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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 48d

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta novela foi publicada em 17 semanas consecutivas de 1936:

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(material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

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A sombra de Julio Frank

Affonso Schmidt

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Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 22/5/1936 com o texto

10

A vida em Ipanema sufocava-o. Os negros, quase nus, trabalhavam de sol a sol, arrancando blocos da pedreira e conduzindo-os para a usina; ali, outros escravos, munidos de socos, transformavam a pedra férrea em cascalho; em seguida, nos vastos carumbés equilibrados na cabeça, sobre rodilhas de pano, levavam o minério para os fornos, que permaneciam acesos dia e noite. Por bicas laterais era descarregado o metal ígneo sobre formas de terra, que o moldavam em barras, mais tarde forjadas e laminadas. Havia também os lenhadores que lombavam bosques inteiros reduzidos a carvão, paa alimentar a gula das fornalhas. O povo que lá trabalhava era calado e áspero. Os próprios patrícios do Frank, com a mesma desconfiança do companheiro de quarto, olhavam-no de atravessado, achando a sua presença ali um tanto suspeita.

O poeta exilado inclinou-se para os pretos, afetivos e sofredores. Tratava-os de igual para igual, com desaprovação dos chefes.

Muita vez foi surpreendido lá em baixo, no outro grupo de casas que formava quadrado à beira do riacho, apresentando uma única entrada para o pátio sobre o qual davam todas as portas. Era a senzala. Gostava de lá penetrar, sentar-se num pilão, à beira do fogo, e escutar horas a fio a queixa lamurienta dos escravos. Um dos feitores não gostava daquela aproximação e ia buscá-lo, sob pretextos mal alinhavados. E, no caminho, explicando-lhe o que havia de ruim em tais amizades, sentenciava:

- Lé com lé, cré com cré…

Isso, porém, não impediu que a senzala dedicasse desde logo ao Lamão uma cálida simpatia de animal acarinhado. Mas uma tarde de primeiro de novembro aquilo devia acabar. Era dia santo, véspera de dia santo. Os trabalhos estavam suspensos; as pedreiras, tão movimentadas durante a semana, apareciam desertas e dos fornos quase extintos elevava-se um penacho de fumaça azul que as brisas esgarçavam a duas braças de altura. Desde pela manhã o pessoal andava à solta.

Sobre tarde, depois de uma jornada de calor intenso, os morros e os matagais pareciam tomar um banho de azul. Ventos das várzeas ciciavam nas folhas; um cheiro agradável subia dos pastos esturricados. Então, como deliciados pela doçura da hora, os trabalhadores se foram espalhando pelos capões escuros, onde haviam iscado mundéus; as mulheres desciam ao córrego para recolher a roupa enxaguada, que coarava nas guanxumas. Por seu lado, Frank também desapareceu. Esse fato aguçou a curiosidade malévola dos feitores, que o sabiam de dares e tomares com a senzala. Andavam de olho nele; estavam certos de achá-lo em algum zungu.

Não andavam  longe da verdade. O místico, o protegido de Welshaupt, tinha a fascinação dos ritos índios e africanos, como se observa em mais de um passo da sua biografia. Filósofo e enamorado de seus estudos, fez o que mais tarde fizeram Nina Rodrigues e outros: procurou conhecer o estrelado mistério da alma africana. Por isso, naquela tarde, a convite de uma preta velha, foi assistir ao recebimento de um ogan, ou protetor de terreiro. Havia semanas que ele não pensava em outra coisa. Quando escureceu de todo e a bolha imensa do plenilúnio se elevou por trás dos morros, homens e mulheres, isoladamente ou em pequenos grupos, começaram a escoar-se na direção do Monjolo, onde ficava o sítio de Pai Florêncio. Era ali o canjerê. Acompanhou-os.

Depois de quase uma hora de caminho, começaram a ouvir o rumor compassado e suave, na distância, dos atabaques, acompanhados por canzás, tambús e agogôs e pelos gemidos das puítas. O alemão era conduzido pela velha, uma preta nagô, cuja idade parecia impossível precisar, mas que contava ter sido apresada na África quando já era avó, chegando ao Rio de Janeiro ainda no tempo dos vice-reis. À proporção que se adiantavam, aquele ruído se foi tornando mais forte até distinguirem também, como num fundo vocal, o alarido que o acompanhava de vozes e cânticos.

Breve chegaram a uma tapera sobre cujas taipas felpudas de gramíneas havia crescido e esgalhado uma árvore. Ali era o terreiro de Pai Florêncio, numa área limpa e enxuta sobre a qual árvores velhas debruçavam a ramaria espessa. Cerca de quarenta homens e mulheres, quase todos conhecidos de Frank, encontravam-se reunidos, enquanto à beira dos esborcinados paredões alguns homens percutiam gravemente nos seus instrumentos. Entre os últimos chegados estava o ogan, um certo Damião, plantador de fumo de Sorocaba. A aproximação do aspirante foi recebida com barulhentas demonstrações de alegria.

A toada cessou. Fez-se um grande silêncio. A velha tomou a mão de Damião e conduziu-o ao centro do terreiro, onde crepitava um grande fogo, e fê-lo sentar-se numa tripeça sobre a qual haviam arcado um ramo de flores silvestres; depois, atirou-lhe sobre os ombros um pano da Costa, repetindo sempre, em melopeia, palavras africanas. Terminada a oração, convidou-o a levantar-se, cobriu-o com um grande pano quadrado de gorgorão com franjas douradas; quatro pretinhas seguraram nas pontas desse manto e, assim, num passo grave, o neófito e as filhas-de-santo fizeram, sob uma alegria doida dos circunstantes, a volta do terreiro. Ao passar pelos músicos, a mulher que dirigia a cerimônia fez o ogan atirar um punhado de vinténs, símbolo de auxílio.

Depois desse ritual, Damião foi levado à presença de Pai Florêncio, um preto velho que de tão mirrado mais parecia anão; tinha enrolado à cabeça um lenço vermelho, de ramagens, e mostrava a tiracolo uma picuá de couro de quati, ressecado como madeira. Estava de cócoras, ao pé de uma armação de panos, alumiado por uma vela de cera virgem cor de tabaco. Quando ele se ergueu para abraçar e beijar Damião, a guaiaca chocalhou, mostrando que estava cheia de pequenos objetos.

