pesadamente a escada do quintal.
Um dos rapazes correu à janela e viu-o entrar na cabina de banho. Assaltou-o logo o receio... E se ele morresse lá dentro? Comunicou logo o temor
aos companheiros e ia descer quando a sarapilheira que servia de cortina se abriu e o professor voltou a escorrer água. Já no quarto, ainda sem
ânimo para falar, calçou-se, vestiu-se, tomou do pente e postou-se diante do espelhinho quadrado do consolo, que servia de toucador. Parecia ter
esgotado em si todo o ânimo de que se aprovisionara ao levantar.
Nesse momento ouviu-se lá em baixo, na rua clara e fresca, o vozerio alegre dos que vinham buscá-lo para o exame. Foi preciso que alguém o
apressasse:
- Penteie-se logo, Frank, que já estamos na hora.
Só então pareceu despertar da modorra, alisou os cabelos e deu-se por pronto para sair. A cozinheira, que havia sido avisada, trouxe-lhe uma
caneca fumegante de café com beijus de tapioca. Ele, porém, recusou, mal dissimulando a repugnância que aquilo lhe causava. Instado para que
quebrasse o jejum, esforçou-se por beber, mas o líquido parava na garganta: não conseguia engolir.
Os de fora batiam à porta. Então, um dos rapazes foi à sala, levantou a custo a pesada vidraça de caixilhos e, debruçando sobre a rua, avisou que
já estavam para sair. Quando voltou ao quarto, viu Frank, já de chapéu, que lhe perguntou:
- Quem são eles?
- O Ourique, o Alvim, o Ildefonso, o Ribas e quase todos os nossos.
Caminharam devagar pelo corredor escuro. Ao saírem da porta, houve muitos cumprimentos. Frank lutava desesperadamente. Na hora em que necessitava
de todo o seu saber, fugia-lhe o entendimento, deixando-o como vazio e morno. Sentia-se de madeira. No meio daquela bizarra gente, caminhava a
dormir.
Vendo-o assim, os amigos perguntavam lá consigo: - Que fará ele? E, depois desse malfadado concurso, em que situação se encontraria ante os que o
admiravam, os que o haviam transformado numa espécie de bandeira?
Passaram o Acú. Dali por diante, a Rua de São José, até o Beco da Lapa, contornando as barrocas do Anhangabaú só apresentava casinhas baixas,
muros de taipa, fundos de quintais da Rua de São Bento. À sua passagem, cachorros arremetiam por detrás das cercas de pau-a-pique. Um leitão
assustado grunhiu e barafustou pelas guanxumas do terreno aberto. Assim atravessaram a Rua Direita de Santo Antonio, que descia as barrocas.
Chegaram à Rua do Ouvidor e tomaram por ela acima, em caminho da Faculdade.
Frank continuava largado, alheio, inútil.
Foi já ao entrarem no Largo do Ouvidor que se passou aquela cena de todo inesperada, que deveria ficar histórica. Na esquina da rua com o largo
havia uma venda frequentada por tropeiros e caipiras que subiam ou desciam para o Piques. Na argola da porta estava amarrado um cavalo. Dentro, o
dono da tasca, ainda estremunhado, enchia um martelo de vinho para o único freguês, que era um tropeiro e estava a conversar, debruçado sobre o
balcão.
Frank, num relance, viu tudo aquilo. E com energia e vivacidade de que ninguém o julgaria capaz, saiu da roda, entrou na venda, bebeu o copo de
vinho até a última gota e saiu estalando a língua, como se o que havia feito nenhuma importância tivesse.
O vendeiro assustou-se, o tropeiro levou a mão à cinta, julgando-se provocado, e os companheiros do jovem não sabiam se rir ou lamentar o
ocorrido. Ourique compreendeu logo que dali podia sair uma rixa, entrou na venda, pediu desculpas ao tropeiro, dizendo que se tratava de um maluco,
e pagou os vinténs ao dono da venda. Assim, tudo voltou às boas.
