Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria
O grande revisor
Há muitas maneiras de escrever sobre
Anatole France (N.
E.: o escritor Jacques Anatole François Thibault nasceu em Paris em 16/4/1844 e faleceu em Saint-Cyr-sur-Loire em 12/10/1924).
Uns estudam-lhe as ideias, outros a linguagem. Os bem informados comentam-lhe o ceticismo, a piedade pelos humildes e a agudeza dos conceitos. A
nós, jornalista envelhecido na tarimba, cabe por direito estudar o mais modesto feitio desse escritor que se tornou diferente á força de ser
simples: Anatole France revisor.
Como se sabe, há na imprensa abnegados auxiliares que, das 9 da noite às 3 da madrugada, ficam ao redor de umas quantas mesas a
trabalhar para os leitores, enquanto um lê, em voz alta, a prova que chegou da tipografia, outro vai acompanhando a leitura e conferindo-a com o
original, a fim de corrigir possíveis enganos do linotipista. Os erros que porventura surjam são emendados ao todo, com rabiscos especiais, quase
impenetráveis a olhos leigos.
Esses revisores algumas vezes colaboram com o escritor, como no caso sempre citado das rosas do poeta Malherbe
(N. E.: o poeta François de Malherbe,
considerado o introdutor do rigor na poesia francesa, nasceu em Caen em 1555 e faleceu em Paris em 1628. De um seu poema surgiu o ditado de que uma
coisa "teve a duração da rosa de Malherbe" quando durou muito pouco); no entanto, há ocasiões em que colaboram com o velho sono
que lhes chumba as pálpebras e deixam passar cochilos.
Anatole France, entre muitas coisas, foi um grande revisor. Um revisor das ideias e dos escritos. Tomava qualquer episódio de
conhecimento geral e contava-o à sua maneira. A sua maneira não é, como os desprevenidos possam pensar, com frases arredondadas e bonitinhas. O
mestre nunca perpetrou uma frase bonita. Seus escritos são de limpidez de cristal, de cristal tão puro, que poderia servir de lente para telescópio.
Anatole France tomava, por exemplo, um santo muito respeitável das páginas douradas do Fios Sanctorum e repetia-lhe a
vida cheia de unção, de bênçãos e milagres. Não tirava nada, não acrescentava nada. Escrevia a página com palavras adequadas, em atitude
angelicamente piedosa. No entanto, ao terminar a leitura dessa existência edificante, a que não faltavam suplícios e abnegações, o santo devia
sentir-se ligeiramente comprometido.
O mesmo com a História e a Lenda.
Episódios eternos, contados de mil maneiras em livros sacros e profanos, depois de repetidos por Anatole France, mudaram de
fisionomia. Se não fora a grandeza da sua inteligência, a segurança perfeita da sua técnica, o leitor seria levado a acreditar num fenômeno mais ou
menos corrente, isto é, que o escritor se dispôs a elogiar e o fez com todas as veras da alma, mas, ao longo do trabalho, o Daemon subconsciente foi
vertendo a sua imperceptível maldade e, quando a obra chegou ao fim, já estava úmida de misteriosos filtros. Mas, com Anatole France, tal hipótese
seria ridícula.
Aí está o caso do romance Les Dieux ont Soif. Quantos escritores já haviam escrito sobre a Revolução Francesa? Para uns,
foi o fim de um mundo, para outros o começo de um mundo novo. Nós a conhecíamos, geralmente, através do 93, de Vitor Hugo, ou da Grande
Revolução, de Kropotkine (N. E.: Piotr Kropotkin, geógrafo anarquista e
escritor, nascido em Moscou a 21/12/1842 e falecido em Dmirov a 8/2/1921).
Anatole France foi à Biblioteca, consultou os jornais da época,
aproveitou o título de um editorial para título da obra e contou, a seu modo, o fato histórico. Apresentou-o de tal modo diferente daquilo a que
estávamos habituados que, em certos passos, chegamos a perguntar se não somos vítimas do bom humor do romancista.
Não se ouve tiro, não se suporta arenga, não se vê o povo de Paris
agitar-se em protestos e correrias. Um ambiente de quase normalidade. As figuras capitais do drama político desfilam, à distância, cheias de
humanidade, exatamente como deveriam ter sido na sua existência de homens de carne e osso. O que se encontra nas páginas desse livro é a vida
inquieta, cheia de apreensões dos habitantes de Paris. As filas de fregueses diante dos estancos vazios. Os aristocratas fabricando bonecas nas
trapeiras para, com o seu produto, comprarem pão preto. As intrigas dos rábulas, dos pintores e dos filósofos. Dos panfletistas desabusados. Dos
herbertistas verrineiros. E daquelas mulheres a quem, no decorrer da leitura, a gente vai atribuindo os nomes com que, possivelmente, figuram na
História.
