Depois de uma semana de frio e chuva, apareceu uma nesga de céu sobre a terra encharcada. A serra estava cheia de roncos de
cachoeiras. As árvores do terreiro gotejavam ainda, e quando a gente se apoiava a uma delas recebia sobre a cabeça uma carga de orvalho. As
bananeiras escondiam nas folhas novas, apenas abertas, copiosas reservas de chuva. E o rio, a vinte braças da casa, rolava as suas águas escuras,
inchadas pelo temporal.
Ao escurecer, uma canoa veio costeando o barranco e abicou no nosso porto. Era uma novidade, depois da chuva. Corri para ver do
que se tratava. Eu tinha de seis para sete anos, e estava sempre de lebita branca e pés descalços. Quando cheguei ao barranco, um canoeiro do sítio
já lá estava, recebendo o visitante.
Era seu Elias, mascate. Esse homem tinha o costume de embarcar na canoa o fardo de fazendas e o baú de miudezas para, durante
uma semana, percorrer a freguesia que morava à beira do rio, desde a ponte de Cubatão até a barra dos Pilões, onde, naquele tempo, havia onças. Era
um homem de bem, toda gente gostava dele; por isso, onde anoitecia encontrava o prato de feijão, a esteira da tarimba e uma tripeça ao pé do fogo.
Vi-o saltar da canoa para o barranco. Fê-lo com tal agilidade que causou admiração. o camarada que, naquele momento, estava com
água pela cintura, transportando para terra o fardo de fazendas, gritou para mim:
- Você sabe que seu Elias é feiticeiro?
Para justificar essas palavras, o mascate tirou uma moeda do bolso, botou-a na palma da mão e fez menção de me dar. Quis
pegá-la, mas não a encontrei. Ele, misteriosamente, tinha passado para as costas da mão de seu Elias. Estava em cima daquela tatuagem azul, com
flores e bichos, que muitos orientais traziam da terra.
Eu, novamente, quis apanhar a moeda, mas o níquel desapareceu de todo, não sei onde. Então o mascate fez dos dedos uma tenaz,
apertando-me com ela o nariz, até que a moeda caiu no chão. Fiquei maravilhado. Mas ele não se deu por achado, apanhou a moeda, limpou-a na calça e
restituiu-a ao bolso de onde, pouco antes, a havia tirado. Compreendi, pois, que ele era de fato feiticeiro.
De noite, na sala da frente, à luz do candeeiro, o mascate expôs a mercadoria. Tinha um sortimento de chitas como nunca mais
vi. De cores deslumbrantes. com desenhos lindos. A família toda, incluindo o Pai André, a Florecena e o cachorro Filáu, rodeava a mesa, atulhada de
fazendas. E o feiticeiro, voltando-se para a dona da casa, tomava do pano, esfregava-o como se estivesse a lavá-lo, puxava-o como se quisesse
rompê-lo, e proclamava:
- Furfantine!
Os velhos desconfiavam daquilo, ratinhavam no preço, mas a pretinha Florecena, que era faceira, erguia para a patroa uns olhos
cobiçosos e reforçava as palavras do "turco":
- Tá vendo, Sinhá? É mesmo furfantine!
Eu me pelava pelo baú de miudezas. Nele havia caixas redondas com vidros de orisa para o cabelo. O que me atraía não era a
orisa, era a caixa, para fabricar aparelhos telefônicos. Havia também lenços da cores. E agulheiros, papéis de alfinetes e de colchetes, fitas de
todas larguras, de todos tecidos, de todas tonalidades, rendas, crivos bordados, carretéis e chaleirinhas de vidro com água de cheiro. Lá bem no
fundo amontoavam-se flautas de metal, gaitinhas e caracaxás para crianças de peito. Mas o que mais me encantava pelo mistério era um vidro grosso,
de largo bocal, daqueles que antigamente vinham do estrangeiro com sal refinado. Esse frasco estava escondido no canto do baú, com um pano amarrado
no bocal, e parecia cheio de picadinho de carne ou de qualquer outro alimento, dissolvido em azeite. Era o pitéu que seu Elias comia com pão,
durante a viagem, à beira das estradas.
Perguntei em voz alta o que era aquilo, e os velhos fecharam a cara, fingindo que não ouviam. Mas a Florecena, que era sabidona,
explicou-me em segredo:
- Não vê que é sarnambi da praia. Ele abre as conchas e com um palito vai catando os bichos, botando no vidro, com azeite. É
comida de "turco".