Então o grupo tomou para o lado do Capim, onde à frente da igreja o cruzeiro abria os braços escuros. Atravessaram de viés o Largo de São
Francisco e chegaram ao prédio do Curso Anexo, do lado esquerdo da Academia, quase na esquina da bitesga que ia ter à Sé.
Àquela hora, os professores iam chegando; alguns deles apeavam do cavalo e davam a rédea ao bedel Mendonça que - segundo a pragmática - também
usava casaca e chapéu alto. Em frente à escola, o mestre ferrador malhava descompassadamente na bigorna.
O dr. DCarlos Carneiro de Campos, então diretor, que também chegava no momento, recebeu Julio Frank à porta. Quando todos julgavam que o
aniquilamento do concorrente surpreendesse o novo diretor da Academia, deu-se o que ninguém esperava: Frank ressuscitou. Seus olhos tornaram-se
penetrantes, os gestos vivos, a palavra fácil, a inteligência aguda, com fagulhas de genialidade...
Fez o exame. Foi aprovado e abraçado. O decreto de sua nomeação tem a data de 7 de julho de 1834. Foi uma grande alegria para os amigos. À saída
teve a indefectível manifestação joco-séria de calouros e preparatorianos, que o aclamara:
- Viva Julio Frank!
- Viva o Curral dos Bichos!
- Viva o capoeira alemão!
E a festa - segundo reza o memorial do Vira Copos - durou sete dias e sete noites, como nas histórias de fadas.
XVIII - Os sinos
Professor do Curso Anexo, o inquieto Julio Frank deu aos amigos uma esperança de regeneração. Sua vida aplainou, descoloriu, entrou no cotidiano
ramerrão da cidade que cheirava a sacristia, num tempo em que a crônica das gazetas era vantajosamente desempenhada pelo comadrio mexeriqueiro.
Integrou-se de todo naquela provinciana existência; acabou pedindo naturalização.
Quando não fazia visitas aos amigos das outras "repúblicas", nem estendia o passeio ao Chico Ilhéu, passava as horas sem sono a escrever lições
de História que, no dia seguinte, durante as aulas, repetia aos alunos. Assim, dentro de pouco, quase sem dar por isso, já havia acumulado matéria
para um compêndio. Então, lembrando-se talvez do tempo de Goettingue, teve a ideia de publicá-lo.
Com esse intuito, dirigiu-se em 1837 ao governo, explicando na petição que o fazia para remediar a carência de livros sobre a matéria, com que
lutavam os estudantes. O primeiro volume do compêndio foi enfim publicado e trazia na capa os seguintes dizeres: "Resumo de História Universal -
Para uso da Aula de História e Geografia da Academia de Ciências Jurídicas e Sociais desta Cidade de S. Paulo - Vol. I - Contendo a História Antiga
e da Idade Média - Impresso na Tipografia de M. F. Costa Silveira - Rua S. Gonçalo n. 14 - S. Paulo - 1839".
As lições contidas nesse volume eram adaptadas do historiador alemão H. L. Poelitz, por isso nele não figura o nome de Julio Frank, que era de
inacreditável modéstia. O volume seguinte, de matéria original, foi publicado logo depois, sendo vendido aos estudantes a 2$900, o suficiente para o
governo ressarcir as despesas da publicação.
Há quem diga que aquela vida pautada de Julio Frank, depois da entrada para o Curso Anexo, continuava a ter de quando em quando umas descaídas lá
para as bandas do Chico Ilhéu. Os documentos não confirmam tal presunção. Mas quando fossem verdade, tais escápulas se dariam numa roda de alegres
professores, que os havia na época, e divertidos estudantes, que os há em todos os tempos. Não deixavam vestígios, a não ser nos seus pobres nervos
cansados.
Os escolares, a Faculdade, os 11.000 paulistanos, contando mesmo a rançosa parte dos futricas, que tinha invencível pavor das "repúblicas",
estavam ao par da sua inteligência e da bondade desse homem que - mais do que qualquer outro - era uma multidão. A mocidade admirava-o e, como
sempre acontece, até mesmo nos seus defeitos.
