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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 48c

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta novela foi publicada em 17 semanas consecutivas de 1936:

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(material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

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A sombra de Julio Frank

Affonso Schmidt

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Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 1/5/1936 com o texto

7

Na sua frente, sentado à mesa, de costas para a janela da rua e visivelmente à espera da pessoa cuja aproximação acompanhava pelo ouvido desde a porta da rua, estava Herr Schwartz. Não podia deixar de ser ele. Era um velho de cara redonda, cercada de um colar de barba grisalha; o cabelo, que começava depois da calva, erguia-se em famoso topete. Vestia rabona cor de café e tinha o pescoço envolto numa gravata de seda de três voltas. A pena de pato aparecia por trás da orelha, com a aguçada ponta para a frente. Enquanto esperava, ia calmamente limpando os óculos de aros de chumbo, grandes e redondos, no lenço tabaqueiro.

- Que quer?

- Trago-lhe esta carta da parte de…

- Ah! Sim… como vai o conselheiro?

- Dando tratos às Musas.

- É o seu fraco – e riu, sem graça.

Schwartz recebeu a missiva, quebrou o sinete verde e leu-a pachorrentamente, até mesmo as saudações protocolares abreviadas. Depois, fincou os olhos em Frank e começou a fazer-lhe perguntas desnecessárias, naturalmente par assegurar-se de que não havia engano de pessoa:

- Como é mesmo o seu nome?

- Julio Frank.

- Judeu?

- Não: meus pais estão ao serviço da Corte de Gotha.

- Estudante?

- Sim, senhor.

- Entrou em alguma sarrafuscada?

Frank sorriu discretamente.

- Agora quer mudar de clima, hein?

Novo sorriso.

- Está bem.

O velho chamou por um nome qualquer. Um sujeito ruivo, comido pelas sardas, espiou de trás do monte de caixas. Então, recomendou-lhe que conduzisse a Frank e o apresentasse em seu nome ao comandante do barco que ia sair nessa mesma tarde, para transportá-lo até o Rio de Janeiro. O estudante estendeu-lhe a mão, mas Schwartz estava ocupado a cavar uma pitada esquiva no fundo da boceta de rapé.

E os dois jovens se perderam atrás da porta, na treva úmida, que era durante o dia o ambiente da "Vaca Lunada".

Em St. Pauli, o casario escuro se abria diante do rio coalhado de grandes e pequenas embarcações. O homem ruivo levou-o até a beira da água, onde se empilhavam mercadorias. Eram fardos de fazendas, caias de ferragens, objetos de louça e de vidro, tabaco, bebidas e tudo quanto a longínqua América do Sul comprava aos mercadores da cidade livre de Hamburgo.

Apresentou-o ao comandante. Chamava-se Keller, tinha a cabeça envolta num lenço de ramagens e quando falava parecia que a ponta do nariz ia tocar no queixo de rabeca. Diante das palavras do ruivo, Keller inspecionou-o de alto a baixo e como o resultado fosse favorável, deu-lhe uma palmada amistosa nas costas:

- Estudante?

- Sim.

- Comprometido?

- Um pouco.

- Em Jena?

- Não; em Goettingue.

- Está bem. Já viajou?

- Nunca.

- Vai gostar. Mas sabe o que o espera?

- Mais ou menos.

- Calor, mosquitos, febre, varíola, escarlatina, uma facada por causa de uma negra…

O estudante pareceu gostar do programa. Então, como um escaler estivesse lotado e pronto para desatracar, Keller mandou que ele embarcasse. Foi assim que Julio Frank, numa tarde de outubro, quando os ventos do Mar do Norte varriam as folhas que o outono espalhava à beira dos bastiões, embarcou para o Brasil.

O escaler penetrou na floresta de mastros e foi atracar junto ao costado de um velho lugre. À meia nau, havia uma escada de corda e um braço de verga que servia de guindaste.

Enquanto a mercadoria era metida na lona e a lingada era içada para o convés, Frank entreteve-se em examinar o navio em que devia seguir viagem. Chamava-se Alsterbeck, como, de passagem, vira na popa, em letras brancas. Veleiro de linhas pesadas, para correr aventura nos mares do Sul. Na proa, sobre o gurupês, havia uma ondina branca, com as mãos postas na nuca. A seus pés, um tritão em forma de crescente. O casco do navio era coberto de grandes chapas de cobre, unidas por fileiras de rebites. Havia muitos anos fora pintado de uma cor cinzenta, mas as junturas das placas estavam azinhavradas, formando listas verticais de cor escura, que morriam na água. No alto, sobre os bordos, apareciam punhos de vergas. E tudo isso balouçava docemente às aragens que enrugavam as águas do rio.

- Ó lá de baixo! Você sobe ou não sobe?

- Está à espera de que o vão buscar?

Ouviram-se grandes risadas. Eram uns homens que fumavam debruçados na amurada. Frank encalistrou com a risota e se pôs a subir canhestramente pela escadinha de cordas. A operação era mais difícil do que se lhe afigurava. Mas era moço. Tinha uns pulsos sólidos. Fez toda sua força e subiu, chegando lá acima a botar a alma pela boca. Viu-se logo numa roda de marujos alegres e que lhe davam punhadas nas costas como se fossem velhos amigos. No mar, era assim: o convés irmanava os homens com maior facilidade que o leite materno. Deram-lhe logo a maca, o canjirão e o prato de folha. E ele se perdeu entre os moços de bordo.

A tarde estava de um azul pálido quando o comandante deu ordens para levantar as amarras. Os marinheiros subiram como gatos pelas escadinhas das vergas, até os joanetes, largando pano, e breve, com um ruído de correntes que entram pelos escovéns e se enrolam no paiol da amarra, o navio girou um pouco sobre si mesmo e foi descendo o rio. Das outras embarcações partiram gritos de boa viagem e o Alsterbeck descia por entre as velhas construções ribeirinhas, oscilava às primeiras marolas e se perdia em direção do Mar do Norte, cujas águas salobras deveria encontrar a uns vinte quilômetros.

Depois anoiteceu. Uma lanterna subiu para o topo da mezena. E alta noite, quando Frank acordou, tinha sonhado que estava comendo toucinho cru. E quanto mais comia, mais enjoava. Foi o tempo de correr para a amurada e destripar conscienciosamente o seu mico.

