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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 48f

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta novela foi publicada em 17 semanas consecutivas de 1936:

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10) página 3 de 22/5 11) página 3 de 29/5 12) página 3 de 05/6
13) página 3 de 12/6 14) página 3 de 19/6 15) página 3 de 26/6
16) página 3 de 03/7 17) página 3 de 10/7  

(material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

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A sombra de Julio Frank

Affonso Schmidt

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Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 3/7/1936 com o texto

16

Sobrevieram-lhe dores lancinantes nas costas e, depois de gemer e ofegar por algumas horas, pareceu entrar em calma.

A preta, que passava os dias a cozinhar e a lavar, quando chegava a noite, ia para o quarto do doente e ali ficava atenta aos seus gestos, dando-lhe remédios, cobrindo-o, apalpando-lhe os pés, que nunca mais haviam esquentado.

Na madrugada do dia 19 de junho, as dores cessaram, a febre amainou e uma animadora lucidez alumiou-lhe a fisionomia.

- Rita!

- Tô aqui, nhonhô.

Tomou-lhe das mãos pretas, retorcidas de reumatismo.

- Rita,ninguém lhe disse ainda, mas você é uma santa.

A preta ficou hirta, mas duas lágrimas correram pelo rosto.

- Chame os moços.

Ela afastou-se depressa, talvez para esconder o dó, e voltou com Ourique, Vieira Bueno, Ribas, Joaquim e Mariano Galvão.

- Então que é isso, Frank?

- O fim.

- Mas você está melhor...

- É a visita da saúde. Fechem aquela porta. Agora venham cá. Sentem-se por aí. Tenho a dizer-lhes que...

Contou-lhes então a história de Felipina, que em parte os rapazes já sabiam, e pediu-lhes que a fossem chamar. Ribas saiu apressadamente, para satisfazer ao pedido. E enquanto os demais esperavam pela jovem, falou-lhes da sua vida na Faculdade, da sua obra, esclarecendo-os sobre diversos pontos e, já com a voz apagada, recomendou-lhes a mais estreita solidariedade através dos anos.

Mais tarde, no quadro escuro da porta, apareceu Felipina embrulhada num xale, com mechas de fios de ouro a escorrerem pela testa pálida. No colo, trazia uma criança. Parou à porta, mas vendo-o assim prostrado no leito de morte, adiantou-se sem dizer palavra. Frank, com esforço, estendeu-lhe as mãos, depois falou:

- Minha boa amiga, chamei-a para dizer-lhe adeus...

Momentos depois prosseguiu:

- Pensei que seria melhor confiar a nossa pequena à família do Mariano. Já me entendi com ele a esse respeito. Ela será tratada como filha e você ficará livre, para viver nesse abandono em que vou deixá-la...

- Não.

- Mas, Felipina...

- Não, já disse.

Passaram a falar em alemão. Durante essa cena, os rapazes, discretamente, haviam-se afastado um a um. Momentos depois, a moça, talvez convencida pelos argumentos de Julio Frank, deixou a criança sentadinha ao pé da cama e saiu do quarto, com o xale pelo rosto, a soluçar convulsivamente. Os estudantes que se encontravam no corredor esconderam-se ainda mais na sombra; ela passou sem vê-los, ganhou a porta e seguiu pela Rua de São José.

Tendo adivinhado tudo, Mariano Galvão entrou no quarto, tomou a menina no colo, fê-la beijar o rosto imóvel do pai e levou-a consigo. Mas, à porta, voltou-se para o professor e perguntou:

- Como se chama?

- Barbara Julio Frank.

- Está bem: será mais uma irmãzinha em nossa casa.

E não pôde dizer mais nada.

Na rua havia magotes de estudantes. O céu estava baixo e escuro. O vento das várzeas sacudia as copas das árvores. Não chovia, mas dos larguíssimos beirais pingavam grossas gotas de garoa.

No seu leito, Frank entrava em delírio. Discutia com as sombras:

- Mas, Andorinha, por que foi que me traiu? Não, não foi por causa do dinheiro, foi pelo desgosto que você me causou, pela desilusão que senti dos homens. Não sabia que já tinha morrido. Coitado. Umas tesouradas na barriga. Mas que cabrinha é essa que o acompanha sempre? Não entendo, não entendo, não entendo...