Terminados os cumprimentos de recepção, Pai Florêncio abriu a patrona e do meio de ervas tirou uma imagem de São Jorge, talhada em pedra negra, proferiu palavras ininteligíveis, encarando o céu com os olhos cerrados, e entregou a imagem a Damião com estas palavras:

- É Ogun, o Santo do terreiro: que feche o corpo e traga bênção.

Só então, acostumando-se à escuridade reinante ao pé do círio, Frank viu que estava diante do pegi, ou altar: sobre o pai-de-santo e a linha de umbandas, erguia-se uma bandeira com o emblema do orixá e os dourados rebrilhavam à inquieta claridade.

Uma pretinha que até ali estivera sentada a um canto, com a cabeça fincada entre os joelhos ósseos, ergueu-se de súbito, esticou-se toda, levantou o queixo para o céu e, sonambulando, avançou para o terreiro; girou sobre si mesma, inteiriçou-se ainda mais e começou a dança que pouco a pouco se foi tornando clownesca. A véstia que lhe cobria o dorso rasgou-se de alto a baixo e depois caiu em trapos, mostrando o torso esquelético e um peito cavo onde, apesar disso, erguiam-se as frutas negras dos seios.

Dali a pouco, foi a saia de chita listada que descaiu ao longo das pernas finas e ágeis, amontoando-se nos pés. Cobrindo-lhe o esqueleto só ficou uma veste curta e branca, muito branca, através da qual se via a sombra da epiderme; nas voltas malucas, apegava-se às carnes lavadas e com os bruscos movimentos se foi dilacerando, até desaparecer num bocado de trapo amarfanhado, a gotejar suor.

Em seguida, a filha-de-santo começou a dizer farrapos de frases, como presa de um sonho agitado. Depois, esses balbucios se foram transformando num canto em língua misteriosa e quando a camisa acabou de desaparecer de todo em seu corpo, e ela ficou toda nua, rígida e angulosa, ouviram-se gritos roucos pela noite:

- Exú! Exú!

A preta ainda quis dar alguns passos, mas os membros se lhe tornaram de pau, os olhos vidraram no fundo das órbitas, a magreza aumentou; então, mais fina, mais reta, com os braços grudados ao longo do corpo, ergueu-se nas extremidades dos pés, talvez nas pontas dos dedões, cresceu desmesuradamente e caiu para a frente, com um estalido seco, como tábua desamparada.

As vozes repetiam, soturnas:

- Exú! Exú!

Cada preto gritava pelo nome do seu orixá e na balbúrdia que se fez só ós umbandas, de cócoras, de barrete para a frente, pareciam mergulhados no silêncio do outro mundo. E assim que Exú, o príncipe das forças contrárias, desceu sobre a filha-de-santo que o havia invocado com seus cânticos e danças, para retê-lo preso, Pai Florêncio recebeu o santo protetor. Ergueu-se, ficou como cego por ignotas claridades, e, enrolando a língua, pôs-se a falar na sua fala africana. Em rigor não dizia nada; eram palavras descosidas, exclamações, cochichos. Era uma linguagem de sonho em que cada negro ouvia e compreendia aquilo que mais desejava. E as dores foram desfilando diante do pai-de-santo, numa angústia, para ouvir de sua boca a palavra de conforto, a única que lhes restava na terra onde tudo lhes era tirado, até mesmo a religião que haviam mamado no leito e que não é mais ingênua do que qualquer outra das muitas que, desde que mundo é mundo, fazem a felicidade dos homens.

Quando o último sofredor teve o seu quinhão de consolo, os homens rodearam a fogueira e trataram de fazer assados no espeto em honra do santo. Enquanto a carne chiava, a caneca de cachaça com gengibre corria de boca em boca; dançava-se e amava-se ao clarão sobrenatural daquela fogueira, numa cálida noite de Todos os Santos.

Ao primeiro albor da manhã, quando se ouvia nas copas o despertar das aves d a carícia das brisas, todos ainda dormiam a sono solto, um sono pesado, irmão da morte. Foi nessa hora que alguns latidos de cachorro-de-boiadeiro alarmaram o silêncio da tapera e logo depois os molossos se atiraram de presas à mostra contra os corpos inanimados e em mistura, que dormiam. Atrás dos cães apareceram os capitães-de-mato, munidos de anginhos, chicotes e trabucos, dando cerco ao zungu. Negros e negras foram presos, amarrados e conduzidos para Ipanema, onde os esperava o castigo.

Frank havia partido antes de amanhecer, mas quando lá chegou já estavam as contas feitas e a ordem de sumir-se imediatamente. Nessa mesma tarde, seguiu a pé para Sorocaba, por um caminho em que havia onças e a cada curva um passarinho diabólico chamava os andantes pelo nome, ou então com aflitos apelos:

- Psiu! Psiu!

Julio Frank voltava-se e não via ninguém.

Ao passar pelas santas-cruzes, tirava o chapéu, entrava e punha um moeda no cofre das almas. Aquele filósofo tinha todas as superstições.

XIII - A Venda da Cobra

Tomando o caminho de Sorocaba, Frank pensava em procurar um dos dois Oliveiras que três meses antes, em companhia de outros amigos, o trouxeram da Corte. Antes de chegar à vila dirigiu-se à sua fazenda, que não era próxima, e lá chegando inteirou-se de que o seu protetor já se havia reposto de trabalhosa visita ao Rio de Janeiro e àquela hora – segundo lhe contaram pessoas da família – já se encontrava de viagem para as Missões.

Ao saber de tais coisas, o rapaz ficou apreensivo e resolveu prosseguir imediatamente para a vila, que julgava próxima. Tomou uma estrada qualquer. Na primeira encruzilhada virou à esquerda. Depois desorientou-se. E ao alcançar as primeiras casas contaram-lhe que se havia enganado: em lugar de dirigir-se para Sorocaba, descera para Campo Largo, lugarejo que distava cerca de três léguas da vila e onde também havia ranchos de tropeiros e pastos para descanso de animais.