IX - A vida de bordo

A longa viagem foi das melhores, cumprindo o veleiro a mor parte da derrota com ventos propícios e mar chão. Somente cá em baixo, depois da linha equatorial, sobrevieram ponteiros pela noite e o Alsterbeck teve de bordejar, de gávea baixa e papa-figos. A água se encarneirou e nos movimentos de arfagem a crista dos banzeiros cobria de escuma o convés. Mas foi obra de poucas horas: com o amadurecer da manhã, os ventos amainaram, mudando-se em aragens de feição, e o lugre foi docemente conduzido por um mar plano como se sobre ele houvessem vazado pipas de azeite.

Julio Frank, não obstante, fez má viagem. À partida de Hamburgo seguiram-se dias de torturante enjoo. Mal se havia reposto, começaram as exigências do mestre, que convindo em transportá-lo ao Rio de Janeiro, a pedido do fornecedor de bordo, subentendera pesadas condições, reservando ao passageiro pesados trabalhos de faxina.

Ainda o sol andava pela casa de Deus e já o mestre ia acordá-lo com palavras que pareciam pedras, metendo-lhe nas mãos endurecidas pelo frio o cabo de uma vassoura, para que baldeasse o convés. Ele subia para a coberta, a tiritar, com as calças arregaçadas até os joelhos e sem camisa, que a sua estava em frangalhos. Ali, espalhava pelo chão punhados de areia grossa e, tomando de um balde, ia colher água salgada que jorrava das mangueiras, ao encontro da amurada, para despejá-la em todos os sentidos, no pavimento. Então, retomava a vassoura e punha-se a esfregar tábua por tábua, até que ficassem espelhantes como para uma festa.

As mãos se lhe empolaram de calos de água que, com o esforço, viraram outras tantas feridas. Passava todo o tempo de mãos fechadas, sem poder abri-las, nem mesmo para pegar numa daquelas bolachas que mais pareciam rodelas de madeira.

Chegou mesmo a hora em que mais doce lhe pareceu o castigo correspondente a uma recusa, do que a submissão a tal regime. Na manhã seguinte, quando o mestre lhe apareceu à beira da tarimba com a ordem e a vassoura, mostrou-lhe as mãos enclavinhadas e disse que não podia fazer a lavagem. A cólera daquele homem endurecido explodiu. O estudante não havia imaginado que à sua primeira recusa desabasse tamanha tempestade. Mas estava por tudo. E como continuasse a recalcitrar, mostrando as mãos deformadas, que sangravam a qualquer movimento, o mestre correu à cabina do comandante e tais coisas certamente lhe disse que, à volta, trazia ordem de degradá-lo no porão.

- Menos mal… - pensou o estudante, descendo a escada escorregadia à frente do marinheiro.

Lá em baixo, quase às apalpadelas, caminharam para a roda-de-proa e, chegando a uma porta baixa e estreita, abriu-a, atirou o rapaz para dentro e fechou-a novamente à chave. Frank deu dois passos e ficou em pé logo adiante, na esperança de acostumar-se à falta de luz para melhor se orientar. Foi bem difícil! Por pouco que o navio balouçasse, ali, à proa, se sentia mais do quee em outro ponto.

Quase não se podia suster de pé e a cada balanço era atirado para a frente, num chão que lhe fugia, cortado e recortado pelo madeiramento do cavername. Ao alto furava a treva o disco luminoso de uma vigia, mas essa claridade só servia para acentuar a treva da prisão. O ar que respirava era escasso, quente, envenenado de salsugem. Assim mesmo, procurou deitar-se o melhor que pôde, instando para reconciliar o sono tão brutamente interrompido.

Por mais que o cenário o tivesse impressionado, acabou por convir que ainda assim a vida ali era melhor do que passar horas esfregando a carne-viva das mãos no aro do balde e no cabo da vassoura. E nisso pensava quando os olhos se lhe cerraram e pouco a pouco se foi passando da vigília para o sono…

Ainda a dormir, deu um grito: sentira que dentes finos e aguçados tinham começado a comer-lhe a barriga de uma perna. Apalpou o lugar ofendido e sentiu nos dedos a umidade viscosa e quente do sangue. Percebeu ruídos leves, deslizantes, quase imperceptíveis, que se perderam no extremo da proa. Ao mesmo tempo, no móvel disco de ouro que a espia atirava sobre o fundo do porão, viu passar de fugida um animal escuro e rasteiro. Era uma ratazana que ali vivia, talvez o único ser vivo daquela noite, que havia sido criada juntamente com o navio, na mesma hora em que, no estaleiro de Hamburgo bateram os últimos curvatões da proa.

Horas depois, já um tanto habituado à treva, observou que essa ratazana era alentada e magra a ponto de se tornar irreconhecível. Deslizava incessantemente pelos cantos, arrastando a cauda, que era do mesmo comprimento do corpo. De quando em quando sentava-se nas patas traseiras e punha-se a espreitá-lo, de olhar guloso. Era ele imobilizar-se num momento e ela se aproximava, esfregando o focinho gélido nas suas pernas nuas. Dava-lhe um pontapé, atirando-a para longe, e a cena interrompia para recomeçar logo depois.

Tinha perdido a noção das horas. Não conseguia fazer cálculo aproximado do tempo que ali estava encerrado. Veio a sede. Veio a fome. Sentia brasas na garganta e uma dor pesada no estômago, dor que ia e voltava, como a assinalar as horas das refeições que não fazia. Mais adiante, um suorzinho gelado umedeceu-lhe as frontes e entrou numa espécie de modorra de que só despertava para atirar pontapés à ratazana.

Uma hora de um dia qualquer, a porta abriu-se e o mestre apareceu: trazia-lhe a malfadada vassoura e ele a aceitou de boamente, sem tugir nem mugir. Subindo à coberta, viu que amanhecia. A caixa de areia tinha sido levada para o convés e as mangueiras jorravam água do mar. Então, com uma energia de que nunca se julgaria capaz, retomou o trabalho com fúria, ensanguentando as mãos. Mas o ódio pelo mestre do barco, esse lhe ficaria espetado no coração, como um espinho.

Foi aquela a sua vida durante cerca de dois meses, que tanto durou o resto da viagem. O mestre, que se tornara seu solerte inimigo, sem que para tal houvesse motivo, inventou novos trabalhos, reputados ligeiros, como besuntar de graxa os gualdropes, elo para elo, ou desfazer para refazer os rolos de viradores. E nessa faina pesada, depois da qual só tinha fôlego para dormir, caindo no sono como pedra em poço, foi assistindo, como único aprazimento daquela vida, à mutação rápida de cenário, das cinzas do Mar do Norte à palheta borrada do Equador, do frio anavalhante da Europa batida pelo inverno à torreira dos trópicos ignizados pelo sol.