Ou então:

- Pai Florencio! Pai Florencio! Ogun está batalhando com sua lança; venha dizer o segredo dos arixás!

Nova decaída: os olhos se perderam nas órbitas,o nariz afilou, a boca desceu nos cantos e pela testa de cera uma ruga foi escurecendo, escurecendo... Súbito, esforçou-se por sentar, olhando fixo para os pés da cama:

- Mas então vossa alteza é que é meu pai?

Caiu para trás e virou o rosto para o canto. Ourique entrava naquele momento; chegou-se a ele e passou-lhe a mão pela fronte. Depois, sentindo algo de estranho, debruçou sobre o leito e procurou ajeitar melhor o enfermo: achou-o largado. Com as mãos trêmulas, tomou a vela que ardia sobre a mesa e examinou-lhe o rosto: os olhos estavam extintos e o queixo começava a decair. Então, voltou-se para os colegas agrupados à porta, que já haviam suspeitado qualquer coisa, e disse-lhes com voz abafada:

- Foi-se!

Não disse mais, com um nó na garganta. Saiu de cabeça baixa para esconder os olhos molhados e entrou num quarto próximo, fechando-se por dentro, e aí, sem testemunhas, pôde dar largas ao pranto.

Na balbúrdia que se fez, os rapazes chamaram a preta velha, que não respondeu. Foram procurá-la e a encontraram na cozinha, sentada no pilão, com a cabeça metida entre os joelhos, a soluçar num choro humilde, dolorido, de criança ofendida.

Dali a um pouco ouviram-se umas topadas pelo corredor: era a gamela de lavar defuntos, a única que existia, guardada pelo sacristão Ponciano, na igreja da Boa Morte. Lavado e vestido, foi o corpo colocado na sala, sobre uma grande mesa, com quatro tocheiros a arder em volta.

A casa continuou aberta, como sem dono. Magotes de estudantes, de livros debaixo do braço, entravam e saíam. Na cozinha havia uma azáfama. Mulheres da vizinhança faziam café, e crianças, sentadas pelos cantos, brincavam com tampas de panela.

Junto ao cadáver ficaram os moços da intimidade do morto; entre esses, muitos, formados na primeira turma, já desempenhavam cargos de relevo, como o Mestrinho e o Pimenta Bueno. Os que não estavam presos por amizade mais estreita formavam rodas nos quartos, nos corredores e até mesmo na escada e aí, depois das conversas tristes, passavam aos fatos comuns e, por fim, chegavam às anedotas. Ouviam-se de quando em quando risotas abafadas.

Os Galvões, que embora jovens eram muito circunspectos e dispunham de meios, chamaram logo a si a tarefa de prestar ao professor as últimas homenagens. Então, na roda dos íntimos, começou-se a falar de como e onde Julio Frank seria enterrado. Disse alguém:

- Poderá ir para o cemitério da Glória.

- Não - disse o Ourique -, nosso professor e amigo não deverá ser enterrado no cemitério dos pobres, como os mendigos, os enforcados, os escravos e as peças. Acho que devemos dar-lhe condigna sepultura.

- Será difícil - objetou Antonio Joaquim Ribas - porque sendo ele de origem protestante não permitirão o enterramento numa igreja.

Nesse ponto, José Antonio Pimenta Bueno, que já havia iniciado a sua luminosa carreira e, de passagem por São Paulo, fora fazer uma última visita ao amigo, lembrou-se de uma certa noite, na Rua da Constituição, em que Julio Frank talvez por pilhéria, fizera uma melancólica profecia. Assim, de acordo com as palavras que ainda ecoavam em seus ouvidos, sugeriu:

- Vamos sepultá-lo na Faculdade; sei que ali existem outros mortos, do tempo em que ainda era convento.

A ideia foi logo aceita. Ourique seguiu em comissão à casa do dr. Brotero, na Rua das Flores, esquina Santa Thereza. O diretor interino da Faculdade, que por uma das suas caturrices embeiçara pelo estrangeiro, só então soube da sua morte e aprovou a ideia de sepultá-lo num dos pátios internos da Escola.