Desciam as sombras da noite. As pessoas que topava pelo caminho pareciam-lhe hostis. Se ao menos encontrasse por ali uma daquelas festivas hospedarias da Corte! Fazendo tais reflexões, caminhou para o Largo de São Benedito, que era muito extenso, quase inteiramente tomado pelos ranchos de pouso, onde os tropeiros passavam os dias, enquanto os animais eram reunidos nas mangueiras, preparando-se para a partida. Os tropeiros de Sorocaba eram conhecidos em todo o país.

Aquela noite era véspera de uma das periódicas partidas de tropas e o largo estava movimentadíssimo. Diante de cada rancho ardia uma fogueira. À roda delas, aquecidos e alumiados pelas chamas, sentavam-se tropeiros. Havia os que cantavam, os que pontilhavam na viola, os que contavam histórias, os que jogavam búzio, os que atalhavam cangalhas e ainda os que não faziam coisa alguma, na muda contemplação das brasas, que são alegres ou tristes, sempre de acordo com o que vai na alma de cada um.

Dentro dos ranchos, havia outros fogos. Da trempe descia uma corrente aguentando o caldeirão. Sobre o tacuru, que era um fogão feito com três pedras, a chaleira do café. Ao pé dos jiraus, enquanto os caldeirões ferviam, os piás, meninos de 13 a 15 anos que acompanhavam a tropa, contavam bravatas e esgrimiam com os cambitos. Durante a noite, nos ranchos de pouso, ao longo das estradas, esses futuros tropeiros cozinhavam o almoço e o jantar para o dia seguinte.

Julio gostou do que via e foi se chegando. A princípio, manteve-se afastado, ao pé de uma fogueira deserta, como a observar o movimento que ia pelos ranchos. Depois, lá no fundo, alguém se interessou por ele e chamou-o para a roda. Julio agradeceu, já na língua da terra que ele, durante o resto da vida havia de preferir ao português, e acocorou-se entre aqueles homens requeimados e duros, que pareciam de aço. Nesse momento, o piá trouxe uma caneca de quentão e lha entregou. Provou, saboreou e como a língua desemperrasse, começou a falar de Ipanema, de onde acabava de chegar. Não queria fazer de noite o estirão entre Campo Largo e a vila. Procurava pouso.

- Se vancê não percisa mais que teiado e fogo, fique no rancho; isto aqui é de Deus e dos tropero

Meia hora depois, já havia conquistado a confiança difícil mas larga dos sorocabanos. Era Lamão prá cá, Lamão prá lá… À hora de dormir proporcionaram-lhe um canto e muito mais do que fogo e teto, que haviam oferecido. Deram-lhe uma grande caneca de café com quitanda, um pelego para forrar o chão e um poncho para que se embrulhasse, por causa do frio que se fazia sentir e que aumentaria com o abrir da manhã.

Como a canseira lhe partisse os ossos e o sono pesasse que nem chumbo nas pálpebras, não esperou mais e foi acomodar-se. De quando em quando, acordava e via do seu posto o movimento noturno dos tropeiros que se aprestavam para a partida e as fogueiras que lentamente se iam extinguindo na noite alvacenta de neblina.

Acordou alta madrugada com o ruído que faziam aqueles homens, arrastando bruacas. As esporas riscavam o chão socado. Ainda estava escuro e os tropeiros já reuniam os animais. Ouvia-se por toda parte o cincerro das madrinhas. As mulas chegavam ariscas, batendo os cascos, corcoveando a qualquer contato; formavam em tropa na embocadura do caminho que deveriam seguir, enquanto os capatazes, a cavalo, galopavam de uma banda para outra, gritavam, enchiam a praça com as abas esvoaçantes dos seus palas. Eram uns homens geralmente altos, magros e bronzeados; vestiam calça larga, de droguete escuro, botas de couro de veado, chapéu de aba larga, lenço róseo ou azul claro no pescoço e, por cima da véstia, traziam o pala listado de tons amarelados com as franjas esgarçadas.

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 29/5/1936 com o texto

11

Enquanto uns se preparavam para a partida, outros iam para a venda do Bernardo, que ficava na esquina da igreja, tomar um gole de pinga, abastecer-se de fumo, palhas de cigarro, iscas e trem de fogo. O dono era um velho ituano que conhecida toda gente, toda, e nisso punha sua vaidade. Quando Julio Frank transpôs a porta, ele esquadrinhou-o e disse:

- Esse é que é o Lamão.

- Vancê me conhece?

- Não. Nunca tinha visto, mas  já me falaram de um lamão letrado, amigo dos Oliveiras…Eu assim que olhei atinei logo.

- Pois é.

- Veio de Ipanema?

- Cheguei ontem, à noitinha.

- Não se deu bem com aquilo?

- Malemá.

O vendeiro sabia tudo. Então, pediu-lhe que indicasse o caminho da vila, o que ele fez com gosto. Nas despedidas, porém, chamou-o de parte e preveniu-o de que estava sendo reparado como dado a valentias…

- Eu? – admirou-se Frank – pois se até nem uso faca na cinta!

- É por isso mesmo: tão dizendo que é prá intimá. É como quem diz assim: prá esses quirera nem faca perciso.

Seguiu a pé para a vila. Palmilhou caminhos quentes, vermelhos e fundos como navalhadas. Eram três léguas de campos, onde rareavam as árvores, encontrando de longe a longe um escuro capão batido pelo sol.

Profundamente cavado pelos carros de bois e pelas enxurradas, o caminho dava infinitas voltas pelas colinas, parecendo ter pena de chegar. Horas depois, começaram a aparecer as roças, os pequenos sítios se foram amiudando; ao contornar um daqueles morros baixos, apareceu uma cruz no horizonte; debaixo da cruz estava a torre e debaixo da torre o casario alvejando.

O centro urbano espalhava-se desordenadamente: eram casas baixas, caiadas, de telhado escuro, na sua mor parte de quatro águas, e alguns sobrados. O madeiramento das portas e janelas parecia excessivamente largo, dadas as proporções dos edifícios, e era pintado de azul ultramar ou castanho. Muitos prédios apresentavam na frontaria, em baixo, uma barra pintada a oca ou roxo-rei, de um metro de altura.

