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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 29

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 5 da edição de 27 de fevereiro de 1944 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Pinga-Fogo

O Largo do Carmo tem sofrido muitas reformas. Há quarenta anos, apresentava-se ainda com bastiões e muralhas denteadas, dando a impressão de uma fortaleza. Mais tarde, a ladeira foi alargada e os barrancos próximos transformados em avenidas e jardins. Agora, com a demolição do mosteiro e do antigo quartel que lhe ficava ao lado, novo plano de aformoseamento está sendo posto em execução. Do primitivo terreiro do Carmo só restam algumas paredes da igreja feitas de taipa de pilão, em vias de desaparecerem para sempre. E os moços das novas gerações já não poderão fazer uma ideia aproximada do que foi, no passado, aquela parte de São Paulo a que as crônicas chamam de terreiro, depois de pátio e por último de Largo do Carmo.

Muitos ainda se lembram do velho convento construído em 1594. Era um extenso edifício de dois lances, de frontaria humilde, sombreada por beirais de meia braça, com duas ordens de janelas de arco que, há quase um século, passaram a ser defendidas por escuras grades de ferro. Tinha de um lado a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, cujos últimos vestígios ainda ali podem ser vistos, e de outro lado um casarão de igual catadura que primeiro foi hospital, depois quartel dos Permanentes, da Guarda Cívica etc. Há quarenta anos (N. E.: anos iniciais do século XX, portanto) São Paulo ainda acertava os seus relógios "estrada de ferro" por um toque de clarim, comprido e saudoso, que se fazia ouvir à noite, às oito horas em ponto, rasgando a garoa e a sensibilidade dos leais paulistanos.

Ali por 1850 o Convento do Carmo ainda estava no seu esplendor. Tinha sido até pouco antes um centro de cultura, ao gosto do tempo. Ainda se falava com saudade da erudição dos Mestres Carmelitas chegados do Rio de Janeiro. As palavras de Frei Luiz de Santa Catarina Sá, professor de Filosofia, não estavam esquecidas. As lições de Frei Antonio do Bom Despacho, professor de Teologia, tinham deixado um eco no fundo das salas ermas. Quando o noviciado e os cursos acabaram, os bons carmelitas, de acordo com uma velha tradição, continuaram a abrigar doze estudantes pobres, daqueles que vinham de toda parte da Província para fazer seus estudos na Academia e que, à míngua de recursos, se desencaminhavam pelo Beco das Minas, ou participavam das estripulias da famosa turma do Boi. Os santos carmelitas, com o intuito de desviá-los do mau caminho, davam-lhes um mocho à sua mesa e um saco de espigar, para servir-lhes de colchão, em cubículos cheios de ratos e goteiras.

Os frades e os estudantes se entendiam muito bem. Viviam como Deus e os anjos. Mas isso só foi possível até a chegada de com Antonio Inacio do Coração de Jesus e Melo, na comprida sucessão dos priores. Era um frade velho, enxuto de carnes, irritadiço, que falava em frases curtas e ásperas. Diziam-no turrão e irascível. E "tão restrito que levava a economia à avareza".

A cidade inteira sabia dessas coisas. Os dois escravos sentiram logo os efeitos da sua presença. Ordenou-lhes que transformassem em horta o vasto quintal do mosteiro e, dentro de pouco, exigiu que essas terras produzissem o suficiente para mantimento dos Irmãos da Ordem, os estudantes recebidos de favor e os clérigos que, passando por S. Paulo, ali encontravam tradicionalmente casa, cama e mesa.

Desde o primeiro dia frei Antonio Inacio não viu com bons olhos aqueles rapazes, de uma pontualidade angélica nas refeições, mas que se mostravam ariscos às missas e novenas da Igreja contígua. O mesmo com aqueles bondosos prelados, de mãos alvas e palavras macias, que discutiam política trinchando leitões de courinho pururuca.

O velho passou a tratá-los à distância. Isso, porém, foi levado à conta do seu temperamento e os hóspedes não se amofinaram. Mas a mudança não terminou aí. Quando os escravos começaram a levar, diariamente, à cozinha braçadas de tronchos, de repolhos e  de alfaces, o santo Prior, zeloso do patrimônio da Ordem, achou de bom aviso substituir o cozinheiro. O irmão leito procedente da Bahia exímio em cacurus e munguzás foi substituído por outro, chegado de Itapecerica, pobre de espírito, que só sabia fazer angu de farinha de milho com couve picadinha. Ou quibebe de abóbora com carne de fumeiro. Desse dia por diante, os bondosos hóspedes começaram a rarear até que desapareceram de todo. O Prior, ao verificar a ausência, foi visto a esfregar as mãos, em sinal de contentamento.