Brotero dividia os homens em amigos e inimigos; desconhecia a numerosa classe dos indiferentes. Aos amigos dava a camisa, se lha pedissem; aos inimigos movia guerra sem tréguas, passando a vida numa luta exaustiva. Foi assim que, com uma solicitude que Ourique estava longe de esperar, acompanhou-o à Rua de São José e se incorporou aos que, na sala, diante da mesa, velavam o cadáver. Por essa altura já se havia resolvido que o enterro se realizasse às 10 horas, depois do toque de recolher, como era costume.

A casa havia sido tomada pelos estudantes, e à discrição dos primeiros momentos sucedera a algazarra habitual dos velórios. Por pouco não virava festa.

O Ribas voltou ao Beco da Lapa, a fim de avisar a Felipina que Frank havia morrido, mas encontrou fechada a casa das rótulas verdes. Uma vizinha solícita pôs a cabeça para fora de sua rótula e informou que mãe e filha haviam partido para Santo Amaro, de mudança.

Ao anoitecer, sabedor de que os estudantes, com o consentimento do diretor interino da Faculdade, visto como o senador Vergueiro estava na Corte, iam inumar Julio Frank naquele estabelecimento, o bispo d. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade mandou avisar o dr. Brotero de que tal coisa não seria permitida. Ao saber dessa resolução da autoridade eclesiástica, o conselheiro teve um dos seus repentes e saiu quase a correr para a Rua Alegre, onde era situado o palácio episcopal.

Esse dr. Brotero, só por si, daria um livro. Nascera em Lisboa no ano de 1798, filho de um governador da África e sobrinho do grande botânico que tem estátua em Coimbra. Ali estudou e doutorou-se em Direito. Envolvendo-se em 1824 numa conspiração anti-miguelista, refugiou-se na Ilha do Fayal, onde se casou com d. Anna Dabney, nascida em Paris, de nobre família inglesa domiciliada em Boston. Como um seu tio, dr. Mamede, fosse médico do Paço Imperial e pessoa muito conceituada, não lhe foi difícil, ao que parece, obter, em 1827, a nomeação para primeiro lente da Faculdade de Direito de São Paulo, pelo mesmo decreto que nomeava Rendon diretor.

Sua figura encheu São Paulo durante cerca de quarenta anos. Era o que se poderia chamar um homem espinhento, mas boníssimo. No trato com as pessoas que dele se aproximavam fazia logo sentir essa particularidade. As suas lutas com Rendon, com Carneiro de Campos, com Balthazar Lisboa, até mesmo com os presidentes da Província, estão largamente documentadas. Nas austeras palavras de um ofício ou de um relatório ao governo ele armava conflitos. Com os estudantes e os empregados da Escola, então, nem se fala.

Uma vez o bedel Mendonça chegou a dizer-lhe:

- Senhor conselheiro, eu suplico a v. excia. que não me persiga: eu também sou maluco...

Essa versão de uma aduela de menos era corrente.

Dotado de exuberante verborragia, as suas lições eram comícios que dividiam a classe em prós e contras. Mas do meio para o fim ele se atrapalhava e dizia frases como esta, ao descrever um amanhecer no campo:

"O gado a saltar de galho em galho; os passarinhos a pastarem pelo campo".

Em 1856, quando o imperador esteve em São Paulo e a Academia se preparava para recebê-lo, o dr. Brotero, dirigindo os trabalhos, deu ordem ao Mendonça:

- Sr. imperador! Sr. imperador! Apague estas mendoncinhas das paredes que o Garatuja aí vem!

Em quase todas as frases intercalava um "por consequência", o que às vezes dava pitoresco e inesperado sentido ao que dizia.

Quando lhe subia a mostarda ao nariz, o conselheiro baralhava as palavras, dizendo, por exemplo, "questosa espinhão", por questão espinhosa. Os alunos, que sabiam disso, comentavam:

- Quando o Brotanga zero, bola as rocas...

O bispo conhecia-o de sobra e esperava a sua visita. Ambos portugueses, de sangue na guelra, andavam sempre de pontas, mas acabavam entendendo-se.

Chegando à casa do bispo, o conselheiro entrou pela porta armoriada. Ao lado, na sala, viu gente à espera. Lá estava a pesada mesa de jacarandá, finamente entalhada, sob os grandes livros de assentos. As cadeiras de altos espaldares de couro alinhavam-se na sombra, mostrando arabescos de pregaria dourada. Um arciprestre de cabelos brancos contava pousadamente qualquer coisa a coroinhas atentos. Objetos de culto resplandeciam sobre arcas lisas.