Se Frank mudara, a vida na estudiosa "república" da Rua de São José nem por isso sofrera sensíveis alterações. Todos os anos, um daqueles moços
terminava o curso e os colegas, incorporados, iam levá-lo até a estrada real. Aos do interior acompanhavam até o obelisco do Piques; aos de
serra-abaixo, até o Ipiranga, trocando-se então melancólicos adeuses à sombra da Árvore das Lágrimas.
Uma tarde, subia ele o Beco da Lapa quando, ao passar por uma casa baixa, de rótulas verdes, ouviu uma risadinha de cristal. Parou. Sentiu que
alguém o espiava por trás do ralo. Sorriu amavelmente, sem ver ninguém. Então, uma vozinha meiga se fez ouvir lá dentro:
- Por que não dança?
Instantaneamente, um mundo de lembranças lhe veio à mente.
- Boa tarde, dona Felipina!
Então, o ralo se abriu e, lá dentro, apareceu o rosto risonho da alemãzinha que atraiu a sua atenção no baile da Rua da Cruz Preta, no mesmo dia
em que chegara a S. Paulo.
- Como sabe meu nome?
- Perguntei.
Ele do lado de fora, com o cotovelo fincado à parede e o chapéu um pouco para trás; ela na penumbra da casa, batendo os bilros de um crivo
interminável, iniciaram uma palestra que não devia ter mais fim. Daquele dia em diante, todas as tardes, Frank se preparava e saía, dizendo aos
amigos:
- Vou estudar as Ordenações...
E os outros acrescentavam, sorrindo:
- Felipinas...
Desde a sua primeira aula, notou que entre os clérigos e a Escola havia certo azedume; de um lado, os frades martelavam desabridamente os sinos
durante as aulas e, de outro, ele, um herege, era aceito como professor de História e examinador de Matemática, à sombra do mesmo teto. Não pôde
deixar de sorrir ao fazer tal observação.
Talvez mania de perseguição, mas até certo ponto julgou-se agravador dessa pendência. E, dando um balanço nas recordações dos primeiros dias,
ainda mais se convencia da suspeita. E parafusava, parafusava...
Na igreja contígua ao convento, transformada em escola, havia a Irmandade de São Francisco de Assis, da qual só podiam fazer parte lentes,
estudantes, bedéis e empregados da Faculdade. Todos os anos, cabia a um quintanista fazer a festa do padroeiro, que era uma das mais pomposas de São
Paulo. Nos seus primeiros dias de aula, fora insistentemente auscultado sobre a sua atitude religiosa. A cada passo, faziam-lhe esta pergunta:
- Já entrou para a Irmandade?
Ou esta observação:
- O senhor é bem feito; já pode fazer parte da Irmandade de São Francisco de Assis, onde só há gente boa.
Ouvindo aquelas palavras, ele sorria e passava a outro assunto. Mas um dia, ao sair da aula, já no comprido e escuro corredor, o acaso lhe pôs na
frente a figura magra e escorrida de um franciscano. O frade parou diante dele e com o melhor sorriso saudou-o:
- É o professor Julio Frank?
- Sim, senhor.
- Pois eu bendigo o acaso que me fez encontrá-lo neste momento, visto que há dias o meu desejo é falar-lhe...
- Estou ao seu dispor.
Saíram juntos, a passos lentos, estacando amiúde.
O frade continuou:
- Não sei se me conhece, meu caro professor; eu sou frei Targino e também me dedico a lecionar. Ensino Latim na Escola do Rabecão. Já ouviu
falar? Pois, para ser franco, digo-lhe que o meu espírito também liberal tem me acarretado desgostos, a ponto de já não ser bem visto pelo
padre-mestre. Compreende?