Os estudantes não tiveram melhor sorte. Eles, que estavam habituados a uma doce amizade com os pios varões, de almas puras sempre voltadas para o céu, tiveram de avir-se com um zelador ferrenho na manutenção das normas conventuais. Deu ordens categóricas para que, depois do toque de recolher, nenhum retardatário fosse recebido sob o abençoado teto. Todos os estudantes, informados dessa resolução, se insurgiram contra ela. Todos, menos um. Esse um, de quem a crônica não registra o nome, era aluno do Curral dos Bichos. Os colegas tinham-no mesmo na conta de "bicho crônico", a julgar pela sua longa fé de ofício de reprovações.

Os companheiros chamavam-no Pinga-Fogo, vão lá saber porque. Era um rapazola de vinte anos, magro, alto, um pouco arcado para a frente. Seu guarda-roupa não mereceria as honras de uma referência, pois só contava um traje: robição de briche, calças de ganga, botinas de elástico que andavam pela vigésima meia sola, chapéu de copa alta e afunilada, posto a três pancadas, sobre uns cabelos escorridos que batiam pelos ombros. Ajunte-se a isso o "cachecol", com uma ponta para a frente e outra para trás, um lenço preto enrolado ao pescoço, à guisa de gravata, e ter-se-á ligeiro retrato daquele Pinga-Fogo que, na pasmaceira do tempo, era tido como levado da breca.

Quando soube do regulamento estabelecido por frei Antonio Inacio, não vociferou, como os demais. Ao contrário, com um otimismo de velho farsante, achou que era justo. O piedoso varão, por força de seus compromissos, não poderia agir de outra maneira. os companheiros ficaram boquiabertos diante do espírito de conciliação que o animava.

É verdade que, naquela mesma noite, já passavam das onze horas, o fradinho porteiro teve de comprometer a própria salvação transgredindo as ordens do Prior para lhe dar furtiva entrada, sob pena de deixá-lo entanguido e choroso a dormir no pátio externo do Convento. "Uma vez, vá lá. Mas não repita a façanha. E na segunda noite, ali pelas três da madrugada, o mesmo porteiro ouviu alguém bater com os nós dos dedos, mui levemente, no grosso madeiramento da porta. Quem seria? Abriu medrosamente a porta e - seria possível? - lá estava o Pinga-Fogo, tão encharcado e entanguido que bem poderia mudar o nome para Pinga-Água... Novas lamúrias. Novo protesto do angélico fradinho. E- seja tudo pela infinita misericórdia de Deus - lá entrou ele, nas pontas dos pés, deixando rastos escuros pelo corredor.

Logo depois, frei Antonio Inacio, que tinha o hábito de passar a noite a andar, de um lado para ouro, falando sozinho, deu com aquelas pegadas e foi entender-se com o irmão porteiro.

- Quem foi o valdevinos que entrou de madrugada, depois da orgia?

O pobre do fradinho não sabia mentir.

- Foi o Pinga-Fogo.

- E o irmão deixou-o entrar?

O fradinho abaixou, humildemente, a cabeça.

Frei Antonio Inacio esteve para estourar, mas disse:

- Espero que seja a última vez.

E afastou-se, remoendo descomposturas.

Data daquela noite a sua ojeriza pelos estudantes. Começou por agravar ainda mais a disciplina: quem não assistisse diariamente ao santo sacrifício da Missa, não teria direito à hospedagem do convento. E a determinação foi cumprida à risca. Os rapazes eram piedosos, como toda gente: estavam dispostos a assistir à missa, que era um doce dever para os fiéis. Mas, imposta daquele modo, desgostou-os. Acordar-se às cinco e meia da manhã para ter direito a sentar-se a uma mesa onde só havia angu com couve, clamava aos céus.

Por isso, um a um, eles se foram transferindo para conventos mais liberais. O próprio Pinga-Fogo desapareceu. Mas, por castigo, numa noite em que ele se demorara no ilhéu, teve de sair debaixo de chuva. Correu ao convento. Bateu com os nós dos dedos na porta. Nada. Puxou a aldrava de ferro, ouvindo o retinir da campainha. Nada.