Com rápido olhar, inteirou-se de que o bispo não estava na sala e se um escravo vestido de amarelo com punhos agaloados de azul não o tivesse impedido, iria pelo corredor até à varanda, onde o príncipe da igreja fazia a sua refeição da tarde. Ao saber de quem se tratava, mandou entrar o diretor da Faculdade.

- Senhor conselheiro José Maria de Avellar Brotero, a sua presença sempre será agradável nesta casa e eu tomo a liberdade de convidá-lo a participar deste peru com farofas, que está uma delícia.

- Obrigado, senhor dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, mas o assunto que me traz é daqueles que exigem decisão e rapidez: tenho os minutos contados.

- Nesse caso, fale vossência.

- Estou certo de que o senhor bispo bem no sabe: trata-se do enterro do professor Julio Frank na Faculdade, a que vossência apôs o seu embargo.

- Pois está claro...

Brotero sentiu um repelão nos nervos, mas dominou-se.

- Com que então vossências da Faculdade querem enterrar nela o judeu?

- Ele não é judeu...

- Ou o huguenote, que para mim tanto se me dá.

- Também não professava a reforma.

- Ou ainda o pedreiro-livre (N. E.: pedreiro-livre é outro nome da Maçonaria), tenha lá o nome que tiver, mas o que vossência não quererá dizer-me é que ele era dos meus.

- Dos nossos, poderia vossência dizer.

- Aí está...

- Concordo com a pouca religiosidade do morto, contra quem não se pode articular ofensas à fé, mas ao contrário, uma doçura toda cristã, um esmoler como Nosso Senhor queria as almas.

- Isso não basta: ovelha tresmalhada enterra-se fora do aprisco.

Brotero sentiu outro repelão nos nervos.

- Mas nós pretendemos enterrá-lo na Faculdade e não na Igreja.

- Dá na mesma. Aquele chão é sagrado; já foi convento, já recebeu despojos de homens tementes a Deus e cujos ossos se sentiriam mal ao pé do herege.

- Mas eu sou o diretor da Faculdade...

- E eu sou o quinto bispo de São Paulo.

- Ainda que pese a vossência, eu o farei enterrar à sombra das arcadas!

O bispo, nos olhos injetados e nas mãos trêmulas de Brotero, viu que o conselheiro já não tinha mão em si e, antes que estalasse a "broterada", como se dizia então, tocou a sineta e uma preta apareceu com a bandeja de café.

- O conselheiro prefere café com muito ou com pouco açúcar?

Brotero sofria por conter-se.

- Pouco. Agradeço a vossência.

Engoliu nervosamente o café, estalou a língua, e mais apaziguado:

- Que diacho... Nós bem poderíamos entender-nos para evitar estes desaguisados... Pois eu, afinal, tenho a felicidade de contar-me entre as mais humildes ovelhas de vossência.

- Ovelha um tanto arisca, valha-me Deus!

E riu com gosto.

- Não haverá uma esperançazinha de entender-nos?

- Há: vossência manda o marrano para o cemitério dos pobres.

Brotero mostrou-se vencido; era o que mais desejava o bispo. Então, depois de haver-lhe quebrado a castanha, como havia prometido aos íntimos, mostrou-se mais conciliador:

- Vamos lá... Sei o que são essas coisas... Vossência tem os seus compromissos com a tal... Nunca chegaria a pronunciar semelhante nome... Pois enterre lá na sua escola o bangalafumengas, não como cristão, mas fazendo constar que, por ser huguenote não no receberam em sagrado...

- E vossência não se oporá?

- Ora, eu não tenho tempo para tratar de nonadas: ignorarei. Está tudo acabado.

Brotero, impulsivo, teria estrangulado o bispo dois minutos antes; mas ao ouvir aquelas palavras sentiu ímpetos de rojar a seus pés. Foi então o príncipe da cristandade que lhe encheu um copo de vinho e lho serviu, dizendo:

- Beba, conselheiro, que este é dos nossos e Deus lho descontará no Paraíso.