Frank não compreendeu, mas o frade prosseguiu:
- Quando me informaram de que no Curral - desculpe a expressão - havia um novo professor e homem de largos conhecimentos, senti logo um forte
desejo de conhecê-lo. A princípio, tive a intenção de vir procurá-lo, mas como é usança muito arraigada das pessoas da Faculdade pertencerem à
Irmandade de São Francisco de Assis, calculei que logo depois tivéssemos a sua visita e então eu aproveitaria para ficar conhecendo-o.
- É uma usança?
- Rigorosa. Quem não se submeter a ela passará naturalmente a ser mal visto pela Ordem e a cidade inteira. Mas eu atribuí a sua falta a
esquecimento ou mesmo desconhecimento, tanto mais que se trata de um estrangeiro...
- Já pedi a minha naturalização.
- ... de um estrangeiro que nos chega com a só apresentação da sua cultura e simpatia pessoal, mas cuja presença é claro que nos honra. Só mais
tarde me informaram de que é de origem huguenote, mas que, bondoso e inteligentíssimo, acredito, suponho...
- Nasci de fato protestante, mas preferi a Filosofia à Religião.
- Houve até mesmo quem afirmasse que o professor era - olhou em redor e como não visse ninguém, disse-lhe a palavra ao ouvido - judeu...
- Por causa do nome? Não tenho nada com o meu homônimo polaco; sou Frank mas não sou frankista.
Depois de estudar na fisionomia do professor a impressão que lhe iam causando as palavras, o frade continuou:
- Também tenho as minhas leituras proibidas. Está vendo isto?
Tirou um livro das dobras do burel: era o Candide, de Voltaire.
E prosseguiu:
- Julguei, pis, que quisesse se recolher à segurança do nosso seio para, com maior liberdade, pensar como lhe aprouver. A primeira preocupação do
herege tem sido o burel: é por isso que a ciência e as reformas saem dos conventos. Claro que não lhe proponho o noviciado - e riu de bom humor,
mostrando os dentes - mas não custa nada a observação de uma praxe a que os nossos superiores ligam tamanha importância. E eles são severos...
Disse e esperou. O professor conservou-se calado. Então, com a mesma versatilidade, voltou às boa maneiras e depois de um cavaco esfuziante
despediu-se confessando-se encantado com o seu conhecimento. Mas desde aquele momento Frank sentiu - talvez mania de perseguição - uma surda
hostilidade, que ia da intempestiva bulha dos sinos até... até... quem sabe lá... E se não passava daí era porque, naquele tempo, agia nas sombras
outra força, a Maçonaria, tão poderosa que, segundo parece, fizera a independência do Brasil.
Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de
26/6/1936 com o texto
15
Julio Frank lembrava-se de que, numa tarde de junho de
1834, ao fazer a última visita ao tenente-general José Arouche de Toledo Rendon, na sua chácara do Morro do Chá, toda cercada de plantações, o velho
diretor da Faculdade lhe contara com pormenores o caso dos sinos.
Rendon estava sentado no poial de pedra, com azulejos, e
fê-lo entrar. Trajava no momento um chambre de cores vivas e apresentava a cabeleira empoada, provida do competente rabicho, com laçadas de fita
preta. Na ampla varanda foi servido o café e ali conversaram durante uma hora. Referindo-se às suas plantações, o velho estendeu o bastão pela
janela aberta e, desenhando com ele as culturas que cercavam as chácara, manifestou a confiança que tinha no chá:
- Senhor Frank, dentro de um século São Paulo será o
maior exportador de chá do mundo inteiro!
Foi nessa visita que ele ouviu de Rendon a movimentada
história. Aquilo vinha de muito longe, dos primeiros dias da Faculdade.
Em 1828 - explicou ele - ainda não existia o Largo de São
Francisco. O terreno que ora ocupa fazia parte do quintal fronteiro ao convento, todo cercado, com árvores frutíferas, horta e o chafariz dos
frades. Só apresentava uma aberta, que era o adro da igreja. Encravado nesse quintal, pegado ao convento e com porta para o pátio, havia um casebre
em que, pelo Natal, os franciscanos expunham visitadíssimo presépio.