Mas, ainda assim, surdiam rixas a bordo e quando o mestre surgia, topava Julio engalfinhado com o cozinheiro na claridade encardida do paiol da bolacha. À fama de madraço acrescentava a de querençoso e brigão. Mas, quando certa manhã de janeiro, sob um céu pesado de cúmulus, que semelhavam grandes massas arredondadas de algodão debruadas de ouro pelo sol, o navio entrou pela baía, ele julgou que havia chegado ao cabo de seus padecimentos. Teve um profundo suspiro. Mas, nesse ínterim, sentiu fundo a ponta daquele ódio do mestre, que lhe feria o coração. Foi procurar o perseguidor. Ele estava chefiando os homens que aparelhavam a vera grande em guindaste para a descarga. Plantou-se diante do marujo e perguntou-lhe:

- Então, chegamos?

- Como vê…

- Pois então, tome lá!

E atirou naquelas bochechas polpudas uma tão famosa bofetada, que o mestre deu dois passos para trás e caiu sentado num monte de cordas. Foi uma bulha. Os seus homens se atiraram contra o estudante e moeram-no de socos, recolhendo-o novamente no porão; dessa vez de pernas e braços amarrados, de modo a não poder mover-se. Dali a pouco, descida a tampa do tombadilho, fechada a porta da proa, começou a sua luta com a ratazana.

A princípio, o bicho fugia todas as vezes que ele, mesmo deitado e amarrado, fazia um brusco movimento com o corpo. Mas, pouco a pouco, deu mostras de compreender que tais movimentos não chegavam a ser uma defesa e se foi desacovardando, tornando-se mais agressivo, a ponto do estudante ter de defender-se com as mesmas armas, voltando-se para o animal e, dentes à mostra, procurar apanhá-lo pelas costas. A cada mordida, ele chiava, saltava, mas para voltar de novo, cada vez com maior voracidade. E a luta prosseguiu sem que ao preso fosse dado contar o tempo…

Na coberta havia ruídos surdos, descarga de mercadorias.

Horas adiante, um bote procedente do outro lado da baía atracou a bombordo do Alsterbeck. Pela escadinha de corda subiram um alferes e a sua escolta de três milicianos. O oficial apresentou uma carta ao capitão. Este chamou o mestre e deu-lhe ordem para que entregasse o marinheiro insubordinado. O velho retirou-se e dali à pouco voltou, apresentando Julio Frank.

O preso estava visivelmente satisfeito: respirava a plenos pulmões e enquanto os homens falavam entre si, parecia encantar-se na contemplação, ao longe, do casario branco, de telhados escuros, sobre o qual emergiam as torres das igrejas, tudo batido de chapa pelo sol.

Em virtude de uma queixa do capitão, ia ser recolhido preso à Fortaleza da Laje. E, quase satisfeito com a sorte que de um lado o perseguia e de outro o amparava, de um modo misterioso, inexplicável, partiu à frente dos milicianos, descendo pela escadinha, desta vez mais hábil em fazê-lo, para tomar o seu lugar no centro do bote que, a um sinal do alferes, rumou para um penhasco redondo à flor das águas.

Não foi maltratado: o penhasco era extraordinariamente maior do que havia calculado ao aproximar-se, e dentro daquela imensa tartaruga lhe davam uma certa liberdade. Almoçava, jantava e dormia com as praças. Nos primeiros dias sentiu-se embaraçado para se fazer compreender, usando para isso de todas as línguas em que era mestre. Mas, ao escoar das semanas, com a facilidade que era só sua para tais estudos, foi-se apropriado das duzentas palavras com que se exprime o povo e passou a falar com relativa facilidade.

Seu primeiro cuidado foi informar-se do motivo por que estava preso e, como lhe dissessem que era por insubordinação, respondeu que não sendo marujo, mas passageiro, como se poderia verificar pelos assentamentos do porto, não lhe cabia tal culpa, antes reagira contra violências de que foi vítima.

Tais palavras pareceram interessar o oficial que o escutava e que as comunicou aos demais da guarnição, e a sua presença foi notada. Condoeram-se do estudante que parecia esquecido, sem roupa, sem dinheiro, naturalmente sem destino. Aproximando-se do preso, verificaram logo tratar-se de um sábio e não faltou quem por ele intercedesse.

Julio Frank, debruçado na muralha, ouvindo as ondas a cantarem aos pés, passava horas a fio a contemplar a cidade que lhe aparecia distribuída em três grandes núcleos, em tudo iguais, tendo ao fundo o décor suntuoso das serras. Nos dias serenos, quando o vento era favorável, chegavam a seus ouvidos os diálogos dos sinos que, em todos os tons, pareciam conversar sobre o casario escuro.

De um dia para outro, transferiram-no  para a mesa dos sargentos e lhe franquearam a entrada na pequena biblioteca da fortaleza, onde, ao lado de obras militares e de legislação, encontrou almanaques, relatórios e livros de viagens. A seguir, foram os oficiais que o chamaram para a roda e ele, com a sua vasta cultura, encantou a todos, respondendo primorosamente nos idiomas em que se lhe dirigiam, tornando-se, dentro de pouco, íntimo daquela galharda mocidade.

E a sua situação foi melhorando de tal maneira que pôde realizar, em parte, um dos seus melhores sonhos: ler à vontade, sem outras preocupações. Passava dias inteiros deitado à sombra da muralha interna, de livro aberto, mergulhado em conspícuos. Quando o sol, girando, o alcançava, mudava-se para outro ponto e estirava-se na veludosa alfombra dos musgos, prosseguindo na leitura. Dentro do forte, o silêncio era completo, a não ser nas horas em que o corneteiro subia para a muralha e com largo fôlego respondia aos toques que chegavam de outras fortalezas. Em cima, um céu escampo; em baixo, um mar carinhoso, repetindo uma queixa suave, que devia ter a idade da terra.

Não foi, pois, de boa sombra que ele recebeu a notícia de que se tratava de mandá-lo em liberdade: já se havia habituado àquele monastério. Um sábado, teve ordem de retirar-se. Sobre a tarde, um escaler tomou-o no último degrau da escada verdoenga, talhada na rocha, lixenta de pararangas, que parecia descer até o fundo do mar, e, depois de grandes voltas que pareceram inúteis, foi desembarcá-lo do outro lado da baía, num trapiche do Valongo, entre o Outeiro da Saúde e o Morro do Livramento.

Estava solto…

Mas para quê?

