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Exaltação
Felipe estava nos dezesseis anos. Era pequeno,
pálido, mal vestido. Naquela figurinha insignificante defrontavam-se duas personalidades fortes: o songa-monga chegado da roça e o espadachim que
nele brotara e crescera, pela leitura dos romances de capa e espada. Isso significava para ele completa inadaptabilidade à vida comum. Não levava a
existência nem falava a língua dos rapazinhos da sua idade.
A família residia num lugarejo e fazia sacrifícios para que ele estudasse. Todos os meses, mandava-lhe modesta soma que mal
chegava para a escola e a pensão, em modestíssimo hotel, situado no fim do bairro, em frente à Estação do Norte. Era uma casa velha, verde, e tão
baixinha que havia tentação da gente entrar e sair pelas janelas. O letreiro aparecia numa lanterna, sobre o portão. Era assim: Hotel Canta (e na
frente do "canta" haviam pintado um galo, a fim de que o público lesse Hotel Cantagalo...).
Os quartos abriam porta e meia-porta para um quadrado interno, de chão batido, onde, nos dias de chuva, empoçava a água das
goteiras. O seu cubículo estava cheio de in-fólios. Eram Dumas, Murger, Julio Vallés e nomes que, depois, nunca mais encontrou nos sebos. Só
não havia livros escolares. Esses lhe causavam tédio. Os alfarrabistas mostravam-se íntimos de Felipe. Aquela senhora idosa do Largo da Sé, aquela
francesa da Galeria de Cristal que, tendo aprendido português em Lisboa, falava à moda alfacinha
(N.E.: alfacinha é um apelido português para os moradores de Lisboa, relacionado com as
preferências alimentares). Mais tarde, o Gazeau, o Bibliófilo da Rua de São Bento...
Eles estavam habituados a vê-lo remexer nas estantes, ou nas rumas de
alcaides, a preços módicos, desentranhando volumes de poesias e romances-folhetins. Mantinha com tais mercadorias um "modus vivendi" útil
para todos. Comprava hoje o cartapácio, lia-o durante a noite e, no dia seguinte, religiosamente, ia restituí-lo pela quarta parte do custo. Não
dava para enriquecer a ninguém, mas, que diacho, satisfazia ao freguês e aos alfarrabistas.
Exaltado por essa leitura, Felipe acabou por criar um mundo à parte.
Seu corpo franzino andava por aqui, enjoado do ramerrão cotidiano, mas o espírito, descabeladamente romântico, vagabundeava lá por longe, nas velhas
e pitorescas cidades da Europa... Por isso, onde quer que se encontrasse, estava sempre ausente. Como não tivesse professor de esgrima, nunca
praticou outro esporte. E por falta de professor de pavunas e minuetos, nunca aprendeu a dançar as polcas, schottischs e valsas que alegravam
os salões.
Sentia-se, inexplicavelmente, príncipe. E, embora príncipe,
frequentava, na sua imaginação, o Café Inglês, ali no Boulevard dos Italianos, e os bailes noturnos do Moulin de la Galette, onde dançavam
estudantes, pintores e líricas grisettes...
Era entre tal gente que ele, no quartinho humilde, se expandia.
Conhecia a todos pelos nomes, tomava parte nas suas aventuras, idílios tristezas e anseios de glória. A vida que levava era uma espécie de sala de
espera onde fazia tempo para, um dia, ir procurá-los. E, nessa atitude, não se interessava pela vida: ela lhe parecia vaga, esfumada, inexistente.
Foi por essa época que ele, passando pela cidade, estacou diante de um
cartaz. Não tinha nada de maravilhoso. Dizia apenas: "Politeama Concerto - Empresa J. Cateysson & Ola - Tournée Seguin - Gerente J. Saldanha - Todas
as noites grandes atrações - Estreia de (e aqui as letras se tornavam garrafais) FANNY MURGER - a musa dos estudantes de Paris".