No fim de outubro daquele ano, Rendon dirigiu-se a José
Clemente Pereira, presidente da Província, pedindo-lhe mandasse cortar o quintal por duas ruas que, no seu entender, acrescentariam valor ao terreno
tão extenso que "ocupava metade da cidade". O mesmo Rendon, compreendendo também a necessidade de um chafariz no local, escreveu-lhe outra carta, no
mês seguinte, solicitando que "a água, tirada com as molas, para comodidade dos frades" de São Francisco, fosse franqueada ao público. E o senador
Raphael Tobias de Aguiar não só aceitou tais sugestões como também manifestou á Câmara a necessidade de se fazerem ali uma praça e chafariz,
"deitando-se abaixo para esse fim os muros do quintal que fica em frente" da Faculdade.
Mas as ligações entre a Faculdade e a Igreja continuavam
muito estreitas: durante os anos que se seguiram, os estudantes entravam para as aulas pela porta da igreja, juntamente com os fiéis que iam para a
missa.
Com a adaptação do convento a escola, o sino que estava
situado nas gerais, isto é, no centro do claustro, continuou a chamar os fiéis para os ofícios religiosos, ao mesmo tempo que dava as horas e os
sinais de início e terminação das aulas. Daí, os primeiros desaguisados entre Rendon e o guardião do convento, por causa do excesso de toques.
"Às sete e meia, dobram o sino grande por espaço de dez
minutos; às oito horas, tocam-se outras oito badaladas no mesmo sino grande para a entrada das aulas, as quais se repetem às nove e meia, em que se
acaba a lição. À noite tocam-se os tristes ou silêncio, um pouco depois das Ave-Marias, e às nove horas tocam-se os alegres e ambos os coros nos
sinos pequenos".
O donato Francisco Paula Leme dava ordens a Rendon:
exigia-lhe em carta que mandasse tocar os sinos à hora que ele quisesse, ou que lhe mandasse entregar as chaves. Rendon remetia a carta ao
presidente da Província e chamava o guardião de fanático e fanático façanhoso: "Parece que pretende arraigar-se na sacristia, porém não convém que
ali germine tão peçonhenta semente.
E os sinos prosseguiam martelando...
O sineiro chamava-se Luiz Carlos Godinho; usava cabelos
compridos e tinha cara de coruja. Absolutamente de coruja. Sua única paixão na vida eram sinos. Badalava com inspiração e encantamento. Levava mesmo
o zelo para além das linhas divisórias do dever, acabando por tornar-se verdugo de quantos moravam pelas vizinhanças. O guardião dava-lhe
assentimento e ele puxava as cordas, de dia para dia com maior convicção.
Embalde vieram as queixas: o diretor da Escola mandou-lhe
ordens enérgicas e o governo se movimentou. Tudo inútil. O homenzinho, em vendo um sino, ficava maluco. Dia e noite era déngondém, déngondém...
Certa manhã, porém, ele passou pela mais dura das
decepções. Às sete horas e meia, quando o sino deveria repicar durante dez minutos, não se ouviu o toque habitual. Foi um pasmo, um corre-corre, uma
bulha. Godinho desceu aos pulos a escada das gerais e, parando diante dos estudantes aglomerados, levou as mãos abertas à cabeça arrepiada,
bradando:
- Furataram o badalo!
E, inteiramente fora de si, ganhou a porta e despencou
pelo Piques, à procura da peça que faltava ao sino. Foi um sucesso que encheu São Paulo. Dois dias depois, como não se encontrasse o badalo nem se
agatanhasse o seu desencaminhador, a Fazenda comprou outro e o sineiro pôde recomeçar na sua faina. Fácil de imaginar a sede com que voltou ao pote.
A terra estremeceu ao som das badaladas. Data daqueles dias a "cidade sínica", expressão que fez época.