Mas não é um Paris sanguinolento; é um Paris quase alegre, onde se
ama, se conta anedota, se fazem pequenas perfídias e transações. Onde as cuscuvilheiras, donas da cidade, invadem as assembleias e, enquanto se
discute a salvação pública, vão urdindo conscienciosamente os seus tricôs.
Seria curioso indagar como o escritor realizou semelhante revisão
histórica. Pois realizou-a com simplicidade, do modo mais chão deste mundo. Com tiras de papel, ainda úmido, à sua frente. Substituindo palavras,
reformando frases inteiras, transpondo períodos, riscando exclamações e reticências. Com isso, tirou os dourados da epopeia, alcançou a verdade nua.
Esse homem que começou a vida como caixeiro de livraria, que devorava
os volumes antes de vendê-los, tinha paixão pela letra de forma. E, ao mesmo tempo, era um escravo servil da lógica. Sua ficção é sempre um ladrilho
de realidades. Conheceu todos os mistérios, toda as sutilezas do idioma. A revisão tornou-se-lhe o mais agradável dos passatempos.
Uns jogam xadrez, outros pescam. Há os que entendem de cavalos e os
que dão tudo para colecionar alguma coisa. Anatole France tinha a sua paixão; revisava provas. Essa paixão tornou-se-lhe tão absorvente que, com o
tempo, as faculdades criadoras foram se lhe tornando penosas. Escrever para quê? Qualquer trecho de prosa, depois da 12ª revisão, começava a ser de
Anatole France. Fosse embora um apontamento da sra. Caillavet, ou um verbete de Larousse.
E tinha razão. A sua linguagem, na literatura da França, que brilha
entre as demais pelo aticismo, pela clareza, pela rigorosa propriedade de expressão, conseguiu chegar em suas mãos a uma pureza sem precedentes.
Diante dele, Renan, que conquistou a última simplicidade ao escrever, considerar-se-ia abstruso. Anatole France alcançou a essa superioridade
cultivando a clareza e a lógica. Na literatura e na vida atingiu a uma escandalosa simplicidade. Revisou tudo; fatos, homens, escritos.
O seu Paulo de Tarso é um santo passado a limpo. Nem por isso menos
belo. Nenhuma palavra a mais,nenhuma expressão forçada, nenhuma frase de efeito. Apenas a exposição seca e exata daquilo que era preciso dizer, isto
é, daquilo que, na realidade, o filósofo cristão deveria ter sido. Para tanto, bastou cortar as rebarbas dos velhos textos, os desmandos dos
estilistas, os ouropéis dos escribas. Saiu obra perfeita. Obra de revisão...
Meio século de vida intelectual da humanidade foi passado na
contemplação desse revisar singular, e na leitura dos seus escritos que alarmavam, e continuam a alarmar, pela simplicidade e lógica. Ele via o
mundo como o mundo era, ou como deveria ter sido em determinado momento. Tirava-lhe tudo quanto o homem havia acrescentado na ânsia de turvar, de
dourar, ou de ajeitar. E muita gente pasmava de ele ver o que os outros não viam. Todo o pensamento só tem uma forma exata de expressão; essa forma
exata era a de Anatole France. E, nesse desespero, ele revisava, revisava...
Já velho, vamos encontrá-lo em Vila Said N. 13. Era mau conferencista,
péssimo conversador. um homem triste, acabrunhado pela visão permanente de um esqueleto: a realidade. No entanto, pelo seu salão passava o mundo
inteiro. Principalmente uns sujeitos de roupa de veludo, alpercatas e boné de couro, que vinham dos bairros para ouvi-lo sobre assuntos graves. Foi
para esses homens que ele escreveu Sur la pierre blanche. Despediam-se confortados, apertando-lhe as mãos diáfanas, nas suas mãos de pedra. É
que, por aquele tempo, Anatole France estava fazendo a mais dura de suas revisões: a revisão do comércio entre os seres humanos.
Passou a guerra de 1914 a 1918. O mundo compreendeu que tinha
realizado esforço imenso em troca de quase nada. A banlieue despejou a sua sub-humanidade nos boulevards. A Vila Said N. 13 tornou-se
mais popular do que a Downing Street n. 10. A multidão invadiu Paris. E, à frente da chusma vociferante, apareceu o homem mais calmo, mais simples e
mais sereno do mundo. Ele, velhinho, empunhava uma bandeira - a das inquietações populares.
Estava fazendo, na rua, simultaneamente, duas revisões: a revisão dos
seus sedentários oitenta anos de vida e a revisão dos destinos humanos.
Affonso Schmidt
Imagem: Anatole France, em reprodução parcial da pagina com
a matéria |