Não leu mais. Aquilo foi suficiente para lhe dar um repelão na
sensibilidade. Viu-a logo. Era uma "conhecida". Bastaria apresentar-se e a moça lhe sorriria, como a velho amigo. Fanny era Paris; Murger era o
Quartier Latin. Toda gente ficaria admirada de ver a estrela montmartroise
(N. E.: Montmartre e Quartier Latin, ou Bairro Latino, são bairros centrais da cidade de Paris)
sair do grupo de seus amigos e dirigir-se ao mocinho anônimo, perguntando-lhe por um pintor ou um poeta das suas relações. E o sonho abriu asas,
encheu a cidade, subiu para lá das nuvens. Iria essa noite ao Politeama... E foi.
Desceu a Ladeira de São João e parou diante dos muros lambuzados de
cartazes. A porta era larga e dava acesso a um corredor assoalhado, que se perdia no fundo do barracão. Globos incandescentes, à entrada, davam-lhe
aspecto festivo. Os rapazes entravam aos grupos, de fraque, calças de listas, gravata borboleta, chapéu de palha posto de banda, lencinho branco no
bolso de cima, polainas brancas e lapelas floridas.
De quando em quando, um carro puxado por dois cavalos estacava à porta
e deles desciam mulheres de beleza sensacional. Passando, envolviam a turba numa onda de perfume. Seus nomes eram repetidos de boca em boca. E elas
entravam, arrastando a cauda dos vestidos, sacudindo as plumas do chapéu, orgulhosas como rainhas.
Felipe aproximou-se do guichê e pediu uma torrinha. O
bilheteiro não lhe deu atenção.
- Na outra porta.
Isso causou-lhe decepção... A outra porta estava dissimulada entre
imensos cartazes. Diante dela, viu reunidas algumas pessoas, mas não eram as mesmas da outra porta. Tudo gente encardida, de sapatos de bezerro,
chapéu de palha escurecida pelo tempo; discutindo, ensaiavam ali mesmo as figuras de um maxixe em voga. Alguém disse que aquela gente era a
claque, isto é, uns sujeitos pagos para aplaudir e orientar as palmas do público, encaminhando-as para este ou aquele artista. Logo depois, viu
que era verdade. Um homem de chapéu batido, lenço no pescoço, o chefe da turma, deu-lhes instruções:
- A atração de hoje é a francesinha!
Felipe seguiu pelo corredor do casarão em ruínas. Ao fundo, um
porteiro ensinou-lhe o caminho. Os da plateia transpunham a grade baixa e iam procurar as suas poltronas; os do galinheiro subiam a velha
escada e lá, em cima, disputavam um lugar junto ao balaustre; quanto mais fronteiro ao palco, melhor.
Ficou entre um caipira sequioso de coisas proibidas e um malandro que,
logo depois, lhe oferecia um relógio vistoso, que lhe haviam dado em pagamento de cinquenta mil réis, mas que ele estava disposto a passar adiante
por quaisquer vinte mil réis. O songa-monga deu-lhe atenção, mas o espadachim torceu os bigodes e falou:
- Cavalheiro, isso não é negócio para mim: talvez o seja para este
espectador ao lado.
A plateia se foi enchendo de felizardos, aqueles que de mais próximo
iam ouvir Fanny Murger. Como poderia avantajar-se-lhes na preferência da cantora? Eles estavam bem vestidos. Sabiam dizer coisas lindas. Eram
atrevidos. Habituados àquele mundo de beleza. E, enquanto o espetáculo não começava, pôs-se a ler os anúncios do pano de boca: Dalivais Nunes, Casa
Hannau, O Gato Preto, Hotel Albion, Au Bon Diable, Emporio Toscano, Au Bon Marché, A Bota Elegante...
Retiniu uma campainha, depois outra... A claridade inundou a sala.
Um holofote atirou o seu foco luminoso, deslizou de um lado para outro
até acertar no palco. Depois sumiu. Devia ser experiência. Nova campainha e a orquestra atacou a Cavalaria Ligeira, de Suppé.
Terminada a musica, o pano de boca subiu lentamente para o teto,
deixando em seu lugar uma cortina toda salpicada de escamas metálicas; batida pela luz cambiante do holofote, brilhou como arco-íris. Mas o
espetáculo demorava; por isso, a sala entrou a bater os pés. Não contente com isso, fez uma gritaria. Lá, nas primeiras filas, o dono do Reporter,
semanário da folia, ficou em pé e bradou:
- Começa ou não começa?