Pôs a mão no bolso e lá encontrou algumas moedas, que lhe causaram uma certa repulsa.. Sorriu. Era por causa dessa invencível repugnância ao contato do dinheiro que os seus colegas de Goettingue o chamavam de Anargyro. Que seria feito desses colegas? Estavam tão longe, tão longe…

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 8/5/1936 com o texto

8

X – Ao Deus dará

Quando desembarcou, anoitecia.

Da terra adusta alava-se o rescaldo da soalheira. Os sinos cantavam Ave-Marias e as primeiras estrelas espiavam, muito pálidas, num céu lavado.

Não foi sem pesar que se despediu daqueles homens duros que durante a prisão se haviam tornado seus amigos. Depois, como perdido que estava, tomou um caminho em direção da cidade. Nada esperava, a não ser o prazer de andar um pouco em terra solta.

Pouco adiante, ao lado do trilho riscado na erva rasteira e esturricada, lobrigou, à meia luz, construções baixas e escuras onde, pelo vozerio, devia estar muita gente reunida, e, quando menos esperava, subiu daquelas bandas um coro bárbaro, numa toada estranha, imensamente triste.

Parou. Que seria aquilo? Então, na primeira encruzilhada, leu numa tábua estas palavras mal debuxadas: "Negros bons moços e fortes; os chegados pela última nau com abatimento". E compreendeu a melancolia infinita daquele cântico.

Aos poucos, o caminho se tornava rua; ao centro, corria uma valeta destinada ao escoamento das enxurradas, mas onde, ao contrário, ela empoçava, cobrindo-se de caniços à cuja sombra as rãs coaxavam e sapos inchados pareciam martelar, como tanoeiros.

Surgiram as primeiras casas de moradia; eram geralmente assobradadas, de portas e janelas estreitas, com qualquer coisa de árabe. Quase todas brancas, com portas de azul ultramar. Mas tudo aquilo lhe pareceu velho, velho de nascença. Como único adorno, no alto da fachada, óculo com roseta de ferro; umas tinham portas com rótulas, outras grosseira armação de madeira, pintada de negro, protegendo as janelas. Mas a sua característica estava nos telhados negros, de quatro águas, como capuzes achatados. Beirais largos, ondulados, quase horizontais, mostravam em cada ângulo uma ponta arrebitada. Em algumas daquelas casas vicejavam plantas no encontro dos telhados.

Mais adiante, começou a encontrar gente; primeiro, negros quase nus, carregando ao ombro vasos de três palmos de altura, à feição de ânforas. Caminhavam em fila, silenciosos. O alemão não se conteve e perguntou o que eram aquelas vasilhas. Um preto respondeu curto:

- É tigre.

- Para que serve? – insistiu ele.

Então o preto mostrou todos os dentes numa risada; chamou os parceiros e trocou língua com eles. Depois, a rua se desmandibulou numa risada, porque o marinheiro não sabia o que ia dentro dos tigres. Afinal, parando para ouvir, o cheiro que se desprendia das vasilhas acabou por esclarecê-lo e Frank compreendeu por que os negros riam.

Mais adiante, à luz dos candeeiros alimentados com azeite de peixe, começaram a aparecer as lojas: barbeiros, latoeiros, curtidores, boticas, estancos para a venda de tabaco e, já entrando na cidade, armarinhos, chapelarias, bazares. O centro era mais populoso. Cruzava, andando, por padres, frades, figurões da governança, caixeiros de tamancos burgueses, pelintras, tipos populares, mendigos, cães sem dono, a ralé das ruas. Passavam por ele as seges, os fiacres e, de raro em raro, um banguê que chegava de fora; um homem amarrava o cavalo à porta de uma casa de negócio.

Nas esquinas, viu nichos de santos. Diante desses oratórios, muitos passantes dobravam um joelho fazendo o pelo-sinal. As casas estavam iluminadas, mas da rua só se percebia a luz pelas frinchas das portas e das janelas.

Depois de dar muitas voltas, cosido às paredes, Julio Frank escapou de ficar com a cara amolgada; foi quando um homem, para sair de casa, abriu bruscamente a porta: aquelas portas se abriam para fora. Mais tarde, começou a encontrar pretas quitandeiras postadas com seus tabuleiros nas escadinhas das igrejas e nos portões dos teatros.

Comprou uma pasta de farinha escura, ardida, onde apareciam postas de peixe.

- Como se chama isto? – perguntou.

- Cuscuz, yoyô.

- Cuscuz, yoyô, repetiu ele, sem compreender. E seguiu. Quando já não podia mais de fadiga, parou numa casa, diante da qual estavam amarrados alguns cavalos. Tinha porta larga e cortinas ramalhudas nas amplas janelas. No alto, um dístico: "Hospedaria". Ainda não se usavam nomes nas estalagens. Entrou e pediu alojamento. Como a paga fosse adiantada, meteu a mão no bolso e tirou as moedas que trazia consigo, passando-as sem contar às mãos do empregado, que se pôs a rir. Estava muito longe do que se cobrava por uma cama.

O dono quis saber do que se tratava e apareceu. Vendo que o forasteiro não tinha mais, propôs-lhe um serviço:

- Recolhes a lenha, carpes o quintal e lavas a louça e terás casa e comida. Que tal?

Frank aceitou.

Trabalhou nessa casa durante algum tempo.

Era uma das poucas hospedarias da cidade, num tempo em que família que se prezasse não punha os pés em tais estabelecimentos. Ficava na Rua dos Barbonos e dava pouso a tropeiros que chegavam das províncias. O salão térreo era uma tasca que funcionava até tarde da noite, com frequentes rixas nas quais os capoeiras faziam figurações de navalha.

Todas as noites, depois do serviço, Julio Frank abria a porta do pátio e ia sentar-se ao fundo, encontrando sempre alguém que, a troco de um pouco de conversa, o chamasse para a sua mesa. O salão era vasto e de terra batida. Mesas quadradas e mochos de madeira. Do teto escuro, onde panos de vela esticados fingiam de forro, descia um candeeiro de seis bicos, alimentado a azeite de peixe, que alumiava frouxamente o recinto. Muita gente, fumaça espessa, um cheiro penetrante de álcool, suor e imundície.

Nas bonitas noites do Rio de Janeiro, chegavam até lá viajantes curiosos. Frank distinguia-os no salão, ao primeiro olhar: insinuava-se logo na sua simpatia. Certa noite, abrindo a porta do pátio e lançando um olhar pelo salão, descobriu lá num canto dois jovens que ali deveriam ter chegado movidos pela curiosidade. Encaminhou-se par o local, sentando à mesa mais próxima. Sua presença interessou-os desde logo:

- É marinheiro…

- É comerciante…

- Aposto!