Era a permissão para que Julio Frank fosse enterrado na Faculdade; soube-se que houvera um bate-barbas entre o diretor interino e o bispo, mas ninguém até hoje poderia contar com precisão como aquilo foi. A verdade, no entanto, é que o professor de História pôde ali ser enterrado nessa noite, não por protestante, mas apesar de protestante.

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 10/7/1936 com o texto

17

XX - Epílogo

Já noite fechada, o dr. Brotero ainda não tinha voltado da casa do bispo e os rapazes que velavam o morto, por não saberem o destino que lhe deviam dar, mostravam-se apreensivos. A casa tinha sido tomada pelos estudantes. Uns entravam, ouros saíam. Mais parecia abarracamento de recrutas.

O quarto em que Julio Frank havia vivido muitos anos e cerrado os olhos à luz do mundo achava-se fechado. Em certo momento, quiseram os amigos lá entrar e não o conseguiram. A chave estava por dentro. Alguém, portanto, lá se havia encerrado. Quem seria? Que estaria fazendo? Uma aguda curiosidade entrou de espicaçar os estudantes. Estevam de Rezende, mais inquieto do que os outros, arrastou um console até a porta, trepou sobre ele e espiou pela bandeira (N. E.: parte superior das portas antigas, geralmente provida de vidro ou abertura para ventilação do aposento) a que faltavam vidros. Em baixo, de nariz para o ar, a súcia esperava o resultado. Nem bem espiou, perguntaram-lhe logo:

- Quem é?

- É o Ourique.

- Que faz ele, fechado por dentro?

- Não sei.

- Está dormindo?

- Não. Vejo-o à luz de uma vela; está sentado à mesa, a pena de pato em punho, e vergado sobre o papel escreve linhas tortas que não chegam ao fim da página.

Houve um sussurro na súcia.

- Agora, que faz ele?

- Olha para cima, como a procurar palavras escritas no teto: faz caretas.

Novos comentários, em voz baixa.

- Agora ele abriu a mão e vai batendo com os dedos, um por um, sobre a mesa, como a contar qualquer coisa que não existe. Repete palavras a meia voz...

Embaixo, discutia-se o caso. Surgindo mesmo entre os rapazes a suspeita de que o Ouriques houvesse ensandecido, pediram ao Rezende o interrogasse, a fim de que, se fosse verdade aquilo, lhe prestassem auxílio. Então, botando a cabeça pelo buraco da bandeira, o Rezende chamou:

- Ourique!

O interpelado, lá dentro, deu um pulo e espiou para a cama onde havia morrido Frank e na qual ainda se notava a forma de um corpo sobre o colchão amassado. Cheio de susto, olhou em roda de si e, como nada justificasse ter ouvido alto e próximo o seu  nome, ia para levar a mão trêmula à chave, quando Rezende, sempre lá de cima, insistiu:

- Você está sentindo-se mal?

Só então o colega o viu.

- Ora bolas, era você? Que mal, que nada...

- Mas então que fazia naquela suspeita atitude?

- Eu? Olhe...

Mostrou-lhe a página escrita.

- Que é isso?

- São versos.

Nesse momento, chegava entre aclamações um emissário do dr. Brotero com a autorização de enterrar Julio Frank num pátio interno da Faculdade, acrescentando que para isso estavam sendo tomadas providências. Ao mesmo tempo, emergiu do corredor, alumiado por um candeeiro suspenso ao teto, o rabecão da Misericórdia, caixão preto no qual era conduzido o defunto até a beira da cova e que, depois de descarregar o fardo, voltava para a Santa Casa.

A sala estava quente e abafada; o calor e o fumo das tochas, misturados ao odor da cera e às mil exalações da morte, davam tonturas. Mestrinho, já pouco habituado àquelas coisas que iam ficando muito remotas no seu passado, foi para a janela. A noite estava escura como breu e na esquina da ladeira ardia o único lampião da vizinhança. Não se via vivalma. E ainda estava nessa melancólica postura quando lá para as bandas do colégio se ouviu, remoto e grave, o prolongado toque de recolher. Ao mesmo tempo, a janela do Pires da Mota, na esquina do Largo de São Bento, onde ainda havia um pouco de luz, apagou-se.