Mas o Godinho tantas fez que, em setembro de 1834, morto
Rendon, Brotero na direção da Faculdade, recebeu um aviso do presidente da Província dizendo constar-lhe que o sineiro do Curso Jurídico costumava,
a seu arbítrio, usar dos sinos em atos não públicos ou próprios do estabelecimento, e recomendava que tais abusos fossem coibidos.
A verdade, porém, é que o presidente não age desse modo
por amor dos tímpanos paulistanos, mas "porque a conservação dos referidos sinos está a cargo da Fazenda, com despesas de consertos ou novos sinos,
quando continue tal abuso".
Como se deduz desse aviso, Luiz Carlos Godinho tocava
tanto que ameaçava rachar os sinos.
Naquele quartinho com janela escancarada sobre o
Anhangabaú, Frank ia vivendo apagadamente. Quando ali pelas sete horas os sinos de São Bento acordavam a cristandade, ele virava para o canto e
retomava o fio do sonho. Mas a preta velha que estava a coar café na cozinha chegava à porta e acordava-o de novo, dessa vez para levantar-se.
Então, saltava da cama, vestia um roupão e descia para o
quintal, onde a cabine de banho construída havia tanto tempo já estava bem melhorada. Dava o mergulho matinal. Depois, subia ao quarto, vestia-se
com apuro, tomava café e, fazendo molinetes com a comprida bengala, saía para o Curso Anexo, onde dava aulas das 8 às 10 horas.
Normalmente ia pela Rua de São José, cheia de barrocas e
despovoada; mas quando o tempo estava de chuva mudava de caminho para fugir à lama viscosa que se lhe apegava aos sapatos. Subia a Ladeira de São
João Baptista, entrava na Rua de São Bento e seguia para a Faculdade.
A Rua de São Bento, outrora, era muito animada; desde
pela manhã os latoeiros martelavam nas folhas de Flandres; os sapateiros, diante das mesas, adelgaçavam a sola a marteladas e, plantados com suas
banquetas no meio da rua, cantando ou assobiando festivamente, os alfaiates se entregavam desde cedo ao seu mister.
Frank era uma figura benquista e popular mesmo fora da
Faculdade. Caminhando, desbarretava-se para a direita e para a esquerda. Nas casas de moradia, as velhas que espiavam pelo ralo das rótulas já se
haviam habituado à sua simpática presença. Conhecia também os cachorros pelos respectivos nomes e parecia conversar com eles. Chegava à Faculdade e
logo à entrada trocava dois dedos de prosa com o padre Mimim, que não ia para a sala sem dar definição de tudo o que se passava e do que se dizia.
Só então chegava ao Curso e, ao entrar na sala de aula,
já encontrava numerosos estudantes à espera; cumprimentava-os com um belo sorriso, deitava a bengala sobre a mesa e o chapéu sobre a bengala. Tirava
do bolso alguns papéis, passava por eles a vista e guardava-os de novo. Em seguida, passeando de um lado para outro, com as mãos para trás,
cruzadas, e os dedos abertos, iniciava a preleção:
- Como vocês sabem, os fenícios...
Nesse momento, como de propósito, os sinos de São
Francisco botavam a boca no mundo. Dén gondén, dén gondén... E a sonora revoada caía sobre o carunchoso edifício, já de si assombrado de rumores
particulares e de ecos: entrava pelas janelas, reboava pelos pátios, enchia de ruídos de asas os telhados onde apareciam, por dentro, as descarnadas
traves, e as finas réstias de sol apunhalavam de alto a baixo a sombra.
Ele parava a exposição, fechava os olhos e, perfilado,
equilibrando-se, punha-se a erguer nas pontas dos pés juntos, para encolher o tempo. Dez minutos depois dessa expectativa, as badaladas fugiam como
espavoridas... Então, voltando a si, recomeçava:
- Os fenícios, como vocês sabem...