Por toda parte esgueiravam-se ladeiras mansas, sulcadas pelas enxurradas. Erguiam-se barrancos desmoronados pelas chuvas, onde vicejavam capins e cipós. Nessas plantas silvestres, havia bailes de borboletas. Entre as vivendas, estendiam-se taipas e sobre estas apareciam copas de mamoeiros e largas folhas de bananeiras e de muito arvoredo. Abundavam flores de maracujá; nas corolas zumbiam esvoaçando as abelhas. A qualquer hora do dia que se atentasse o ouvido, escutavam-se o cantar de um galo, o latir de um cão, o rinchar de um cavalo, o tinir de guizos ou o prolongado e triste chiar de um carro de bois.

Antes de chegar ao centro, Julio Frank entrou numa venda. Era a Venda da Cobra. Nem vivalma. O andante esperou. Dali a meia hora entrou o dono da casa, desculpando-se:

- Perdoe a demora, que só estou eu para servir a gente.

- Não tem caixeiro?

- Tinha; desde já hoje não tenho mais.

- Quedele ele?

- Foi-se embora.

- Se percisa de outro, estou às ordens.

O dono da casa atirou-lhe uma olhadela perquiridora. Depois de esquadrinhá-lo da cabeça aos pés, aventurou:

- Percisar, perciso; mas isso depende… Vê-se logo que não tem prática do ramo, mas, em tendo caráter e boa vontade, com o tempo irá desasnando…

Ficou como caixeiro. O serviço não requeria grande aprendizado e, no mesmo dia, tomou conta da venda. Dormia nos fundos, numa cama de tábuas sobre caixões. Enquanto seu Balbino – era assim que se chamava o vendeiro – ia a São Paulo e por lá ficava, uns diziam que a negócios, outros que para arrulhar ao colo de uma tal Rosalina da Conceição ou matar o tempo na orelha da sota, ele atendia à escassa freguesia.

A Venda da Cobra era uma casa de esquina com três degraus de pedra para a rua que descia. Do outro lado não tinha portas, estendia-se a parede branqueada a tabatinga, onde pintor canhestro havia brochado o nome do estabelecimento. Depois dessa parede, estendia-se carcomida taipa destelhada que, adiante, terminava num terreno encapoeirado. Pastavam ali cabras, porcos e galinhas; crianças de camisa de chita florada trepavam pelas cercas.

A venda era muito pobre: barril de cachaça, rolo de fumo, garrafas, botijas, latas de pólvora, saquinhos de chumbo, caixa de tampa com diversos compartimentos de mantimento. Nas prateleiras, viam-se também miudezas. O balcão era escuro, alisado pelo uso, com cobres pregados ao redor da fenda por onde caía o dinheiro da gaveta.

A clientela era vasqueira. De quando em quando, um caipira que descia a rua, apeava e amarrava o animal na argola do oitão e ia tomar um gole, para limpar o pigarro, dando dois dedos de prosa fiada. O Lamão, como passou a ser tratado o caixeiro, continuava a ter escrúpulos de pegar em dinheiro: quando o freguês lhe dava o preço certo da bebida, mostrava-lhe a fenda do balcão, entre as moedas pregadas, e dizia-lhe:

- Ponha aí.

E o cobre caía com tinido peculiar. Mas, quando era preciso dar trocos, ele ficava atarantado: abria a gaveta e catava os vinténs com as pontas dos dedos, alinhando-os no balcão, como se fossem coisa repelente. Em seguida, ia lavar as mãos.

Essas e outras singularidades do caixeiro causaram muita estranheza nos primeiros dias, mas, com o correr do tempo, os frequentadores da venda manifestavam até um certo prazer em assistir a tais micagens. Outra praxe do Lamão era compartilhar dos pedidos dos fregueses. Entrava alguém e pedia um vintém de pinga. Ele punha dois martelos pelo meio – um para o freguês, outro para o caixeiro. Entrava outra pessoa e, apalpando a barriga, lamentava-se:

- A móde que doente. A gente véve morre-morrendo. Bote aí uma pinga com genebra…

A cena se repetia: dois goles, um gole para o recém-chegado, outro para ele.

Frank andava de chinelas de liga; barba e os cabelos compridos desciam em mechas pelas fontes e na nuca, por cima da camisa. Vestia calça e camisa de algodãozinho riscado. O estudante de Goettingue desaparecera completamente: daquele tempo só lhe havia ficado o gosto pela leitura. Por isso, continuava a trazer sempre consigo um alfarrábio e, sentando-se nos degraus de pedra da escada da rua, enquanto a vila dormia ao sol, sem outro ruído além do carro de boi que passava ao longe, ele mergulhava em gregos e latinos.

Em frente, morava o boticário Anacleto. Era considerado o sábio da vila e, com o aparecimento de Julio Frank, cujo saber se fazia conhecido, o homenzinho azedou de ciúme e passou a fazer-lhe picuinhas. Seu Anacleto era o fabricante de uma famosa garrafada que curava todas feridas, mesmo quando apostemadas. Na porta de sua casa havia um papagaio que, à passagem de alguém, gritava para a rua:

- Tem ferida? Tem ferida?

Uma pajem da casa do Anacleto chamava-se Serelepe. Era parda clara, de cabelo quase liso e contava cerca de 18 anos. Engraçara-se com o caixeiro desde que, indo à venda comprar agulhas, fora servida por ele. Serelepe pajeava um pequerrucho, netinho do Anacleto. Passava o dia inteiro na janela defronte da venda, com a criança nos braços. Era ver Julio e começava a beijar de tal modo o pequenino que este, depois de defender-se com unhas e dentes, acabava por gritar com desespero.

Sempre que Serelepe arranjava um pretexto, corria à venda:

- Seu Lamão, um cruzado de chá da Índia…

Ele, que estava a ler, encarava-a com ódio, fechava o livro e ia servi-la. Mas a pequena toda se animava diante do rapaz. Os grandes olhos pestanudos velavam-se de sonhos, a boca polpuda sorria, os seios de fruta verde arfavam. Tinha um fraco dolorido pelo caixeiro. Mas Julio nãopercebia aquilo, antes se amofinava com tais compras justamente na hora em que a leitura mais interessante se lhe tornava.