- Pois eu topo a parada!

Então, o primeiro que havia falado inclinou-se para Julio e perguntou-lhe com ar amigável:

- Fala português?

Julio sorriu.

- Meia dúzia de palavras.

- É marinheiro?

- Não, senhor.

O outro apressou-se em indagar:

- Então é comerciante?

- Também não.

Os rapazes ficaram curiosos. Julio Frank disse:

- Na minha terra era estudante; fiz até o terceiro ano da classe de Filosofia da Universidade de Goettingue. Depois abandonei os estudos. Aqui não sei que destino me espera.

Fizeram-no passar para a sua mesa. E como falassem diversas línguas, breve a conversa ficou animada e os estudantes paulistas Oliveira e Aranha mostraram-se contentes de encontrar um tal homem naquela casa em que haviam entrado por desfastio, à cata de sensações novas. Foi precisamente no momento em que faziam essa delicada confissão a Frank que um capoeira deles se aproximou, gingando, um riso de desafio nos beiços descolados, oferecendo-lhes o copo:

- Bebam, seus moços!

- Obrigado,  já estamos servidos.

- Bebam, estou mandando…

Frank, já conhecedor de tais cenas e familiarizado com a topografia da tasca, disse-lhes à socapa:

- Messieurs, suivez moi; il y a une porte á gauche!

Ao mesmo tempo, Oliveira, num gesto brusco, virou a mesa sobre o capoeira, ficando os três rapazes embarricados atrás dela. Completando a manobra, Frank, que já havia sofrido em Goettingue as consequências de ter boa pontaria, atirou um mocho no lampião, que caiu em cacos, espargindo azeite sobre a assembleia.

Deu-se o tumulto: gritos, pragas, cacetadas, tiros… E aproveitando a confusão que se estabelecera na sala, os jovens saíram guiados por Julio que, tateando, encontrou a porta lateral, abriu-a cautamente, deu saída aos amigos, fechando-a novamente, pelo lado de fora, para que ninguém viesse no seu encalço.

Atravessaram o pátio deserto, barafustaram para a parte posterior do prédio, saíram para o quintal e de lá saltaram o muro dos fundos, caindo numa rua silente, banhada por um luar a cuja claridade se poderia contar as folhas das árvores. Escutava-se longe o vozerio, o aqui-del-rei dos feridos, o tropel da milícia que chegava para restabelecer a ordem.

Assim, dirigiram-se calmamente para a residência em que os dois amigos estavam hospedados. Era fora do centro. Caminhando, Aranha e Oliveira trocaram algumas palavras sobre Julio Frank. Concordaram em qualquer coisa a seu respeito. Depois, já no portão da chácara, debaixo das trepadeiras em flor que desciam aos cachos do arco de pedra, perguntaram-lhe:

- Onde está hospedado?

Ele riu.

- Perguntamos onde quer que o acompanhemos.

Frank explicou a sua situação.

- Quer ir conosco?

- Quero.

- Mas deve saber que é muito longe.

- Para mim é o mesmo.

- Um mês a cavalo…

- Melhor. Posso ir buscar a bagagem?

- É muito grande?

Frank achou graça na pergunta.

- Olhe que é para São Paulo…

O estrangeiro parecia não ter uma ideia muito clara a esse respeito. Mas não importava. O que desejava era seguir para a frente. E, com o assentimento dos novos amigos, correu à hospedaria e de lá voltou meia hora depois, trazendo uma trouxinha de roupa, livros e manuscritos.

À sua chegada, já encontrou homens e cavalos reunidos no portão. Em 1830, os filhos de algo residentes nas províncias organizavam verdadeiras caravanas para visitar a Corte, onde mantinham casa que só se abria durante as suas visitas.

Oliveira e Aranha faziam parte de uma dessas caravanas. Foi justamente na véspera da partida que esses dois rapazes quiseram levar da Corte uma impressão mais duradoura e, depois de muitas voltas, foram ter à hospedaria onde o acaso os apresentou a Frank. Enquanto o estudante fora buscar o que lhe pertencia, eles acordaram os demais componentes do bando jovial; entre eles estava um irmão de Oliveira. Quando lhe contaram a história do novo companheiro de viagem, ele riu e disse:

- Pois eu também arranjei outro viajante: chama-se Karl Boerg e é sueco. Quer ir para São Paulo…

- Como se chama mesmo?

- Vamos simplificar: chama-se Carlos Borges.

E Carlos Borges ficou sendo para o resto da vida.

Enquanto Ditinho e Ditão entregaram-se ao trabalho de preparar um volumoso farnel, a cavalgada partiu; estava entendido que os dois pajens os alcançariam à beira do Rio Santa Cruz, por onde passava a estrada real.

A cidade dormia

Nos nichos das esquinas velava serenamente um pingo de luz.

As casas senhoriais estendiam sombras oblíquas.

Ao passarem pela Candelária, observando que o templo estava aberto e iluminado, consoante costume da época, alguns deles resolveram apear e fazer ali curta encomendação de boa viagem.

- O Oliveira não vem? – perguntou um do bando.

- Não; o Oliveira é herege… - respondeu Aranha.

Dirigiram-se ao altar-mor, ajoelharam-se, fizeram o pelo-sinal, murmuraram preces. Já à saída, Julio Frank mostrou-lhes no ângulo da nave um vulto branco deitado sobre quatro tocheiros.

- É um defunto; daqui a pouco será enterrado.

- Quero ver.

Os amigos se entreolharam, mas acederam ao pedido. Chegando ao pé do catafalco, levantaram a ponta da mortalha. Um hálito enjoativo aflorou-lhes o rosto. O cadáver parecia uma figura de cera, mas apresentava o rosto picado de pequenas borbulhas negras, muito unidas.

- Que é isto? Perguntou o alemão, quase tocando com o dedo aqueles pontinhos arroxeados.

O interrogado, com um calafrio que lhe sacudiu todo o corpo, respondeu:

- É bexiga.

- Bexiga-pele-de-lixa! Ajuntou Aranha.

E logo depois os rapazes partiram ao chouto (N. E.: trote miúdo) dos cavalos ao longo da estrada batida pelo plenilúnio que parecia acompanhá-los, num céu limpo, sem nuvens e sem estrelas.

XI – O caminho de São Paulo

A viagem, como Oliveira havia previsto, foi morosa.

