Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult063l37.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/03/12 19:30:56
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 37

Leva para a página anterior

Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 3 da edição de 31 de maio de 1944 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Walt Whitman

O 31 de maio deveria ser assinalado na folhinha não em preto, como os idas úteis, nem em róseo, como os dias inúteis, mas em azul - porque nessa data nasceu um profeta. Foi, de fato, no último dia de maio de 1819 que, em West Wills, perto de Huntington, Long Island, América do Norte, abriu os olhos dourados para a vida o pequeno Walt.

Mas quem era esse pequeno Walt? Um menino que estava destinado a ser um honesto carpinteiro, como muitos, e acabou sendo um grande poeta, como poucos. Seus pais esperavam vê-lo de macacão, sandálias, óculos escuros, dirigindo a primeira carpintaria do distrito. Mas ficaram desiludidos. Walt desencaminhou-se. Como? Em duas penadas vou contar-lhe as amarguras e as glórias da vida.

Iniciou o estudo das primeiras letras em Brooklin e Nova York, mas não chegou a ser aluno distinto porque os professores teimavam em ensinar-lhe aquilo de que ele não gostava. Por isso, só mais tarde, quando se viu livre da escola, teve oportunidade de estudar. Mas, por esse tempo, já era aprendiz numa carpintaria. Assíduo no trabalho, exato nos horários, comportado, econômico e respeitador das praxes da oficina, nada levava a supor que ele chegasse a ser um grande homem...

Estou a vê-lo, ainda imberbe, de boné de couro e alpargatas de lona, a se trancar entre os demais operários da oficina. Era um delicado, um tímido. Mas, exaltadamente, curioso da vida. Ia e vinha, sem cessar, entre as mesas de trabalho, cobertas de serragem e de maravalhas (N. E.: restos da lenha logo após ser picada, lenha miúda), enroladinhas como caramujos. Fazia funcionar o torno parafusado na extremidade de uma banca, para vê-lo morder um cavaco, com as gengivas de ferro. Visitava os montes de tábuas úmidas, empilhadas pelos cantos. Examinava, um a um, os objetos já terminados e que obstruíam as passagens. Eram rabiças de arado, buchas, fueiros e cambotas de carros.

Enquanto isso, os companheiros, de peito à mostra, desbastavam com os cepilhos a superfície lustrosa dos planchões. Ou, fungando, suando, ajustavam as peças de encaixe. Por toda a parte, marteladas, gemidos, pragas de arrepiar cabelo. E ele, menino, a deliciar-se com aquilo. A respirar o odor do pinho perfurado pelo ferro em brasa, o frescor da madeira nova, a exalação do pode de verniz, a fumaça do caldeirão de cola de peixe, o almíscar do cansaço humano. Pela claraboia do galpão, entrava, timidamente, um dia ersatz, uma contrafação de céu.

Aos sábados, recebia o minguado salário da semana e, caminho de casa, ia parando pelos alfarrabistas, onde se empilhavam velharias. Eram filigranas poéticas de Oliver Wendel Holmes, confidências rimadas de Longfellow, novelas coloridas de Henri David Thoreau. Tudo isso por um precinho camarada, acessível à sua bolsa. Enquanto os companheiros compravam sapatos, lenços, essências e até mesmo flores para as pequenas, ele gastava os vinténs em cartapácios que ia empilhando na mesa do quarto. Por isso, julgavam-no um esquisitão.

Aos sábados, acendia a vela e lia até tarde. No dia seguinte, era certo, perdia a reunião religiosa no templo do distrito. Os rapazes, à porta do adro, perguntavam de um grupo para outro:

- E o Walt?

- Está decorando o dicionário; já chegou na letra K...

As moçoilas de vestido de roda, touca de palha dourada presa por um laço debaixo do queixo, e tranças de ouro caídas pelas costas, sorriam da gracinha.