A cortina abri-se para os lados e o espetáculo teve início. Os números
foram se sucedendo. Dois cantores alpinos, em trajes característicos, tocaram gaita de fole e deram gritos razoáveis. Seguiram-se-lhes dois
clowns que faziam o diabo a quatro, em suas bicicletas. Entraram girando ao redor do palco, como quaisquer ciclistas, depois treparam no
assento, ficaram em pé, equilibraram-se numa roda só e acabaram dançando a valsa Patinadores com a mesma facilidade com que o fariam se
estivessem num salão de baile. A casa gritava - "chega! Chega!" mas os ciclistas não se incomodavam. A claque cobriu-os de palmas e eles se
despediram, inclinando a cabeça até quase o chão.
A seguir, entrou uma cantora espanhola, exímia em fandangos e boleros.
Logo mais, e aparecia um imitador de Frégoli que, visivelmente, mudava a roupa debaixo da mesa e, por isso, retirou-se do palco entre gritos,
risadas e apóstrofes de tirar couro e cabelo.
O primeiro ato terminou com dois chineses malabaristas. Manejavam
pratos, facas e bolas de vidro. Faziam coisas incríveis. Por fim, quando tinham no ar a bandeja, os pratos e os copos, atiraram, de supetão, a
bandeja sobre a plateia. Foi um susto. Ela girou, girou, sobre muitas cabeças, e voltou ao palco, indo cair aos pés do malabarista. Este atirou-a de
novo para as primeiras filas. Todo o mundo riu. Era de papelão, como as bandejas de confeitaria. E o pano de boca foi descendo, descendo...
O intervalo pareceu-lhe longo. A plateia quase se esvaziou. Só ficaram
alguns cavalheiros que bebiam nas mesinhas postas ao lado das poltronas. Os que saíram formaram grupos pelo corredor, ou no pátio interno,em aberto,
por onde se viam a lua e as estrelas. Bebiam e conversavam. Alguns afeiçoados se dirigiram a certa cabana negra, e ali, empunhando espingardas,
derriçaram nos cachimbos de barro que giravam incessantemente. Só se ouvia tlás, tlás... De quando em quando, um cachimbo voava em estilhas... E
havia gritos de triunfo...
Felipe andou de um lado para outro e acabou por se interessar pelo
automático que funcionava mediante uma moeda de dois tostões. Chegando os olhos ao óculo, podia-se apreciar fotografias que iam se substituindo lá
dentro. Aquilo cheirava a coisa proibida. O songa-monga, ao introduzir a moeda na abertura da máquina, sentiu-se envergonhadíssimo, mas o espadachim
torceu os bigodes ausentes. E tinha razão. Aquilo era tão pobre, tão reles, que dava pena. Viam-se moças banhistas envergando roupões para baixo dos
joelhos, com gola afogada e grandes babados que mais pareciam vestidos de baile. Ou então mulheres ciclistas, de chapéus, mangas-balão e calções
muito fofos, que terminavam em meias de riscas brancas e pretas, como uniforme de penitenciários.
Súbito, ouviu-se a campainha. O público disperso refluiu para a
plateia e as galerias. Felipe grimpou pela escada e só foi alcançar um lugarzinho lá no fim, a algumas braças do palco. Debruçou-se sobre o
balaustre. O coração palpitava, ia à primeira entrevista de amor. Não, não era bem isso. Mas era como se fosse. Sua imaginação tinha partido as
rédeas e andava à solta, como grande mariposa, a bater pelas poltronas, pelas paredes, a esvoaçar ao redor das lâmpadas.
A orquestra se fez ouvir num trecho do Poeta e Camponês. Alguns
rapazes, de luvas, acompanhavam a música, fazendo molinetes com a bengala. Novo silêncio. Novo bater de pés. O Cícero, segurando jornais na mão
enluvada, fez barulho:
- Isso é para hoje ou para amanhã?