Dali a pouco, começaram a sair da "república" estudantes empunhando tocheiros. Contou-os: dez, vinte, quarenta...

Ao meio deles, carregado por seis dos mais fortes, desembocou da porta o rabecão da Misericórdia. Após pequena parada, o cortejo encaminhou-se para a banda da Ladeira de São João Baptista e de lá seguiu pelas barrocas da Rua São José. O vento do Anhangabaú deitava e espichava as chamas, torcendo cordas de fumo.

Prosseguiu lento e silencioso até Santo Antonio e de lá para o Ouvidor. À passagem, em toda a extensão do caminho, os sapos saltavam entre as pernas dos estudantes; bichos assustados barafustavam na capoeira dos terrenos abertos e, pelas hortas cercadas de pau-a-pique, os cachorros davam uivos lancinantes.

Chegaram ao Largo de São Francisco. A porta da igreja, que era a serventia comum da Faculdade, estava trancada. Viraram então para a esquerda, encaminharam-se para as portas do Beco da Casa Sana e por elas desceram ao escuro corredor em que morcegos afloravam com as asas à cara dos estudantes, ou se batiam pelas paredes, como petecas. Assim, o cortejo chegou ao "claustro mais íntimo da Faculdade", onde, à luz das lanternas, dois pretos sem camisas, lavados de suor, acabavam de abrir a cova. Aí, o morto foi tirado da caixa e estendido sobre a terra solta que se amontoava no chão. Estava embrulhado num lençol ea luz parecia dar-lhe movimentos. Desimpedidos, os gatos pingados, fartos de ver aquilo, tomaram do rabecão e se dissolveram na noite.

Galvão perguntou:

- Vocês acham que já se pode enterrar?

Foi quando Ourique, encostado à muralha, levantou a mão, pedindo a palavra. Todos se voltaram para ele. Estava pálido, com os longos cabelos a escorrer pelo rosto e, a cada gesto que fazia, a ampla capa preta acompanhava o braço. A sombra dançava atrás dele, na parede. Declamou uma longa nenia, ora lamentando a perda do amigo, ora invocando os filósofos seus familiares. Em certo ponto fazia mesmo amarga referência às disposições do bispo:

Ilustre Blumenbach, o teu amigo,

O sábio Julio, o Julio sem igual,

Existe no jazigo;

E da ciência a estrada, eis seu fanal!

Morreu desconhecido, e do honzo a fanática virtude

Não quis, compadecida,

Dar-lhe asilo sagrado ao ataúde

 

Mas, que sepulcro existe mais ditoso

Que nossos corações?

Que lugar mais sagrado, mais honroso,

Que cantos, que aspersões,

Equivalem ao pranto, aos ais, ao luto!

E negaram-lhe os homens tal tributo!

Oh! não! Que infâmia era,

Nem os humanos têm alma tão fera!

 

Oh! tu, Julio, feliz, benquisto Julio,

Que desfrutas na plácida mansão,

De seres virtuoso

Divinal compensação

Acolhe os sentimentos de amizade,

De respeito e de amor, com que teu nome

À sã posteridade

Há de ser transmitido com renome!

Terminada a poesia, os colegas foram levar-lhe um silencioso aperto de mão. Alguns chegaram mesmo a abraçá-lo. Nesse ínterim, os coveiros deitaram o corpo de Frank ao fundo da cova e começaram a cobri-lo com pazadas de tera. Ouvia-se o rascar da ferramenta no chão vidrado, seguido do pof pof característico dos torrões amolgando a carne morta que se fizera cera.

Em grupos, os rapazes foram saindo e perdendo-se ao Beco da Santa Casa, povoado de sapos.

Os últimos, depois de fazerem o mesmo, alcançaram o Largo de São Francisco e ficaram debaixo do lampião pendurado à esquina. Cavaqueavam sobre coisas alheias à morte. Mas, de um momento para outro, no meio do silêncio imperturbável daquela hora, ouviram com arrepios a toada característica com que os escravos, alta noite, enterravam os mortos; repetiam uma melopeia cadenciando-a com o bater da mão-de-pilão sobre a terra fofa:

Zóio que tanto viu,

Zi boca que tanto falô,

Que tanto comeu,

Zi corpo que trabaiô

Zi perna que andô

Zi pé que pisô

Zi braço que abraçô,

Zi coração que gostô

Que bateu

E zi'squeeu...