Os cavaleiros não descansaram durante a noite e, quando amanheceu, estavam nos terrenos alagados do Rio Santa Cruz, próximos do primeiro pouso. Como tivesse chovido abundantemente nas serras, as águas rolavam revoltas e barrentas, exceto nas corredeiras, onde a massa líquida se alargava num leque sobre muralhas de pedras soltas. Numa e noutra margem, havia cavaleiros e banguês retardados pelas dificuldades da travessia.

Julio Frank, ao invés de procurar, como os demais, os pontos rasos, quis à força vadear o rio na sua montaria, com água pelo pescoço do animal e pelas ilhargas do cavaleiro. Assim, lutando contra a corrente e sempre à espera de perder pé, salvou a outra margem, ante a ansiosa expectativa dos companheiros, cujos cavalos cabritavam sobre os pedregulhos. Nada na vida lhe teria agradado tanto como essa façanha.

Nascido e criado no centro da Europa, manifestava acessos de ternura pela natureza que o agasalhava. Ao longo daquela velha estrada que serpeava pelos valados, grimpava pelas encostas ou se perdia no verde uniforme das planícies, tinha devaneios de namorado e incontidas alegrias de colegial.

Na subida da serra de Itaguaí, que por trabalhosa foi realizada de dia, tantas coisas fez que, por pouco, ficava para sempre abandonado nos grotões.

Depois de muitas vezes apartar-se dos companheiros de viagem, abandonou a estrada real, cheia de barrocas alfombradas de avencas, e foi procurar um daqueles olhos de água tão leve e fresca que dá gosto beber e refrescar com ela o rosto afogueado pelo mormaço.

Nem se dava ao trabalho de colher a água na concha das mãos unidas, como faziam os outros: deitava-se de bruços à beira da corrente e bebia-a que nem gato, num leito de agriões. Não raro, quando tirava a boca, uma rã fugia; o inexperiente excursionista havia sugado a água nas costas do batráquio, julgando-o pedra coberta de limo…

Num desses extravios, perdeu-se.

Os jovens ficaram aflitos com a sua ausência e, desesperados de alcançar ainda aquela tarde o pouso do Arrozal, improvisaram, à meia subida da serra, um rancho onde passarem a noite. Sobre quatro forquilhas de urucurana, com caibros e cercas de taquaruçu, uma coberta de palmas. Dentro, sobre alcatifas de folhas de embaúba e de velame, ponches, mantas e palas constituíam as camas. Ao centro, um fogo estralejante. Os animais estavam amarrados pouco adiante, sob a vigilância dos pajens que, mais afeitos àquela vida, se contentaram com fazer fogo, amontoar os arreios e preparar-se para uma noite quase ao relento. Ao anoitecer, saíram pela encosta e deram alguns tiros ao acaso, na esperança de orientarem ao extraviado; mas foi tudo inútil.

Com as primeiras estrelas, subiu dos vales uma neblina tenuíssima, mas gélida.

Depois de discutirem sobre a sorte do alemão, já bastante arrependidos de o haverem trazido da Corte para perdê-lo no matagal bravio, acomodaram-se ao pé do fogo e, como estavam cansados, foram adormecendo. Noite adiante, porém, os cavalos deram mostras de inquietação, escarvando, forçando as rédeas, sacudindo a árvore a que estavam amarrados. Um dos Oliveiras sentou-se e chamou o Aranha que, por sua vez, arregalara os olhos, inquirindo do que havia.

- Está ouvindo?

- Estou.

- Que será?

- Algum morcego que está chupando os animais.

Nesse momento, como para desmentir as suas palavras, escutou-se no pesado silêncio da noite um angustioso miado que tanto podia vir de longe como da brenha escura que rodeava o improvisado rancho.

Os cavalos bufaram e ouviu-se o rascar das ferraduras no chão pedregoso. Ao mesmo tempo, a folhagem abriu-se, dando passagem a Ditinho e Ditão, que se precipitaram no interior do rancho. À luz inquieta da fogueira, seus olhos branquearam:

- Onça!

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 15/5/1936 com o texto

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Começaram então os trabalhos de defesa. Os cavalos foram levados para perto do rancho e os homens escorvaram as lazarinas. Depois, sentados ao redor da fogueira, costas voltadas para as chamas, trabuco entre os joelhos, prontos para levar à cara e disparar, ficaram à espera.

Durante a comprida noite de vigília, escutou-se ora de uma banda, ora de outra, o miado confrangedor que se elevava no mistério da mata, enchendo céus e terras; a cada uivo, a brenha como se recolhia, quedando-se de respiração suspensa, em angustiosa expectativa. Os cavalos pareciam querer fugir, deixando a queixada no freio.

Os rapazes só tinham uma preocupação: o companheiro perdido na noite. Houvesse uma só probabilidade de encontrá-lo, eles teriam partido sem hesitar para socorrê-lo. Mas onde se encontraria ele, desarmado e ignorante de tudo que o cercava? Talvez àquela hora já estivesse servindo de pasto à onça esfomeada…

Julio Frank subiu a um morro; julgando voltar pelo mesmo caminho, na realidade desceu para o lado oposto. Fez novas subidas e descidas. Desorientou-se. E quando deu conta de si, achava-se à beira de um vale deserto, sem saber a que distância dos companheiros. Passaram-se horas. O sol descaiu. Uma cheirosa umidade subiu da terra fofa e dos penhascos escuros que se erguiam debaixo de árvores recurvadas, ricas de orquídeas. Quando o sol já estava a meia braça do horizonte e as sombras compridas dos morros se alastravam pelo vale, ouviu, alhures, o estalido seco de um tiro. Eram os companheiros, para orientá-lo. Correspondeu com um prolongado grito. Dali a pouco,nova detonação. Gritou pela segunda vez e com redobrada força, pois o pesado silêncio da serra começava a assustá-lo.

Caminhou para as bandas em que se ouviam os tiros. Mas a noite descia muito rápida. As últimas claridades se coagulavam lá embaixo, no vale, em metálicas superfícies de águas. Ainda um disparo que lhe pareceu mais próximo, e a que ele correspondeu com aflição. E, à derradeira luz do ocaso, pôde ver sobre o recorte escuro do espigão fronteiro um penacho de fumaça azulada que subia. Então, respirou com alívio e para lá se dirigiu numa desabalada carreira, escorregando nos limosos barrancos, tropeçando em pedras e troncos, enredando-se na trama inextricável dos cipós. Durante a noite inteira procurou assim os companheiros.