Mas o namoro, pelo menos do lado dela, foi progredindo. De quando em quando, ao comprar dez réis de sal, atirava-lhe uma flor do mato. Outra vez, era um botão de rosa, que ela mesma lhe espetava na casa da camisa. O moço agradecia inexpressivamente, com uma cara tão chata que fazia dó. Mais tarde, ela atravessava a rua, correndo, e lhe oferecia um pé-de-moleque, em forma de coração, que trazia escondido numa dobra do avental.

- Tome, cabelo-de-mio; fui eu que fiz prá você!

Mas a indiferença do caixeiro continuava tão dolorosa que, certa vez, enquanto ele media farinha de mandioca, Serelepe perguntou-lhe animada:

- Seu Lamão, por que que vossuncê não gosta da sua morena?

Estava diante dele, entregue; de braços caídos, amarfanhava com os dedos a roupa estreita, de chita riscada, que lhe acentuava fortemente as formas de âmbar.

Frank sorriu. Sorriu melancolicamente, compreendendo que ela era a felicidade, a felicidade de qualquer rapaz da vila, menos a dele. A moça, de seu lado, sentiu que tinha feito tolice e correu envergonhada para casa, onde o Anacleto já havia notado a assiduidade com que ela ia à venda da Cobra.

Desde aquele dia, o namoro infeliz de Serelepe tornou-se paixão. Ela entristeceu, adoeceu. O caixeiro vivia indiferente a tudo que não fossem os livros. E ela a cercá-lo por toda parte, a mandar-lhe pelos moleques recados, flores, cocadas-mulatinhas, fitas, recortes de figuras nas quais se viam pombinhas voando, com um coração pendente do bico…

Dentro de pouco tempo, os estudantes da cidade já conheciam a cultura daquele homem. Todas as tardes, ao sair da escola, vinham pedir que lhes ensinasse a resolver problemas de álgebra, conjugar verbos, ou verter frases para o latim. Ele os atendia com gosto: estava mesmo no seu elemento. E, com o passar dos dias, a Venda da Cobra foi ficando às mosas. Só era procurada pela juventude das escolas. O balcão encheu-se de livros, cadernos, apontamentos, uma coisa horrível que afugentou os bebedores da vila.

Um dia, Balbino chegou de São Paulo, fugindo dos braços morenos da Rosalina da Conceição e do baralho, e declarou que ia liquidar a Venda da Cobra; Julio Frank fez um embrulho dos oito livros que eram tudo quanto possuía, e lá se foi… A venda já estava liquidada antes da decisão do vendeiro.

XIV – A escolinha

"Tem ferida? Tem ferida?"

Era o papagaio que gritava na porta do Anacleto.

Julio Frank abandonou a contragosto a Venda da Cobra, onde havia passado tão boas horas; sentiu uma certa tristeza ao escutar aquela arenga do papagaio, a que se havia habituado e que, certamente, não mais ouviria.

Já na esquina, voltou-se para trás: seu Balbino estava de martelo em punho, pregando a porta. Na casa fronteira, com a criança no colo, Serelepe pendurava-se na janela para acompanhá-lo com olhos ansiosos. Paixão de cabocla. E Frank sorriu embevecido.

Caminhando em direção do centro da vila, foi encontrando seus amigos estudantes e lhes contou tudo o que havia ocorrido. E como souberam da sua desdita, puseram-se logo a procurar o meio de ampará-lo, não somente pelos nobres sentimentos que floriam seus jovens corações, mas também para não perderem, com a ausência daquele homem, um douto e dedicado mestre.

Um deles alvitrou a criação de uma escola, pois assim o professor ganharia a vida na sua profissão e os alunos, frequentando-a, aproveitariam. A ideia foi logo aceita, embora inçada de dificuldades. A principal, com certeza, era o estado de penúria em que ele se encontrava e a falta de uma sala adequada à nova escola. Quanto a dinheiro, arranja-se – disseram alguns dos rapazes -, mas, a sala?

Foi então lembrada a casa do Anacleto, onde havia uma sala desocupada. Discutiu-se acaloradamente o assunto. A seguir, enquanto alguns rapazes iam ter com as suas famílias, a fim de pedirem dinheiro para a escola e manter na cidade o professor, que já se lhes havia tornado indispensável, ele em pessoa se dirigiu à casa do boticário. Quando lá chegou, o papagaio saudou-o com a frase de sempre, a única do repertório.

Frank bateu palmas. Serelepe veio atender e ficou atarantada quando, ao abrir a porta, deparou com o rapaz diante dela, a virar o chapéu nas mãos, e ainda mais perturbada se sentiu quando ele disse que desejava entender-se com o Anacleto. Foi preciso chamá-la à realidade, repetindo o pedido com acento de ordem. A pardinha desapareceu no coredor e logo depois ouviu-se um pigarro e um pausado arrastar de chinelas. Era o dono da casa. Ao ver Frank em pé diante de sua porta, sungou para a testa os aros de chumbo e fixou no rapaz olhos piscos.

Anacleto devia andar pelos sessenta anos; era baixo, encardido, de cabelos cinzentos e raros. Usava calças de enfiar que caíam sobre as chinelas destripadas. A camisa de chita estava sempre aberta no peito, mostrando copiosa capilaridade; de um lado, as fraldas sungadas desciam por sobre a cinta de couro com fivela de metal. Uma das suas características era andar sempre a "vender farinha", como se dizia então.

Regozijou-se ao ver que seu competidor o procurava e num rápido pensamento resolveu deslumbrá-lo naquela visita.

- Seu Anacleto: eu estou tratando de instalar uma escola e preciso arrendar uma sala. Como me informaram que o senhor tem em sua casa uma sala desocupada, vim procurá-lo para ver se fazemos um acordo…

- Entre, para conversar.

Só então a porta se abriu de todo e Frank transpôs o limiar. Um cheiro de ervas fervidas em xarope entrou-lhe pelas narinas. Apesar do dia resplandecente, a casa estava na penumbra. Quando se habituou à escuridão, viu que se encontrava num largo corredor com portas sem folhas, de um lado para a sala de visitas e de outro para o quarto de dormir.

Móveis quase nenhuns. No quarto, aparecia a cama do casal, coberta por fina colcha de crivos sobre cobertor vermelho. Ao lado a cômoda, com três ordens de gavetas; sobre o paninho de ramagens que a cobria, via-se bugiganga colorida. No fundo, pousado sobre uma cantoneira, o oratório com suas flores e fitas e, dentro do nicho, perenemente a arder, a luz de uma lamparina. Pelas paredes, imagens, palmas bentas, o histórico véu de noivado já um tanto ruço pela fumaça e a poeira.