Os três rapazes sabiam do que se tratava, pois esse era hábito comum na cidade; mas naquela noite, depois de tantas emoções, produziu-lhes tal angústia que eles atiraram a capa para o ombro, puxaram o chapéu à frente e lá se foram, atravessando o largo, para as bandas do Ouvidor e do Piques, na esperança, talvez, de encontrar uma serenata que lhes desanuviasse a alma.

***

E o tempo se foi escoando. Na cadeira de História e Geografia, do Curso Anexo, Julio Frank foi substituído pelo seu ex-aluno Antonio Joaquim Ribas. Felipina, levada por sua mãe para Santo Amaro, casou-se ali com um bravo carpinteiro alemão, tendo muitos filhos. Barbara, acolhida como filha na casa dos Galvões, recebeu primorosa educação.

Certo dia, o Mendonça ficou seriamente atrapalhado; é que Joaquim e Julio Mariano apareceram na Faculdade com o retrato de Frank, pintado a óleo por um artista, sob indicações muito justas dos amigos. Depois de várias consultas, o retrato foi colocado na sala do diretor, de onde com o tempo passou para a de leitura da Biblioteca, onde, entre muitos outros, ainda se encontra.

E mais atrapalhado ficou o Mendonça quando pelas portas da Faculdade começaram a entrar as peças de um túmulo que, para o tempo, representava coisa nunca vista. Ainda lá o vemos. É um catafalco sobre plataforma quadrilátera, à qual dão acesso alguns degraus, encimado por um obelisco de cerca de quatro metros de altura. Todo o monumento, de cantaria, está amparado por gradil de ferro preso nos ângulos a quatro pilastras, adornadas por simbólicos mochos. Numa das faces do pedestal ainda hoje se pode ler o dístico>

HIC JACET JULIUS FRANK - IN HAC PAULOPOL. ACADEM. PUBL. PROF. - NATUS GOTHAE - ANN MDCCCIX - OBIIT XIX JUNII ANN. MDCCCXLI - AETATE SUAE XXXII - SIT EI TERRA LEVIS

Fica situado defronte da sala, hoje reformada, em que ele lecionava. A obra custou 4:000$000, soma considerável ainda hoje para bolsas de estudantes e muito mais naquela época, em que boa parte deles era composta de pensionistas gratuitos dos conventos, das famílias abastadas ou que de todo não contavam meios de subsistência.

Conta-se que muitos anos depois, ao cair da tarde, um padre chegou à Escola e, entrando pelo Beco da Casa Santa, tomou o corredor e foi ter ao pátio onde se encontra o túmulo. Diante do monumento de cantaria, ajoelhou-se, concentrou-se e depois deu a bênção ao morto que ali se ia pouco a pouco transformando em pó.

Era o padre Ourique. Depois de formar-se pelo Gabinete Topográfico, precursor da Escola de Engenharia, acabara recebendo ordens e, talvez, movido pela saudade daquele que tanto estimara, não resistiu ao desejo de levar-lhe as únicas coisas que lhe podia oferecer: lágrimas e bênçãos.

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 26/6/1936 com o texto

Bem tombado: Túmulo de Júlio Frank

Página na Internet da Secretaria da Cultura/Governo do Estado de São Paulo - consulta em 9/8/2012 - com o erro na data de nascimento, que foi 1808 e não 1809 como consta no túmulo:

Imagem: Túmulo de Júlio Frank, foto na página da Secretaria de Estado da Cultura de S. Paulo

Localização: Largo de São Francisco, s/n

Número do Processo: 20320/77

Resolução de Tombamento: Resolução de 17/04/1978

Publicação do Diário Oficial
  •  Poder Executivo, Seção I, 18.04.1978, pg 55 

    Livro do Tombo Histórico: inscrição nº 118, p. 18, 28/06/1979

    O túmulo de Júlio Frank, em estilo neoclássico, encontra-se no pátio interno da Faculdade de Direito, do Largo de São Francisco. Júlio Frank nasceu na Saxônia em 1809 e se transferiu para o Brasil no final do Primeiro Reinado. Foi sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor da Faculdade de Direito e grande incentivador dos movimentos de cunho liberal. Fundou a sociedade secreta Burschenschaft, conhecida como "Bucha", por volta de 1834, marcada por forte influência liberal, abolicionista e republicana. Naturalizado brasileiro, o protestante Júlio Frank, que morreu vitimado por forte pneumonia em 1841, não pôde ser enterrado nos cemitérios existentes na cidade que pertenciam à igreja católica. Este fato sensibilizou os amigos e alunos que conseguiram sepultá-lo em um dos pátios da faculdade e ainda custearam a execução do seu túmulo.