O Walt era mesmo excêntrico. Delicado como uma flor, não se constrangia em guardar, na memória, o rude falar dos companheiros de oficina, dos rapazes da rua, dos vendedores da feira, dos mendigos e dos vagabundos que rondavam as portas das casas de bebidas. Colhia aquelas expressões como quem se abaixa para apanhar uma moeda perdida. Ficava a repeti-las, escandindo as sílabas. Naturalmente, estava a ver se a moeda, colhida na sarjeta, era mesmo de ouro de verdade, porém é que ele encontrava em tais frases um sentido novo, mais verdadeiro, mais direto, do que as carunchosas expressões usadas pelos clássicos, colecionadas por ordem alfabética ao longo dos dicionários. A língua que está no dicionário é uma língua morta, a língua que o povo fala é que é a língua viva. Certo dia, sem querer, fez uma descoberta sensacional: era poeta.

Tomou a pena de pato, molhou-a no tinteiro de estanho e se pôs a escrever. Encontrou nesse  [...]encio maior facilidade do que seria esperado. Era um preenchimento para o vasto cotidiano. Uma [...] para a solidão. Uma alegria para as longas horas de exílio entre os homens. Escrevendo, sentia o arrepio do milagre. A vida saía da rua, da oficina, da velha mão de seus pais, dos jardins, das praias e, de um salto louco, vinha precipitar-se no papel, diante de seus olhos. Sentiu-se aprendiz de feiticeiro. Teve medo da forças soltas que pairam terríveis entre o céu e a terra. Sim, era poeta, mas a sua obra não se parecia com a dos outros poetas. Teve medo. Rasgou o papel.

Naquele tempo, o centro literário do país era Boston. Ali, ao redor de circunspectas revistas e ricas empresas editoras, florescia uma literatura erudita e maneirosa. Os escritores inspiravam-se na Idade Média, no Oriente, nos mistérios da Escócia e nos parques da Espanha. tudo isso era escrito em francês, em grego, em latim, até mesmo em inglês. A América ainda mamava na Europa. Naquelas [...] trabalhadas, apareciam os clássicos gregos, os faquires hindus, os espadachins franceses, os [...] espanhóis, os mouros turcomanos. Só não apareciam o pa[...] de Boston, o alegre marinheiro do Mississipi, o formoso nadador dos grandes lagos. A América [...] estava desconhecida e abandonada pela literatura. Walt [...] a América. (N. E.: trechos ilegíveis no original).

Sua poesia era de uma veracidade alarmante. Os versos pareciam livres, esparramavam-se pelo chão,  [...] A terra era a terra adubada a esterco mas rebentada em flores. Os homens eram homens de carne e osso, nascidos nos ranchos do caminho, ou nos casebres das cidades. Falavam com a boca cheia, fumavam matapiolho e soltavam pragas cabeludas. Uns diferiam dos outros pela chama de idealismo que se alteava sobre os seus ombros. A oficina cheirava a  [...] mas a madeira serrada espalhava as mais delicadas essências. [...] a vida à vida!

Intuiu, no entanto, que o seu lugar não era numa carpintaria, mas numa tipografia. Fez-se tipógrafo. Pegava no componedor e  [...] linhas, com desembaraço. E sabia o que estava compondo. E [...] Todos os dias, mudava a  [...] do verso de Malherbe. Naquele tempo, a prensa já se fazia imprensa. Mas as oficinas ainda eram instaladas em porões, em velhas saletas iluminadas por candeias de azeite. Ele trabalhava na rama diante do cavalete negro, onde se empilhavam as caixas de tipos. Essas caixas ainda eram quadradas, como tabuleiros de xadrez. Os caixotins dos tipos ainda eram todos iguais. Quadrados e fundos. Os caracteres eram catados lá dentro, debaixo da poeira. O componedor ainda era de madeira, ajustado por uma cravelha de metal.

Walt trabalhava de sol a sol. Mas, diante de seus olhos, abrindo para o pátio, havia um respiradouro. Uma gateira (N.E.: fresta na parede junto ao chão, para a passagem de gatos). Um buraco recortado na parede, onde, nos dias de primavera, ele via o céu azul e ouvia o trissar das andorinhas.