Na sala fronteira, justamente aquela em que Serelepe ficava o dia inteiro debruçada à janela, com o pequerrucho nos braços, havia um grande sofá de braços retorcidos para fora e assento esgarçado de palhinha amarela; dois consolos com vasos viúvos de corolas, folhinhas de parede, um ramo de flores de pano, já descoradas, e uma pequena estante onde apareciam algumas lombadas escuras.

Toda a casa era de chão batido, tornado negro com o tempo. A cozinha parecia o maior compartimento da residência. Era telha-vã, mostrando o esqueleto da cumeeira, das vigas, dos pés-direitos, dos caibros e das ripas. Mas tudo aquilo era negro como se fora pintado a alcatrão; o madeiramento estava revestido de uma grossa craca de picumã, e pelos cantos desciam teias de aranha que mais pareciam farrapos de crepe.

- Venha ver como se faz a minha garrafada…

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 5/6/1936 com o texto

12

Frank aproximou-se do fogão que tomava boa parte da cozinha; era construído de pedra, com chapa de ferro e provido de várias bocas-de-fogo. A fornalha estava atulhada de troncos, aveludados de musgos; os mais verdes chiavam e crepitavam, descochando cordas de fumaça. Lambido pelas labaredas, fervia um largo tacho de cobre, de bojo amolachado e reluzente, onde se apurava o xarope. Duas pretas da casa, de saias rodadas e ramalhudas, mas apenas de corpinho, desfaziam molhos de ervas, punhados de cascas, cipós cortados em rodelas, na calda de açúcar mascavo.

De tempo a tempo, a fervura inchava e uma onda ruiva que parecia cuspir queimaduras ameaçava escalar os bordos da vasilha. Então, uma das pretas tirava a escumadeira, que estava pendurada no canto da janela, e passava-a pelo espesso líquido, levantando resíduos negros e bolhas irisadas que atirava para o quintal. E a fervura abaixava no fundo do tacho.

Na mesa encardida, que tomava quase todo o outro lado da cozinha, alinhavam-se garrafas limpas,com rolhas de madeira, muito bem aparadas. Era nessas garrafas que Anacleto vendia o específico contra as perebas. E explicava:

- São rolhas de caixeta do brejo. Corto-as pelo minguante e entalho-as a canivete nos dias de chuva.

Naquele momento, defronte da casa, um viajante apeou do cavalo e bateu à porta com o cabo do relho. Serelepe, que andava se trançando pelas visitas, atendeu-o. Era um doente chegado de longe, trazido pela fama da garrafada que, como afirmava o boticário, corria mundo. Contavam-se curas assombrosas, milagres.

O enfermo era homem alto, magro, cor de azeitona, com um lenço vermelho, de ramagens, enrolado na cabeça, e pontas caídas nos ombros. Caminhava vagarosamente e empestava o ar com cheiro de botica. Parou na porta do corredor e saudou os dois homens que o esperavam ao fundo, perto do fogão. Anacleto caminhou para ele e cumulou-o de perguntas:

- Donde é vassuncê?

- De Parnaíba.

- E quem lhe falou no meu remédio?

- O Maneco da Bandeira do Divino.

- Sei quem é. Curei a filha, que tinha um cupim no joelho. Mas vamos ver isso…

O visitante arregaçou a calça e mostrou a canela avermelhada, com listas roxas, tendo ao meio uma crosta escura, como placa de terra. Anacleto abaixou-se e com uma unha comprida e suja raspou a craca. O doente torceu-se de dor.

- É um panelão. Mas com três garrafadas das minhas vassuncê estará bom dentro de pouco tempo. Quer levar as garrafas? São dois mil e quatrocentos.

- Pois que vá,  já tenho gasto tanto…

Enquanto Anacleto foi ao quarto buscar as garrafas já prontas, o viajante realizou a operação de tirar o dinheiro, amarrado numa das pontas de outro lenço que trazia no fundo da algibeira. Contou miudamente as moedas e deu-as a Anacleto, que por sua vez repetiu a contagem.

Depois que o doente se foi, entre votos de melhoras e de boa viagem, Anacleto levou Frank ao quarto dos fundos, que havia muitos anos se destinava a guardar arreios, palhas de milho, graxa de carro e móveis fora de uso. Tinha entrada livre, ao lado da casa, por um caminho de guanxumas que ia dar na cerca.

Frank agradou-se do compartimento: para transformar aquilo numa sala de aula, bem pouco precisaria. Já lá estavam a mesa e os mochos, embora alguns deles manquejassem. O boticário pediu-lhe mil e duzentos mensais pelo aluguel do quarto, uma extorsão; mas ele aceitou.

No dia seguinte, já havia ali um quadro negro pregado à parede, tinteiros, penas de pato, livros, cadernos de papel. Frank continuava a não pegar em dinheiro. Dava a lista do que precisava e quando algum dos alunos fazia questão de lhe dar uns cobres, tinha de acrescentar que era para as despesas da escola. Ele mandava o ofertante colocar as moedas numa cuia que se achava no alto, entre a parede e o telhado.

Dava lições metade do dia; os estudantes chegavam aos grupos de três e quatro e sentavam-se à porta, a recordar a matéria, enquanto outros recebiam explicações diante da pedra. No teto de telha-vã havia ninhos e os filhotes faziam um chiado ensurdecedor. Não raro, por esse motivo, ele cortava o fio da lição e se punha a rir, olhando para cima.

Então, pela claridade da janela, via-se a sua figura como num quadro: era de estatura mediana, cabelos louros, olhos azuis e, naquele tempo, uma barbinha rla que se adensava ao chegar ao queixo. Durante as aulas, andava sempre de mãos cruzadas sobre as costas, palmas abertas, dedos retesados. Falava descansadamente, empregando o mais que podia expressões paulistas. Quando alguém lhe perguntava pelo lugar da província em que havia nascido, mostrava-se contente por se haver de todo confundido com o nosso povo. Ao lado disso, quando o chamavam de Lamão, também não conseguia esconder um grande contentamento.