Subiu o pano de boca, abriu-se a cortina lamée e o segundo ato
começou por Onoto, o homem mecânico. Davam-lhe corda com uma manivela e ele, passos e gestos sacudidos, estalidos secos pelas juntas,
realizava uma série de ações, como se se tratasse, efetivamente, de um boneco de engonço. Mas, ao terminar o número, o robot virava gente,
cumprimentava a sala e se retirava entre escassas palmas das torrinhas. Muitos, muitos anos depois, ele reapareceu aí pela cidade, fazendo
nas ruas a mesma gracinha de 1905, mas desta vez para inculcar determinada marca de cigarros.
Seguiram-no dois clowns em barra fixa. Eram calvos, mas ao
contrário: mostravam o crânio todo pelado, menos na parte em que muitos homens são calvos. Nessa parte, ostentavam um topete vermelho, de ponta para
trás. Entraram andando de quatro, como bichos. O primeiro subiu como gato pela trave da barra e o segundo, também. Ficaram lá em cima, empoleirados,
na vara delgada. A seguir, desceram pela trave oposta, como os gatos descem. O primeiro pendurou-se na barra e se pôs a girar. O segundo, também.
Faziam coisas de arrepiar o cabelo. E davam uns guinchos de macacos, que muito divertiam a sala.
Afinal, depois de vários números, como great attraction, a doce
Fanny Murger foi a chave de ouro com que se encerrou o espetáculo. Ela era, precisamente, como Felipe havia imaginado: pequenina, um quase-nada
tímida, deliciosa. Mostrou-se contrafeita diante do público. Aproximando-se da boca de cena, estacou indecisa, os braços caídos ao longo do corpo,
levantando0 e abaixando as pontas dos dedos unidos, a ensaiar voo. Fez sinal ao maestro e sorriu. Depois, cantou velhas canções do Bairro Latino. E
terminou com uma melodia que, mais tarde, foi traduzida e virou carne-de-vaca. Era La Lune. Um acontecimento. No fim de cada estrofe, a
assistência acompanhava-a no estribilho, cantando em vozeirão profundo:
"La lu-une!"
Ao terminar esse número,um pretinho vestido de vermelho entrou
carregando vistosa cesta de rosas e foi colocá-la a seus pés. Fanny ergueu-a, aspirou-lhe o perfume, beijou as flores. A Pala aplaudiu a musa dos
estudantes, o beijo, as rosas, o pretinho. E, lá em cima no seu posto, o namorado desconhecido acompanhava todas essas cenas com olhos muito
abertos. Não foi de outra maneira que Gerald de Nerbul amou a Genny Colon (N.E.: o
poeta Gérard de Nerval, nascido em 2/5/1808 em Paris - onde se suicidaria em 25/1/1855 -, apaixonou-se em 1836 pela atriz Jenny Colon, que o
inspirou para a criação da obra Aurélia, mas que o deixou para se casar com outro, em 1841)...
O pano desceu. O público procurou as portas do barracão. Um vozerio.
Fora, os bondes passavam, martelando as campainhas. Os jornaleiros, nas imediações do Politeama, apregoavam as folhas. Uns vendiam jornais da tarde:
"Três cem réis!". Outros esgoelavam-se apregoando: "Jornais do Rio! Jornais do Rio!".
Os carros de praça estacionavam na porta da boate. Os espectadores que
saíam foram ficando por ali, para conversar, ou para ver os artistas. O "Onoto" foi o primeiro a aparecer, com o seu jeitão de boneco de molas.
Tinha a fisionomia imóvel, uns gestos angulosos, parecia que ainda estava no palco. Os chineses saíram num grupo, acompanhados de uma velha magra,
com chapéu de homem. Cada um deles levava a sua valise. Ali, com certeza, iam as cabalas de seda cor de gema de ovo e os misteriosos arames, para os
truques...
Um empregado, vara na mão, começou a apagar os globos incandescentes.
Nuvens de mariposas, com cabeça de esfinge, rodopiavam no ar, batiam nos transeuntes, nas paredes, e acabavam caindo no chão. Sobre o passeio,
acumulava-se uma lama escorregadia, de mariposas esmagadas. O corredor ficou escuro. Os cartazes pintados a sete cores se dissolveram na sombra.