Certa vez, no meio de uma composição  [... (N.E.: ilegível: tabelioa?)], deu-lhe aquele desvario. Alargou o componedor e, caindo os tipos, voltou a compor, diretamente, uns versos. Era a fatalidade. E, naquelas estrofes, cantava a terra da América, os homens da América, as serras da América, as florestas da América, a vida da América. E pensava lá consigo: se o céu cabe inteirinho naquela gateira, por que motivo a América não caberá no coração do meu verso? Fez daquilo o seu leit motiv. Cantava assim:

- Vem, minha Musa. Vamos deixar a Grécia, que aquele negócio de Tróia já está muito gasto. Vamos por um "Mudou-se" e um "Aluga-se" nos rochedos do velho Parnaso. Façamos o mesmo em Jerusalém, em Jafa e no Monte Mariah. Façamos o mesmo nas preciosas catedrais góticas e nos castelos da Alemanha, da França e da Espanha...

Era um toque de rebelião contra os velhos processos rigorosamente em uso. Ao mesmo tempo, criava a beleza nova:

- Vem conhecer um mundo mais fresco e melhor, este grande mundo que te espera e te quer. Ouvi dizer que procuras alguém que decifre este enigma - O Novo Mundo -, e defina a América e sua atlética Democracia!

E lá vinha, num grito de entusiasmo, toda a beleza jovem da América!

Logo depois, apareceu o primeiro livro de versos desse Walt, que para a posteridade deveria chamar-se Walt Whitman. Leaves of Grass... Para evitar uma surpresa desagradável, ele preparou o espírito. Esperou que a crítica o insultasse, que o xingasse, que o apedrejasse. Não teve essa decepção, mas outra ainda maior. A crítica não o insultou, fez mais do que isso: ignorou-o. Por muitos anos, considerou-o inexistente. Discutia Fulano, Sicrano, Beltrano. Citava bons e maus. Mas não citava Walt Whitman em caso nenhum. Para os críticos ele era transparente. Admiravam os outros, através de sua carne. Nos primeiros anos, ele nem sequer teve o consolo de ser lido por esse menino grande: o povo. A pequena edição de seu livro cobria-se de pó nas prateleiras das livrarias.

Ao cabo de muito tempo, Walt Whitman começou a colher as primeiras flores de sua glória. Operou-se uma revolução no gosto do público. Os temas antigos, por excessivamente usados e repetidos, foram perdendo o seu prestígio. A poesia despiu-se dos enfeites com que a ataviavam. Despenteou-se. Descarnou-se. E, no caos espiritual que se fez, o nome do poeta de Long Island surgiu da sombra como uma estrela sai de traz de uma nuvem. Foi o único a brilhar, durante certo período. Os conservadores ficaram de mau humor. Vociferaram. Atiraram-lhe pedras. Os jornais falaram de seus versos como de monstruosidades concebidas por cérebros enfermos. Acusaram-no dos mais feios crimes. Pediram o seu castigo, na praça pública, para escarmento das novas gerações. O próprio Lowell, crítico de renome, prognosticou sem querer denominar a sua obra de livro, ou de arte ou de poesia: "Essa espécie de coisa que por aí anda não dará certo..."

Então, graças ao tumulto que se fez, o livro começou a vender-se. O leitor sentiu-se chocado pela nova técnica, pela nova sensibilidade, e, geralmente, não gostava. Mas, no seu espírito, já se havia dado a reviravolta. Daí por diante, já não levava a sério tudo que não fosse aquilo. Voltava novamente a Walt Whitman e, dessa vez, mais preparado, gostava. Tornava-se seu partidário. Ia para a rua brigar por ele.

E o livro a vender-se. As edições a se multiplicarem. E a popularidade a crescer de baixo para cima. o homem da charrua levava o seu livro no bolso. Os marinheiros do rio, nos momentos de folga, deitavam-se nos montes de cordas e liam os seus versos. Os operários que almoçavam nos pátios das oficinas repetiam os seus gritos musicais. O mesmo nas estradas batidas de sol, nos adros dos presbitérios, nas tendas de lona armadas sobre a areia das praias. E as crianças. E os velhos. E os presos. E os namorados. Walt Whitman! O poeta venceu sozinho contra a vontade de todos!