Ao primeiro arrepio da manhã, no rancho, os viajantes ouviram raspar do lado de fora e os canos das armas voltaram-se rapidamente para aquele ponto; mais um sinal e os tiros partiriam. Foi quando se ouviu uma tossezinha seca, já conhecida de todos, e a cara risonha de Frank apareceu à luz da fogueira, espiando por entre a folhagem.

- O frio pregou-me um resfriado!

- Mas salvou-lhe a vida! – ajuntou Aranha. Se você não tivesse pigarreado, seria fuzilado com seis panázios.

Após os abraços e a enumeração dos perigos a que inutilmente se havia exposto, perdido na serra durante uma noite inteira, negaceado pela gula das onças, o alemão recebeu das mãos de Ditinho uma caneca de café, bem quente, para restaurar-lhe as forças. Riu, conversou, depois sentou-se a um canto e quando já se faziam os aprestos da partida, começou a tremer que nem varas verdes.

- Que tem, Lamão?

- Estou com medo.

- Medo de quê?! Já passou o perigo…

- Eu sou assim: meu medo vem depois.

Quando o dia dourou as cristas dos morros azuis que se viam na distância e a serra ergueu o hino matinal feito de cantos de aves, de gazarreios de cigarras, de cicios de aragens e de queixumes de fontes, os viajantes partiram por estradas vermelhas. À hora do almoço já estavam no Arrozal. Ali, refeitos e esquecidos dos trabalhos da noite, estiraram-se à sombra de uma jaqueira e dormiram até o entardecer.

Frank foi o primeiro a deixar o pouso e ir para a estrada. Ao pé dos cavalos aparelhados e prontos para a partida, encontrou Ditinho e Ditão que pareciam mariscar na enxurrada.

- O que é que vocês estão catando?

- Ouro.

- Ouro?

Ditinho juntou um punhado de terra e levou-a ao alemão. Este recebeu-a, escura e gotejante, e ficou-se a admirar as minúsculas palhetas que faiscavam à derradeira claridade do sol. Absorveu-se na contemplação, depois falou:

- O Absoluto manifesta-se em ritmos. Vocês compreendem?

Ditão arreganhou-se num sorriso.

- É assim mesmo. O dia e a noite, o fluxo e o  refluxo das marés, as estações e as luas, tudo isso é a expressão de uma lei eu mal compreendemos. A involução, correspondendo a um pensamento do Absoluto, desceu até o reino mineral, até o ouro. No fim de cada involução está uma palheta de ouro. O universo material está como uma caixa de ouro. Não é isso?

Ditinho fez um gesto de pleno acordo…

- Do outro, último limite da expansão que criou os mundos, inicia-se a evolução, a onda que sobe de reino a reino, chega ao homem, ultrapassa o homem e perde-se na ascensão para reintegrar-se no Absoluto. O ouro, porém…

Os outros rapazes chegaram, palradores, como um bando de maltacas. Julio Frank perdeu o fio das considerações, montou a cavalo e partiu com os demais. No entanto, desde aquele dia, os dois pajens passaram a espreitá-lo com olhos ressabiados…

Próximo a Silveiras, Julio Frank esteve a pique de ficar. À beira da estrada havia uma vendola de sitiante das vizinhanças. Nas prateleiras vazias, as aranhas teciam felpudas teias. Uma grandezinha, na extremidade do balcão, defendia meia dúzia de garrafas e copos oitavados. Pelos cantos, alguns mantimentos. Mas na frente da casa tinham serrado duas árvores, a três palmos do chão, e corrido sobre os troncos larga tábua, formando um banco. Ali, enquanto os companheiros dormiam, no fundo da casa, sobre os pelegos, os pajens trabalhavam na cozinha e os cavalos pastavam no campo, ele se deitou e abriu um livro.

Mas não conseguiu ler uma só página. Perto, corria um riacho e as águas cantavam tão docemente… Mil variedades de passarinhos gritavam, cantavam, arrulhavam, chiavam, gemiam, trinavam, ciciavam, chamavam pelas companheiras nas copas ressoantes, batidas pelo sol…

Nas extremidades da casa havia laranjeiras, mamoeiros, bananeiras, toda uma paisagem tropical que o enchia de preguiça e de sonho. E daí, a tranquilidade, a frescura, o prazer que se respirava naquele cantinho perdido do mundo! Esteve longo tempo embebido na contemplação, até que o livro caiu para o lado.

Entrava suavemente no sono quando seu Joaquim, o dono da venda, que havia gostado do viajante, lhe trouxe um martelo de aguardente com limão e açúcar. Ele agradeceu e enquanto o homenzinho se sentava a seu lado, talvez para matar a curiosidade, pôs-se a chuchurrear a bebida. E a conversa se foi animando. Contou-lhe as peripécias em que tinha tomado parte.

Confessou ter desejos de acabar os dias num lugar como aquele, entre a riqueza das paisagens e a alegria das églogas. Por seu lado, o vendeiro dedicava-se a outros negócios e era prejudicado pelas horas gastas atrás do balcão, que por sinal quase nada rendia. Depois dessa conversa, o viajante já estava resolvido a quedar-se ali, tomando conta do negócio, enquanto seu Joaquim andasse a tratar da vida…

Quando o almoço foi servido na mesa da cozinha e os companheiros se reuniram diante da paçoca com arroz, Julio Frank estava outro. Tiveram um trabalhão para arrancar-lhe a ideia de ficar ali; foi, pois, a contragosto que montou a cavalo e partiu com os demais.

Uma tarde em que a sombra azulada da Mantiqueira se estendia sobre o caminho, ele, filósofo e poeta, deixou-se empolgar pela beleza grave da hora e, dando de esporas no cavalo, adiantou-se cerca de meia légua dos companheiros.

Sentia um imenso prazer em tais correrias; engolfava-se em altos pensamentos e de quando em quando repetia com delícia versos que havia muito lhe cantavam nos ouvidos. A solidão exaltava-o. Foi num desses momentos que, numa encruzilhada, teve curioso encontro. Olhando para o lado da serra, já envolta no sudário das sombras, viu que um cavaleiro se aproximava, seguido de diversas pessoas a pé.

Esse cavaleiro, porém, apresentava algo de diferente. Que seria aquilo? O animal parecia trotar sob a ação do pavor, meio arqueado e forçando as pontas dos cascos. Um homem de lenço na cabeça puxava-o fortemente pelo cabresto. E o grupo se aproximava. Observou ainda mais, que o viajante não segurava a rédea e mantinha os braços meio abertos; só se sustentava erguido porque lhe haviam amarrado os pés por baixo da barriga do animal. Com a andadura, ele, muito rígido, oscilava para diante e para trás.