    Fonte Julita Scarano 
  • Imagem: Túmulo de Júlio Frank, foto na página da Secretaria de Estado da Cultura de S. Paulo

    Bucha (Burschenschaft):

    a sociedade secreta fundada por Julio Frank

    A Bucha era uma sociedade secreta, liberal e filantrópica que esposava idéias liberais e republicanas. A sociedade tinha então uma estrutura bem definida e funcionava sob a liderança de um "chaveiro" (pessoa que detinha maior poder), apoiado por um "Conselho de Apóstolos" e um "Conselho dos Invisíveis". O ritual de admissão de um candidato era como de um clube fechado. Para o ingresso na sociedade, era necessário que a admissão fosse proposta por outros membros e, uma vez aceito, o novo "bucheiro" deveria pagar mensalidades proporcionais à sua hierarquia. A hierarquia, começando do nível mais baixo, estruturava-se em "catecúmenos", "crentes" e "apóstolos" (estes no total de 12, considerados membros mais importantes). O "bucheiro" iniciado deveria fazer o seguinte juramento: "Juro pela minha honra jamais revelar a quem quer que seja o que me vai ser confiado hoje. Serei o mais infame dos homens se faltar a esse meu juramento".

    Consta que a "Bucha" funcionou por muitos decênios e que congregou uma série de políticos e intelectuais. Seu êxito inspirou a criação da Tugendbund na Faculdade de Direito do Recife; da Landmanschaft (1895), na Escola Politécnica de São Paulo; e da Jugendschaft (1913), na Faculdade de Medicina.

    Diversos membros da Bucha tiveram enorme influência nos acontecimentos políticos ocorridos a partir do séc. XIX. Entre os 133 participantes da Convenção de Itu, em 1873, que resultou na criação do Partido Republicano Paulista, predominavam bucheiros como Campos Salles, Francisco Glicério, Américo de Campos e Rangel Pestana. Esses últimos foram, ao lado de Júlio de Mesquita, os fundadores do jornal O Estado de S. Paulo, que foi também uma espécie de órgão oficial da Bucha. Consta que Júlio de Mesquita Filho foi "chaveiro" da Bucha.

    A famosa Comissão dos Cinco, encarregada de elaborar o anteprojeto da Constituição republicana, tinha entre seus membros três "bucheiros", Saldanha Marinho, Américo Brasiliense e Santos Werneck. Essa informação segundo Afonso Arinos de Melo Franco (também bucheiro e filho de bucheiro), na biografia que escreveu sobre o presidente Rodrigues Alves. Os três ministros civis mais proeminentes do governo provisório encabeçado pelo marechal Deodoro da Fonseca eram da Bucha: Ruy Barbosa (Fazenda), Campos Salles (Justiça) e Quintino Bocaiúva (Negócios Estrangeiros). Além disso, também foram bucheiros na República do café com leite, os presidentes paulistas Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Washington Luís e Júlio Prestes, eleito em 1930 e que não chegou a assumir, assim como os presidentes mineiros Afonso Pena, Wenceslau Braz e Arthur Bernardes.

    Fonte: Wikipedia (consulta em 9/8/2012)

    Imagem: reprodução desenhada do retrato a óleo de Julio Frank encomendado pelos estudantes seus amigos e entregue à Escola Anexa da Faculdade de São Francisco, conforme apresentada na página 21 do vol. 3 da História Secreta do Brasil, de Gustavo Barroso (Porto Alegre/RS: 1993, 1ª reedição, Revisão Editora Ltda. - Conferindo e Divulgando a História (consulta: 9/8/2012)

     

    Imagem: o retrato de Julio Frank, no site a ele dedicado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pela sua Associação dos Antigos Alunos (consulta: 9/8/2012)