Por que? Porque a sua poesia é uma mensagem telegráfica no meio de um século de transbordamentos verbais. uma verdade nua, ainda a escorrer a água do poço, num ambiente esclerosado por praxes, preconceitos e acomodações. Um grito de amor brutal pelas coisas dignas do mundo, num período de atitudes, de influências e de espelhismos. Seu conteúdo era luminoso e diferente. Dizia coias que todos já haviam sentido, mas que ninguém ousara dizer. O Mississipi tem poesia! As Montanhas Rochosas são mais decorativas do que os Alpes! Os éfobos da Luisiania são mais belos que os da Helade! A vida americana é mais alta e mais pura que a de qualquer outro continente!

Como vate, fez vaticínios. Viu em sonhos o futuro da América, mais rica como conteúdo do que como continente. Sentiu a savana, crucificada entre dois polos e dois oceanos. Sentiu que a nossa vida seria diferente da vida de outros países, porque aqui a ordem sobre do chão para o céu, parte dos poetas, dos carpinteiros, dos tipógrafos, dos lenhadores, para constituir-se em regime.

La fora, a ordem desce do céu, como uma cúpula de aço, sobre as multidões inumeráveis. Não se ajusta. A ordem imposta poderá produzir conventos, hospitais e penitenciárias; a ordem espontânea, que decorre da vida nos campos, nas vilas e nas cidades, é a democracia. "A nossa atlética democracia". Ajusta-se como a água ao nadador. É condição de existência, de saúde, de trabalho, de progresso, de bem-estar. Enfim, de vida.

Começou poeta, acabou profeta, o que é a mesma coias, um pouco mais. Cantou a vida singela, o advento de um mundo de paz, de boa vontade de de compreensão dos homens de todas as raças. Criou o misticismo das Américas, exemplo de existência chã, de cordialidade, de solidariedade, de vida inteligente e pura. E tanto a sua alma subiu, alcandorou-se nos aditos do sonho que o seu pobre corpo foi ficando aqui na terra anquilosado, amarfanhado, paralítico. Foi para Camden, Nova Jersey, sentou-se numa cadeira de rodas e ali passou muito tempo à espera do fim. Morreu por partes. Levou dezoito anos para extinguir-se, como um vulcão.

Sua casa era velha, pequena, mas florida. Nas voltas do jardim, à sombra de araucárias, estrelas verdes superpostas, recebia os peregrinos que vinham de longe a fim de apertar-lhe as mãos do esqueleto. Ali pensava em tudo. Até mesmo numa casinha infinitamente menor, toda caiada de branco, com um só compartimento estreito e comprido, que mandara construir num silencioso jardim de Harleigh. Para essa casa mudou-se ao chegar a primavera de 1892. É que a paralisia, crescendo durante dezoito anos, acabava por inutilizar-lhe o sonho. Estava morto.

Há um século, a humanidade lê Walt Whitman. Essa leitura começou no seu torrão. Passou para Boston, que era o centro intelectual do país. Alargou-se por cidades, serras, palacetes, praias e nos rios. Onde os seus versos passavam, as almas sorriam, os homens ficavam melhores. Subiu até o Alasca, e debaixo das tendas de couro, cobertas de gelo, embalou a vigília dos caçadores de focas. Desceu pela América Central, entrou pela América do Sul, contaminou de sonho as almas, acendeu entusiasmos nos corações. Chegou até a terra gelada da Terra do Fogo. Uniu a todos nós, americanos, no mesmo anseio.

Por outro lado, alcançou os velhos continentes. Foi lido ao pé das Pirâmides, à porta do grande deserto. Nas [...] alagadas da Índia, onde as vacas cochilam ao sol, diante dos templos. Nos castelos da Alemanha, da França e da Espanha, onde, nos seus primeiros arroubos, ele mandara colocar avisos de "Aluga-se". Nesses recantos do passado, seus versos foram recebidos  como o sonho de torna-viagem. Era ainda o mesmo sonho, mais humanizado. Partira com Walter Scott, voltava com Walt Whitman. Hoje, à sua voz, os Estados Unidos sentem-se mais unidos. O mundo se beneficia do seu contágio espiritual. Anseia por coisas belas e altas. E, pouco a pouco, vai ficando azul...

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Leva para a página seguinte da série