Deu a volta pela Rua da Boa Morte, desceu um beco a pique e se viu diante do muro do convento. Era baixo, com árvores frutíferas que nasciam dentro e se esgalhavam do lado de fora. Sem grandes dificuldades, saltou-o e foi cair na horta, onde os coitados dos pretos trabucavam, duramente, de sol a sol. Acercou-se de uma das portas do fundo e, com a ponta do canivete, fez girar a tramela. A pesada porta abriu-se. Caminhou pelo corredor do claustro, que atravessava o edifício de lés a lés. Esse corredor tinha um nicho em cada extremidade; em cada nicho velava suavemente uma lamparina.

A essa misteriosa luz, o estudante viu uma coisa que nunca teria imaginado. Frei Antonio Inacio, muito magro, muito alto, as mãos para trás, andava lentamente de um lado para outro, a falar sozinho. Com certeza devia estar rezando. Por isso, o estudante arrependeu-se de todo o mal que dele havia pensado, dito e ouvido. O Prior levava vida de santo. Trabalhava de dia, defendendo com usura os bens da Ordem, e gastava as noites entregue àquelas virtuosas vigílias. Na claridade do sol é que se trabalha, mas na sombra, no silêncio e na quietação das horas mortas é que se conversa com Deus...

Apesar desses bons conceitos, aproveitou um instante em que o frade lhe dava as costas e, cautelosamente, deslizou para uma das celas vazias, tão suas conhecidas. Despiu a roupa encharcada e estendeu-a no chão, para que enxugasse até o dia seguinte. Depois, tratou de acomodar-se o melhor que pôde sobre uns sacos de espigas secas. Não conseguiu dormir. Quando o silêncio se fez completo no velho claustro, cheio de ratos, de morcegos e de fantasmas, passou a ouvir novamente o chéque-chéque das sandálias do prior sobre os pranchões do assoalho.

Ele ia e vinha vagarosamente como contando os passos. E rezava em voz alta. Cada vez que passava diante da cela em que se hospedara o estudante, crescia o sussurro de sua voz. Algumas palavras chegavam a ser compreensíveis. A tal ponto que, de uma feita, o estudante apanhou no ar a palavra biltre. Só podia ser engano. Em todo o livro de Horas não há uma só prece, nem mesmo verberando a malignidade do gênio do Mal, que contenha tão horrorosa palavra. Podia ser algum vocábulo latino de som parecido. E, novamente, procurou dormir. Mas o prior, numa de suas idas e vindas, parou-lhe diante da porta e exclamou:

- Mando-te buscar sob vara!

Isso agora, também era demais. O estudante chegou a recear o estado da própria cabeça. Devia estar delirando. E mais para certificar-se do seu estado mental do que por desconfiar da pureza daquele pio varão, levantou-se, foi à porta, abriu uma fresta de meia polegada e, muito escondido,começou a espiar o frade. Lá vinha ele. Chegando defronte da porta, estacou e, ameaçando o estudante com um fura-bolos hirto, que mais parecia um bastão, apostrofou-o:

- Não penses que me empulhas! Toda a cidade sabe que és um valdevinos. Há muito que espias de olho comprido os magros vinténs da Ordem que eu defendo com o meu burel! Mas não julgues que eu, por ser frade, não saiba defender-me das tuas arremetidas!

Pinga-Fogo, assustado, perguntou aos seus botões se era consigo que o frade estava falando. E o frade, como se tivesse ouvido tal pergunta, fulminou a porta:

- Sim. É a ti mesmo que eu me dirijo, víbora peçonhenta!

Não havia mais nada a fazer. O remédio era entregar-se e contar-lhe a verdade. Mas onde estavam as forças para tanto? Sentia-se chumbado ao chão, como os santos às peanhas. A verdade é que o frade tinha descoberto a sua presença e interpretado mal a sua ousadia de forçar a porta, e entrar misteriosamente, como um ladrão, naquela augusta casa.

Disposto a contar-lhe tudo, deu um passo para trás, vestiu com dificuldade a roupa encharcada e, coração aos pulos, voltou para a porta onde o frade, certamente, o esperava. Mas - foi aí que a alma lhe caiu aos pés - o prior já havia retomado o caminho, para estacar novamente a alguns passos. E, parado, diante da própria sombra, pôs-se a rir de modo escarninho:

- Não! Esse argumento é para gente da tua laia! Hei de entregar-te à justiça. Estás ouvindo?