A escola prosseguiu até o fim do ano e os alunos já se preparavam para ir a São Paulo, prestar exames no Curso Anexo da Faculdade de Direito, quando alguém observou que, dessa maneira, iam perder o professor. Os estudantes não estavam dispostos a isso e, depois de cada um deles conversar com os pais, chegaram a uma conclusão: levar consigo o mestre.

Mas Frank, tão esquisito, desejaria ir para São Paulo? Consultaram-no e ele aceitou. A partida deveria dar-se logo depois.

Serelepe, meses atrás, quando soube que Julio ia morar naquele quarto, foi tomada de grande satisfação. Na hora em que o Anacleto a mandou retirar as velharias do compartimento e limpá-lo o melhor que pudesse, ele tomou da vassoura de piaçaba e pôs mão à obra. Deixou que nem um brinco. A seguir, sob as ordens de Frank, organizou a escolinha, tão rústica e bonita, a ponto dos estudantes que por lá passarem nunca mais se terem esquecido dela. Serelepe, todas as manhãs, levava uma caneca de café com biscoitos para o professor, que era muito dorminhoco.

Lia até tarde e, no dia seguinte, para acordar, era preciso a moça bater à porta com uma acha de lenha. Ela fazia-o a rir, um tanto penalizada, mas cumprindo ordens que ele próprio lhe havia dado. A verdade, porém, é que a paixão de Serelepe continuava na mesma; o alemão ignorava completamente aquele sentimento, embora ela lhe desse demonstrações e até mesmo lho tivesse dito logo no começo, quando Frank ainda trabalhava na Venda da Cobra.

Uma noite, Anacleto recebeu visitas. Quando Serelepe apareceu na varanda com a bandeja de café, ouviu esta frase inesperada: "Amanhã os moços vão para São Paulo e levam consigo o professor alemão". As xícaras tiniram na bandeja. As visitas pareceram gastar um ano para beber o café. Uma ansiedade angustiosa pesou-lhe no peito, como pedra. Assim que pôde, recolheu as xícaras, botou a bandeja na mesa da cozinha e correu para o quintal, a fim de perguntar a Frank se ele ia de fato para São Paulo. Mas, ao chegar na escola, já quando ia bater à porta, estacou. Não tinha forças para tanto. E ali ficou, banzando, entre o amor que sentia e a inutilidade de ir dizer-lhe que não a deixasse para sempre.

A noite estava que era um dia. As árvores dormiam. Não se ouvia nada, nem o aflar de uma asa perdida. O vago olor das flores silvestres embalsamava o ambiente. E Serelepe, não tendo forças para segui-lo, quis ao menos vê-lo pela última vez; acercou-se da porta e, pelo buraco da fechadura, espiou para dentro, na esperança de encontrá-lo à mesa, com um livro aberto à luz da vela de sebo…

Todos os móveis do quarto tinham sido amontoados a um canto. Frank, envergando uma camisola alvíssima que lhe chegava aos pés, foi ao canto do quadro e, tirando a pedra de giz, traçou no chão um grande círculo. Orientando-se pelos pontos cardeais, fez quatro pequenos círculos nas margens da circunferência, inscrevendo nomes nessas rodinhas. Depois, ao centro do grande círculo traçou um menor, rabiscando ainda qualquer coisa. Parecia um padre na missa. Acendeu quatro velas e, a dizer baixinho qualquer coisa, colocou-as em cruz nos pontos assinalados na circunferência. Desapareceu um momento da vista de Serelepe para voltar com um espadim debaixo do braço, a ponta para trás. Então, postando-se na roda do centro, começou a falar baixinho. Das velas subiam cordões de fumaça escura. Em pé, de braços cruzados, continuou a falar até que, de repente, tomando a espada, começou a espetar qualquer coisa que devia estar diante dele, ameaçando-o, mas que Serelepe não via.

Vencido o inimigo, fincou a espada no chão ao seu lado, talvez à espera de novo assalto, e começou a conversar em tom natural com alguém que devia estar ali, mas que ela também não via.

De repente, como assaltado à traição, deu um grito e levou a mão à espada, mas esta resvalou e foi cair fora do círculo, derrubando duas velas. Então, dentro do quarto parece que se fez o caos, porque as duas velas restantes também se apagaram e Serelepe passou a ouvir o barulho da luta de um homem, não contra outro homem, mas contra cem.

A moça deu um grito e caiu desmaiada junto à porta da escola. Nunca soube quanto tempo ali ficou. Pela madrugada, voltou para a casa do Anacleto e não mais quis ver o diabólico rapaz.

Dois dias depois, ao alvorecer, estudantes e professor partiram para São Paulo, em numerosa e alegre cavalgada.

XV – A cidade das névoas e das mantilhas

Depois de haverem jantado na povoação de Pinheiros, os viajantes montaram novamente e se fizeram a passo pelos altos do Caguaçu, em direção da cidade. Passaram por sítios e chácaras e,  já ao escurecer, encontraram os primeiros sobrados da Rua do Paredão. Desceram para o Piques. A Pirâmide, cuja cantaria ainda não havia sido escurecida pelo tempo, aparecia muito branca, debaixo de árvores esgalhadas e nuas. Ao lado, ficava o chafariz; da carranca de pedra descia um fio de água.

Estavam, afinal, na cidade, mas uma cidade de 11.000 almas, de casas velhas e compridas taipas, onde cerca de 300 estudantes, apesar da sua boa vontade, não bastavam para fazê-la alegre.

Ali os estudantes apearam para matar a sede. E ainda estavam a afrouxar os cigarros de palha quando viram aproximar-se alguns sentenciados que, dois a dois, ligados por grilhetas, acendiam os revérberos. Atravessaram a ponte sobre o Anhangabaú, chegaram à esquina de um velho sobrado, desceram o lampião por meio da cora que corria sobre carretilha e o acenderam. Depois daquela luzinha,a noite pareceu ficar mais escura.