Então, Julio Frank afastou-se para o lado, a fim de dar passagem àquela gente. Mas os cabelos se lhe arrepiaram e um suor frio lhe umedeceu as têmporas. O cavaleiro era um defunto. Tirou o chapéu à sua passagem e, dirigindo-se à última pessoa da comitiva, indagou:

- Que é isso, meu amigo?

O outro deu-lhe uma explicação banal:

- Ele morreu na serra, a vinte léguas daqui; nós o trazemos para enterrar no sagrado.

E, na outra curva da estrada, o estranho bando foi engolido pela noite.

Chegaram a São Paulo num enevoado entardecer. Os amigos foram visitar os parentes, apresentando-o nas salas dos nobres sobradões, onde pelo brilho da inteligência e profundo saber encantou a quantos o ouviram. Por esse tempo, já se esforçava em falar a língua da terra, pela qual sempre deu preferência, o que não era explicável num tempo em que a ideia da criação dos cursos jurídicos em São Paulo tinha merecido severas críticas pelo fato – segundo se alegava – de que os paulistas falavam uma língua detestável.

Regressando à chácara do Ferrão, onde os cavalos tinham ficado a pastar sob a figueira, o grupo se repartiu. Os Oliveiras e Frank seguiram para a vila de Sorocaba e Aranha, com outros rapazes, tomaram a direção de Campinas. Assim, despediram-se à margem do Tamanduateí. Os de Campinas tomaram pela baixada do Pari e os de Sorocaba pela ponte do Miguel Carlos. Já longe, voltavam-se para trás e agitavam no ar os chapéus de abas largas, que usavam em viagem, e os outros da mesma forma correspondiam ao cumprimento.

Carlos Boerg ficou em São Paulo, integrou-se na população, desapareceu. Nunca mais se falou nele. Os Borges louros e de olhos claros que às vezes encontramos devem ser seus descendentes.

XII – Em Ipanema

No dia seguinte chegaram a Sorocaba. Frank acompanhou o amigo até a fazenda e hospedou-se em sua casa. Nas conversas da noite, num largo alpendre todo estrelado de jasmins, concertaram o meio mais viável de encaminhar o jovem em sua nova existência. Ficou assentado que muito cedo ele partiria para Ipanema, a poucas léguas dali, onde a mineração e a fundição de ferro estavam em plena atividade, dirigidas por empregados alemães trazidos pelo capitão Varnhagen.

Ao alvorecer, Oliveira foi acordar Frank no "quarto dos hóspedes". Todas as casas tinham quartos destinados às visitas. Não raro, um hóspede demorava-se meses, com a família, as mucamas e os cavalos. Observa-se alguma semelhança de vida entre a antiga fazenda e o castelo; é que nossos avós, em suas propriedades, dispunham de uma verdadeira corte com os tipos correspondentes à famulagem dos senhores medievos, encontrando-se até mesmo o bobo, que, para o caso, era o mumbava, sujeito exótico, atilado, espirituoso ou abobado, que aderia à casa e gozava de certas regalias.

Levantando-se, Frank tomou café com sequilhos e outras misturas e declarou-se pronto. Oliveira levou-o até o portão, onde estavam dois cavalos encilhados. Um era para o estudante, outro para o Ditinho, que lhe ensinaria a estrada e, na volta, traria o cavalo. Nesse momento, o dono da casa lembrou-se de que o rapaz estava muito pobre de roupas e quis dar-lhe algumas das suas, mas observou logo que ambos eram de físico assaz diferente; enquanto ele era gordo e alto, Frank era de estatura meã. Não lhe transmitiu, pois, o seu pensamento.

Depois das despedidas, Oliveira deu-lhe uma carta para um dos diretores da mineração e o estudante e seu escudeiro partiram na direção do Morro do Ferro. A viagem a princípio foi muito boa, sob a umidade do sereno, mas, com o passar do tempo, desceu sobre a estrada um sol causticante que lhe queimava as mãos e o rosto. Cerca de meio dia, já à vista das pedreiras e dos fornos, desceram à porta de uma venda, amarraram os cavalos e pediram alguma coisa para comer. O vendeiro levou o alemão para a sua mesa e mandou o pajem para a cozinha, onde havia outros parceiros.

Frank estava com um belo apetite. Saboreou o quibebe, o virado com torresmo e uma famosa galinha afogada que ainda por muito tempo ficou na sua memória.

- Quer uma uvaia?

- Bebe-se?

- Bebe-se.

- Então quero.

O vendeiro trouxe um cálice da infusão. Depois, pergunto-lhe se queria um com limão. Queria. A seguir, mostrou-lhe caiapiá, sucupira e pau prá tudo. Frank quis saber o nome daquela sinfonia degustativa e o vendeiro, timidamente, arriscou:

- É mata-bicho.

- Mata-bicho – repetiu Frank – e depois de traduzir e de meditar sobre o assunto, declarou que em quase todas as línguas da Europa há a mesma expressão, correspondente a usos e crenças da Idade Média.

O vendeiro não lhe quis cobrar o almoço; não gostou mesmo que falasse em preço.

Chegando a Ipanema, procurou um diretor do serviço e entregou-lhe a carta que trazia consigo. Depois de algumas consultas, declarou-lhe que estava aceito, para modesto serviço e minguado salário, pois no momento nada havia de melhor. Frank passou o seu dinheiro para o escravo, despediu-se e enquanto o preto se afastava, levando um cavalo pelo cabresto, foi tomar posse do alojamento que lhe haviam indicado.

Era uma das muitas casinhas que bordavam a encosta do morro; de taipa, constituída de um só compartimento, com um fogo no centro e um catre de cada lado. Seu companheiro era também alemão, um homem baixo e escuro, endurecido pelo serviço. Contra toda a expectativa, não simpatizou com Frank e passava dias sem lhe dar palavra. Por seu lado, Frank não gostou dele e durante todo o tempo que lá esteve viveram em franca hostilidade.

Um dia, chamado ao escritório por intrigas do companheiro de casa, o mestre-fundidor perguntou-lhe:

- Por que motivo o Franz não gosta de você?

- É uma questão antiga.

- Então já se conheciam?

- Já. Em 1399, ele foi meu carcereiro. Uma noite, porém, quando todos dormiam, eu lhe tomei a chave da prisão, amarrei-o e fugi. No dia seguinte, enforcaram-no. Desde essa aventura, ocorrida há mais de 500 anos, ele nunca mais me pôde ver com bons olhos…

O mestre examinou-o atentamente e mandou-o para o serviço.