Não ouvi o resto, porque no baú apareceu um brinquedo riquíssimo, daqueles que só ganham os príncipes. Era uma caixinha de
madeira endo em cima um pássaro de folha-de-Flandres, muito bonito, mas encorujado. Parecia namorar uma fruta que estava pregada diante do seu bico.
Quando alguém queria tirar a frutinha, o pássaro abria as asas, dava gritos e bicava a mão buliçosa, com toda a força. uma maravilha!
Peguei no brinquedo, hesitei um instante, depois corri com ele para o quarto. à volta da mesa discutiu-se o preço. Mas era caro
demais. Então, com boas palavras, invocando a minha bondade, foram buscar o brinquedo. Não quis devolver. Chorei, fiz barulho. Depois tudo se
acomodou. Lá dentro, uma voz disse a alguém: "Quando ele dormir, não se incomode...". Acordei altas horas da noite e levei a mão ao canto do
travesseiro, onde havia guardado o brinquedo. Já lá não estava. O mascate e meu pai ainda conversavam na sala, à luz do candeeiro de querosene. Ouvi
a voz pausada do feiticeiro, dizendo?
- Amanhã cedo dou um pulo até a Água fria.
E fiquei insone, no escuro, os olhos estagnados, a pensar naquele "pulo" que o feiticeiro devia dar do nosso sítio até o
vilarejo de cima. Via-o no terreiro, o fardo nas costas, o baú na mão... Firmava os pés na areia e... Um, dois, três... precipitava-se pelo céu na
direção da Água Fria, para depois cair sem se machucar, entre os ranchos e a venda. Ninguém acharia isso extraordinário, porque ele era feiticeiro,
toda gente sabia.
Levantei cedo para assistir ao pulo. Mas, não sei porque ele preferiu a canoa. Depois do café com biscoitos, nós todos fomos
para a beira do rio. Os camaradas acomodaram o fardo e o baú no meio da embarcação. Ele me estendeu a mão, para despedir-se. Quando fui apertá-la,
só encontrei o mindinho. Quando quis apertar o mindinho, ele me deu o fura-bolos. Fiquei envergonhado. E para poder chorar à vontade, lembrei do
brinquedo da véspera:
- Eu quero o passarinho!
Seu Elias desceu o barranco, embarcou na canoa, sentou no banco do meio e acendeu o cigarro.
- Eu te mando o passarinho!
- Como?
- Pelo ar, voando...
Todos riram, até os canoeiros. Não acreditei muito na sua promessa, mas depois me arrependi, porque o fiticeiro estava sempre
ao par de tudo, mesmo dos pensamentos. Quando a canoa se escondeu entre as árvores pendidas sobre o rio e o grito dos canoeiros se perdeu no cachoar
da tupava, nós voltamos para casa. E foi aí que se fez a grande mágica..
Florecena olhou o céu, abriu os braços e só pôde dizer:
- Credo em cruis! Bom Deus padre!
Uma nuvem de passarinhos rodou, rodou lá pelo céu e abeteu sobre a casa, as laranjeiras, o terreiro e os bananais próximos. No
banco de carpinteiro, diante da porta, empoleiraram-se dezenas de tiés-fogo. Até nos sabugueiros e nas pimenteiras havia sanhaços, debatendo-se,
gritando aflitamente. As pequenas avezinhas estavam sem forças, caíam de fome e de fadiga. Numa bananeira, cujo cacho tinha ficado do último corte e
a fruta se apresentava verdoenga, havia revoadas de asas, um concerto de gritos, pios, cicios e corruchios. Por fim, os passarinhos invadiram a
casa. Voavam no alto, debatendo-se nas vigas, pousando nas folhas das portas, nos varais do fumeiro e até na cabeça arrepiada de Florecena. Foi uma
manhã cheia de passarinhos e de risadas.
Ao almoço, alguém explicou:
- Isso acontece sempre, nos meses de frio, quando as chuvas encharcam as árvores do mato e as fruteiras cainham alimento.
Então, os tiés, os sanhaços, os sabiás e outras aves descem da serra, aos bandos, em procura dos cachos de bananas esquecidos nas plantações de
serra-abaixo. E quando lhes faltam as forças, caem pelo caminho.
Perguntei à Florecena, em segredo:
- Você acredita nisso?
- Não.
- Eu também não acredito. Eles não querem que a gente diga: mas isto é obra de Seu Elias, que tem parte com o Demônio. Mas eu,
olhe...
E arregalei um olho com a ponta do dedo.