É que naquele tempo, conta o velho Vieira Bueno, a iluminação pública era deficientíssima. "Uma enorme geringonça de ferro pendurada, pregada na parede de uma esquina, estendia por cima da rua um longo braço em cuja extremidade estava pendurado um lampião. Colocados de longe em longe e só nas ruas principais, a luz desses lampiões, alimentada com azeite de peixe, difundia uma claridade mortiça que só alumiava um pequeno espaço, projetando longas sombras movediças quando o vento os balouçava". E só eram acendidos quando a lua,  a lua enevoada das noites paulistanas, dava ponto.

Do Anhangabaú subia o coro melancólico da saparia.

Já era, pois, noite fechada quando os rapazes retomaram o caminho do centro; atravessaram a ponte, entraram na ladeira e subiram até o Largo do Ouvidor. Na esquina de baixo havia uma venda aberta, iluminada, com homens encostados no balcão e cavalos amarrados à porta. Julio Frank esteve para apear do cavalo, mas um dos companheiros aproximou-se e conseguiu demovê-lo dessa ideia, mostrando-lhe à direita, com a ponta do chicote:

- Venha ver a Academia!

Ele adiantou-se e, do fundo do Largo do Ouvidor, viu uma entrada de convento que, da torre para a esquerda, se estendia num prédio baixo de beiral mais escuro, com duas ordens de janelas. Diante da porta do convento era o Largo do Capim e, no meio desse pequeno largo, erguia-se a sombra de um cruzeiro, a cujos pés tremeluziam dezenas de velas.

Entrando na Rua de São José, passaram pela redação do Observador Constitucional. Frank voltou-se para trás e perguntou:

- Como se chamava o alemão que matou o Botas?

Ninguém sabia.

Cruzaram a Rua de Santo Antonio, que passava diante do convento, à direita, e prosseguiram em direção do pátio de São Bento. Mas, antes de chegar, apenas atravessada a Ladeira do Acú, pararam diante da casa de Joaquim Elias, que dava fundos para o Anhangabaú. A frente era baixa, com uma porta e três janelas; o fundo, assobradado.

Era uma das muitas "repúblicas" de estudantes. Alugada por um que podia dar ao proprietário as garantias exigidas, era sustentada mediante cotizações mensais: cada um dos hóspedes entrava com a sua parte, não só para pagar o aluguel, como também para a compra de mantimento e a paga à preta velha que se encarregava da cozinha.

Julio Frank vinha na companhia de estudantes sorocabanos, quase todos de famílias de prol, e a sua chegada já era esperada. Por isso, apenas apeou e passou as rédeas ao moleque que devia recolher o cavalo à cocheira, foi levado ao seu pequeno quarto, situado nos fundos.

Sobre a cama, estavam o robição de briche, as calças de ganga amarela, as meias de seda, os sapatos de fivela prateada e o chapéu alto de abas reviradas, que era o luxo dos acadêmicos. Experimentou. Tudo aquilo lhe ia que nem uma luva. Deu uns passos pelo quarto, mirou-se no espelho que se equilibrava sobre o lavatório e foi par a janela, a ver o que havia lá para os fundos.

Um quadro cheio de tristeza a que o coaxar das rãs ainda tornava mais lúgubre. Na noite viam-se distantes e raros os fogos-fátuos dos lampiões. Algumas portas e rótulas cerradas do Beco do Sapo, que lhe ficava debaixo da vista, deixavam aparecer fitas de claridade. Havia também diversas portas quebrando a escuridão, que deviam ser casas de negócio. À direita passava o córrego cujas águas se distinguiam apenas por serem mais escuras do que a noite. O resto era um casario baixo que ia rareando e desaparecendo à medida que se afastava.

Nesse ponto, um dos rapazes da "república", o Ourique, aliás Antonio Alexandrino Passos Ourique, chegou-se por detrás e assustou-o com a sua voz:

- Isso tudo é muito feio, mas quando a gente chega a conhecer acaba por gostar. Há mesmo os que nunca mais deixam esta cidade, e os que um dia se vão passam a vida inteira com saudades.

Debruçou-se também à janela e com um dedo sábio descreveu o que se via:

- Isto aqui é o que nós chamamos a Cidade Nova, não sei por quê. Ali, depois da Ladeira do Acú, segue a Ladeira de São João Baptista. Aquelas ruas que mal se veem são as do Tanque e de Santa Ephigenia. Há também a Rua Triste e a Rua Alegre que, como na vida, correm paralelamente. Lá está o Largo do Zuniga, onde nascem as águas más do Yacuba.

- E do outro lado?

- O centro habitado vai ali do Largo de São Bento até o Largo de Sâo Gonçalo; aqui da Rua de São José até a Rua de Santa Thereza, entre o Largo do Carmo e a Rua Tabatinguera. Mas o centro mesmo da cidade é ainda o Largo da Sé. O Pátio de São Francisco, onde ainda há pouco você devia ter visto a Academia, é rodeado por quarteirões cortados pela Rua do Jogo da Bola e pelo Beco da Casa Santa. Ali pelas imediações há ainda outra rua: a do Padre Capão. Depois, lá para cima, há a Rua da Glória, a Estrada do Carro que vai para Santo Amaro etc. etc….

- Passei por aqui no ano passado, mas não vi coisa alguma.

- Vamos sair um pouco?

- Vamos.

Lado a lado, como velhos amigos, Frank e Ourique saíram de casa, subiram a Ladeira de São João Baptista, cortaram a Rua de São Bento, ladearam uns casebres e entraram no pequeno Largo do Rosário, onde havia um chafariz. Depois, tomaram a Rua do Rosário dos Homens Pretos, em direção à Sé.

Muitas casas eram tão baixas que, nas procissões, as pessoas que estavam na Rua da Boa Vista viam dos sótãos, por cima dos telhados, os santos que passavam carregados nos andores.

Eram nove horas. Um sino quebrou o silêncio com lentas badaladas. Ao mesmo tempo, no Largo do Carmo, onde estava o quartel do Corpo de Permanentes, ouviu-se uma corneta. Era o toque de recolher. Como atendendo a essa ordem, começaram a aparecer por toda parte negros, mestiços, mulatos e homens do povo que, apressados, voltavam a suas casas. Alguns traziam lanterna. Aproveitando o desusado movimento, as quitandeiras nos degraus da Misericórdia começaram a apregoar seus bolinhos de mandioca puba e de lambari, cuscuz de bagre, pinhão cozido, cocada, geleia, pé-de-moleque…