De um lado, o estudante sentiu-se tranquilo porque aquelas palavras, naturalmente, não lhe diziam respeito; de outro lado, porém, tremeu de medo ao ver-se, altas horas, numa noite como aquela, no interior de velho convento, às voltas com um doido. O pior é que as portas das celas não tinham chave, nem ao menos tramela. Conservou-se naquela posição durante o resto da noite. Vendo o prior caminhar de um lado para outro, em luta com as sombras.

Quando a primeira claridade entrou pela telha-vã e as lamparinas foram empalidecendo no oval dos nichos, o estudante se sentiu mais alentado. Às cinco e meia, o sacristão veio lá dos fundos e passou pela sua porta, dirigindo-se ao parlatório. Dali a pouco, ouviu o fradinho porteiro rascar na fechadura da porta grande. Seguiu-se um diálogo curto. E a porta não se fechou mais. Então, o tresnoitado rapaz deslizou pelo corredor, ganhou a escada interna e ia escapulir-se quando o bom fradinho o deteve:

- Que é isso? De onde vem?

- Dali. Dormi numa cela.

- Mas or onde entrou?

- Pelo buraco da fechadura.

- Mas que medo é esse?

- Vou dizer-lhe uma coisa. Escute e guarde segredo. O prior está sofrendo da bola...

- E porque é que você diz isso?

- Ele passou a noite inteira a descompor as sombras, a ameaçá-las, a rir-se delas...

O irmão leigo, que estava sentado numa poltrona de couro, afocinhou nos joelhos, de tanto rir. Passada a intempestiva hilaridade, explicou:

- Quando ele tem de tratar algum negócio do convento, passa a noite inteira a estudar o que deverá dizer no dia seguinte. Nesse exercício, ele imagina as maquinações que possam ser levadas a cabo contra os interesses da Ordem. E, em tais casos, esbraveja contra o seu hipotético antagonista. Chega mesmo a ameaçá-lo com a cadeia, ou a forca!

- Então, tudo isso que eu vi e ouvi?...

- Não tem importância: é excesso de zelo pela prebenda que lhe confiaram.

Aí foi o estudante que riu. E os dois ainda estavam nessa conversa matinal quando a figura magra do prior apareceu na porta, ao lado. Vinha pálido, acabado, com olhos foscos, como se se tivesse mortificado a noite inteira. Passou por eles sem dizer palavra e dirigiu-se à igreja, onde os sinos cantavam alegremente e as beatas, de mantilha, iam chegando da Tabatinguera, da Boa Morte, da Glória, até mesmo do Lavapés.

Dom Antonio tinha surpreendido tudo. Pinga-Fogo não estava chegando ao convento, estava saindo do convento. como? E para evitar que outros não estudantes entrassem pela calada da noite naquele piedoso recinto, mandou reforçar as fechaduras das portas e botar "sacadas de ferro nas janelas de frente do edifício e do adro de cantaria". Mas, nem por isso passou a tratar com maior brandura aos escravos. Os coitados dos pretos botavam a língua de fora, de tanto trabalhar, e aquele angu com couves não lhes garantia o alento de que precisavam para dar conta do recado. Foi assim que...

No dia 5 de agosto de 1859, a pacata cidade de São Paulo viu-se abalada por uma notícia sensacional: o prior do Carmo amanhecera estrangulado no seu catre. O povo atribuiu, logo, aquele crime "ao excessivo rigor" com que ele tratava os escravos. Aqueles dois infelizes foram julgados no dia 6 de setembro do mesmo ano. O júri prolongou-se pela noite. Os estudantes não escondiam a sua compaixão pelos pobres negros. Pinga-Fogo fazia comícios nas esquinas.

Na madrugada de 7 de setembro, o estudante José Vieira Couto de Magalhães conseguiu tirar os dois infelizes das unhas do carrasco. Ainda asim, foram condenados a galés perpétuas. E quem se interessar pelo fundo histórico desta novela leia a Memoria de Pessanha Povoa, sobre o Convento do Carmo, publicada em 1863, e São Paulo Antigo, de Antonio Egidio Martins, 1º volume, publicado em 1911.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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