E os sinos lá vinham como garotos que estão dando uma
assuada: a bulha recrudescia, a lição era novamente interrompida. Dessa vez Frank ficava pálido, de mãos trêmulas e de quando em quando
aproximava-se da porta do corredor, com quem vai sair para tomar séria resolução. Mas voltava, passeava, batia com a régua sobre a mesa. Só muito
tempo depois os sinos silenciavam nas gerais e ele podia completar a lição do dia. Mas não estava tranquilo: todas as vezes que chegava a um ponto
interessante da exposição, olhava aflito para a janela, perseguido pelo receio de que os sinos recomeçassem a vaia.
Só em 1836, graças à coação de novo aviso redigido em
termos ainda mais enérgicos, o dr. Brotero determinou que "os sinos da igreja ao lado só tocassem em festas acadêmicas ou nacionais" e nas da Ordem
Terceira de São Francisco. E já nas últimas linhas esclarecia "que todos os toques devem ser em tempo que não perturbem as aulas".
O sineiro sofreu muito com a regulamentação. Passava
horas inteiras sentado no mocho das gerais,namorando a corda do sino. Depois, como "aguado", entrou a definhar, caminhando melancolicamente para a
morte, uma morte que só devia completar-se trinta anos depois...
XIX - Morte de Frank
Junho de 1841...
Céu pálido, manhãs frias: um vento anavalhante vinha das
várzeas, despia as jabuticabeiras, rachava os lábios, avermelhava o rosto, endurecia os dedos, provocava sessões de tosse entre os estudantes, na
sombra úmida das arcadas.
Uma tarde, Julio Frank sentiu-se doente. Não jantou nem
escreveu. Passou a noite numa vigília agitada. Ao amanhecer, não foi preciso que a velha preta o chamasse: quando bimbalharam os sinos de São Bento,
já se ouviam os seus passos no quarto dos fundos. Levantou-se, fez a ablução matinal, tomou contra a vontade dois goles de café e seguiu para o
Curso Anexo.
Nos últimos anos, tinha adquirido o hábito de fazer,
sempre que por ali passava, uma visita ao Beco da Lapa. Chegando à casa das rótulas verdes, batia à porta com o castão da bengala. Filipina vinha
recebê-lo, com alegria. Esperava-o de manhã e à tarde com alguma quitanda, que ele saboreava de bom humor, antes de ir para a aula ou de voltar para
casa.
Logo depois de conhecer sua linda e prendada patrícia,
quis casar-se com ela. Mas a velha mãe recusou-se a pés juntos, invocando o passado do professor, que não julgava assaz recomendável. Os namorados
se conformaram com a recusa, mas nem por isso deixaram de amar-se. O idílio seguiu o seu curso normal. Há cem anos, o paulista era avesso ao
matrimônio. A nossa porcentagem de casamentos não dava para alarmar ninguém. Quem estuda aquela época encontra aspectos inesperados. Muitas uniões
só se regularizavam à hora da morte. Esse, naturalmente, devia ser o caso de Julio Frank e Felipina.
Àquela manhã ele demorou-se pouco na casa da jovem. Antes
de retirar-se, porém, foi ao quarto contíguo e debruçou-se sobre um pequeno catre de couro, com guardas muito altas, de onde caía um véu branco que
mais parecia um par de asas angélicas. Abriu o tênue cortinado e inclinou-se sobre uma figurinha loura que dormia.
- Bárbara!
Era a filha de dois anos. Acordou-a, disse-lhe bobices
para a fazer sorrir, mirou-se no azul puríssimo de seus olhos e só então saiu para a Escola.
Mas a aula desse dia foi dada com visível esforço; uma
preleção sem brilho, quase por dever de ofício. E quando o relógio grande da sala contígua pingou as dez horas, não esperou mais e foi-se. Tinha
calafrios.
Àquela hora descia sobre a cidade uma garoa triste. O
largo estava molhado e deserto. A árvore que ficava mesmo à porta da ferraria encolhia-se ainda mais nua que de ordinário. Nela, amarrado, de cabeça
baixa, o cavalo do padre Mimim, contraído o hábito do dono, meditava Kant. Um só estudante cosia-se à parede da Faculdade: era Hilario Gomes Barbosa
Nogueira, que toda gente sabia ter lido a Historia Universal de Cesar Cantú de ponta a ponta, inclusive as anotações. Seus esquecimentos eram
famosos: se ali estava, naquele momento, era porque, naturalmente, se havia esquecido de voltar para casa.