Cheirava a tabaco, a estopa úmida, a fermento de cerveja.
Foi nessa escuridão que apareceu Fanny Murger. Era facilmente
reconhecível, embora sem a maquiagem que usava no palco. Atrás dela, vinha a criada, de uma feiura alarmante, carregando a cesta de rosas. A cantora
chegou até a porta, arrastando a cauda do vestido preto, muito afogado, balançando no ar a pluma do chapéu. Ali parou, hesitante, para não pisar na
lama de mariposas. Nem reparou no meninote que, encostado ao cartaz - "Todas as noites estreias sensacionais" - a fitava com olhos de admiração e
ternura. Esperou que o cocheiro descesse da boleia e abrisse a portinhola, o que ele fez tirando o boné, num grande gesto. Só então atravessou o
passeio, arrepanhando com graça a cauda do vestido, e, nas pontas dos exíguos borzeguins, chegou até o carro. "Quelle cochonnerie..."
(N. E.: francês: "Que porcaria...")
E foi sentar no fundo. A criada sentou-se ao lado. O cocheiro ainda
esperou qualquer coisa. Essa qualquer coisa era o comendador Barata, tipo comum de vieux marcheur. Magro, meão, cabelos e bigodes brancos,
mas com gaiatices de rapazola. Vestia terno de fraque cinzento, chapéu de coco da mesma cor, orquídea na lapela, o monóculo pendurado num cordão
preto. De quando em quando, cofiava o bigodinho de algodão e, nesse gesto, cegava a gente com o coruscar dos diamantes. A cada passo, era detido por
grupos de garçons, de porteiros, de pequenos funcionários do teatro, que lhe estendiam a mão em concha. Ia distribuindo gorjetas, de um lado e de
outro, mostrando os dentes anilados.
O próprio cocheiro, abrindo-lhe a portinhola do carro, aventurou a mão
gorda, com manchas roxas. E ele, caçando as pratas no bolso do colete, satisfez-lhe a ganância. Sentou-se no banco da frente, em face da cantora,
deu ordens ao cocheiro e o veículo partiu pela Rua de São João, naturalmente para os restaurantes noturnos, onde havia caviar e champanha.
Felipe ainda ficou por ali. Os últimos noctâmbulos ainda conversavam
nas sombras das portas, quando o céu começou a peneirar uma garoa fina, que ficava a brilhar como lantejoulas nas capas e nos paletós de lã. Só
então o rapazinho regressou ao bairro, ao quartinho dos fundos, cheio de livros, de livros e de sonhos. Fanny Murger, na sua vida anedótica e
sentimental, nunca soube disso. Se alguém lhe houvesse contado, estou a vê-la, teria entreaberto os dentes perfeitos - "V'lá, quel drole de gosse!..."
(N. E.: francês: "Ora, que garoto engraçado!)
Deitou-se, mas não pôde dormir. O songa-monga e o espadachim, que
constituíam a sua personalidade, estavam em conflito. Dizia o espadachim:
- Eu devia ter comprado um ramalhete de rosas, mais belo do que o do
velhote, e, no intervalo, procurá-la na caixa do teatro. Entregando-o, falar-lhe-ia dos meus sentimentos...
Mas o songa-monga não acreditou no êxito da façanha. E, para provar ao
espadachim, acendeu a luz, tomou de um giz, encostou-se à parede e fez um risco, bem na altura do cocuruto. Depois, afastou-se dois passos e,
contemplando o traço branco, avaliou a própria altura.
- Está vendo? Não adiantaria nada... Com esta alturinha e esta roupa
cor de burro quando foge, ela não levaria a sério minhas palavras...
Voltou a deitar-se e ficou a ouvir a briga do songa-monga com o
espadachim. Só conseguiu fechar os olhos quando os galos amiudaram e, pelo pátio ainda escuro, ouviu o pigarro dos hóspedes que deviam tomar o trem
das cinco e meia...
Affonso Schmidt
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