Saiu pela garoa. Aspirou o cheiro característico das
forjas da ferraria. Olhou para dentro dela e viu um menino pendurado na correia do fole, a dançar que nem mangrizó. Sentiu os pés de gelo e a cabeça
a pegar fogo. Os calafrios se repetiam com maior frequência. E aquele desejo invencível de deitar-se, de não pensar, de não falar com ninguém.
- Estou frito... - pensou.
Chegando à "república", os rapazes se inteiraram do seu
estado e foi um alvoroço. A preta cozinheira trouxe-lhe o alguidar de barro com água quase a ferver, pôs dentro um punhado de sal - ela própria, a
mãe preta de todos os estudantes, aquela de quem a história nunca pergunta o nome porque é a raça inteira - propinou-lhe pousadamente o escalda-pés.
Dava amiúde uma fugida da cozinha e ia ao quarto de Julio
Frank. Só então pareceu lembrar-se de que falava: ela, que nunca havia pronunciado palavra diante do professor, queria saber onde é que doía, como
estava passando, se o remédio fazia bem. E trazia as mezinhas, os chás de capim-cidrão, as folhas de guaco, toda a medicina caseira dos resfriados.
Mas a febre crescia.
Uma vez, Frank perguntou:
- Como é mesmo que você se chama?
- Rita.
- Rita de quê?
- Eh eh! Preta véia tem um nome só.
Frank olhou-a com infinita ternura. Em quase dez anos não
havia percebido, ali, ao seu lado, aquela grande alma silenciosa, que parecia se ter feito feia e humilde para melhor esconder o tesouro de
afetividade que dentro de si cabia. Como não tinha ele adivinhado aquilo?
Ao entardecer entrou numa espécie de modorra, de
respiração ofegante, que se prolongou pela noite. Os amigos chegavam, acercavam-se do leito, diziam-lhe palavras de conforto; abria então os olhos
vagos, agradecia com um sorriso a bondade dos que o visitavam e cerrava-os de novo, querente de morrer.
Alta noite, o Rezende foi bater à porta do dr. Justiniano
de Mello Franco, que prometeu visitar o enfermo. Foi uma efêmera esperança. Aguardaram-no meia hora, uma hora... E, como Frank se fosse extinguindo,
correram à janela e puseram-se a perscrutar a noite, ansiosos da sua chegada. Muito tempo depois, lá para as bandas de Santo Antonio, apareceu uma
luzinha que, oscilante, se foi pouco a pouco aproximando: era uma lanterna. E como ela hesitasse, duas portas antes da "república", Rezende
debruçou-se sobre a rua e gritou:
- É aqui, doutor!
O médico acertou a casa. Deu ao doente uma sangria,
prescreveu suador, sinapismo de mostarda, chá-de-bico, rigoroso jejum. Rezende e Ourique cercaram-no à porta, para ouvir-lhe a opinião.
- Pneumonia; e ele está tão debilitado, que se o
organismo não reagir será um caso perdido.
O médico perdeu-se na noite da rua. Rezende foi para o
quarto do enfermo e Ourique dirigiu-se apressadamente à janela, numa crise de soluços. Outros rapazes entraram de repente pelo comprido corredor,
num falatório. Ourique, enxugando rapidamente os olhos, correu ao seu encontro e levou o dedo aos lábios:
- Psiu! O Frank está mal!
Então as visitas viraram sombras; durante o dia e a noite
chegavam de todos os pontos da cidade, entravam na ponta dos pés, formavam pequenos grupos pelos corredores e conversavam em voz baixa. De quando em
quando, iam à porta do quarto e olhavam para dentro, onde o amigo, já muito pálido, de pálpebras descidas, parecia esperar serenamente por alguma
coisa. |