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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 20

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na páginas 4 e 5 da edição de 28 de dezembro de 1938 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina 4 com a matéria

O casamento da musa

Quando as chuvas de março começaram a regar os campos, Paulo Eiró apareceu na estrada de Jacareí. Vinha de muito longe. No entanto, da viagem só se sabe que ele não conseguiu chegar a Mariana. As crônicas não falam de sua existência nos meses em que esteve desaparecido. Ninguém sabe por onde andou, o que fez e como viveu durante tanto tempo.

A verdade, porém, é que ele não foi muito feliz na aventura, pois voltava agora descalço, andrajoso, os cabelos crescidos e a barba à nazarena. Já não trazia consigo o embrulho de roupa. De tudo o que levara para tão longa viagem restava apenas, metido à força num bolso exterior do casaco, o Compendium Theologiae, empenado pelas molhadelas, encardido pela soalheira.

Um preto de São Paulo, que tinha ido a Jacareí a serviço do senhor branco, viu-o sentado no adro da igreja, comendo uma fatia de broa, a distribuir migalhas entre a passarinhada que esvoaçava confiante sobre a sua cabeça.

Dias depois, o poeta chegou a Mogi das Cruzes, numa tarde quente, com longínquas ameaças de trovoada. Procurou os amigos da família em cuja casa dormira meses antes, no início da viagem. A casa estava fechada. Um vizinho informou-o de que os moradores tinham partido para São Paulo, a fim de assistirem às cerimônias da Semana Santa.

Desistiu de procurar outro pouso e prosseguiu no caminho. No entanto, fazia-se noite. A escuridão da hora, acrescida das sombras da tempestade que se aproximava, ia envolvendo a paisagem. Andou mais um estirão e encontrou uma casa solitária. Quase uma ruína. Toda de pedra, sem reboco, com duas janelas fechadas; as portadas e batentes outrora tinham sido azuis, mas o tempo havia lavado a tinta. Sobre o telhado negro vicejavam pés de fumo. Ao lado, um portão de tábuas equilibrava-se com dificuldade. A tiririca crescia entre as pedras chatas do terreiro.

Bateu palmas, gritou diversas vezes "Ó de casa!", sacudiu o portão, mas ninguém respondeu aos chamados. Então, deu volta ao terreno cercado de caraguatás, penetrou no quintal e caminhou para os fundos da casa. Ali as portas estavam escancaradas. Entrou. Não havia ninguém, mas o interior apresentava uma certa ordem; selas e barbicachos pendiam dos pregos espetados ao longo do corredor; na varanda, a mesa grande estava coberta por uma grossa camada de poeira; dentro do armário aparecia a louça bem arrumada e, quando voltou à cozinha, viu nos varais do fumeiro grandes jacás equilibrando no fundo gotas de salmoura.

Um cheiro de abandono, de esquecimento, pairava sobre tudo. Foi ao quarto que devia ser dos donos e empurrou a janela; as duas folhas se abriram com facilidade e um ramo de sabugueiro espiou para dentro, aflorando-lhe o rosto. Fora, estendia-se um céu escuro, baixo, sem luz nem estrelas. Fechou novamente a janela e, assegurando-se de que a cama estava posta, estirou-se sobre ela. Sentiu na pele o contato desagradável da poeira acumulada sobre o cobertor. Permaneceu imóvel, a ouvir os rumores suaves do silêncio, onde havia criscilar de grilos e diálogos longínquos de rãs. Grossos pingos de chuva começaram a cair espaçadamente no telhado. E, embalado por aquela música, por aquela doçura que subia da terra, fechou os olhos, adormeceu...

Numa hora qualquer da noite acordou com a impressão de que alguém estava ao pé da cama. Procurou examinar o quarto, mas nada conseguiu ver porque a treva era absoluta. Apesar disso, fechou os olhos e adormeceu de novo. Mais tarde acordou em sobressalto: o quer que fosse continuava ali, caminhava com passos miúdos, fazendo um ruído característico no chão de terra socada.

- Quem está aí?

Imagem: reprodução parcial da pagina 4 com a matéria

Ninguém respondeu. Instintivamente estendeu a mão e tocou num queixo alongado, que terminava em barba áspera. Então, o visitante noturno afastou-se apressadamente para o interior da casa.

Tranquilizado por aquela retirada, Paulo Eiró virou para o canto e adormeceu pesadamente. Quando acordou, o sol entrava por todas as frestas do telhado; as réstias finas iam bater no chão negro, formando discos de ouro. Ao longo dos estiletes de luz, passavam e repassavam as moscas; uma poeirinha imponderável subia e descia, lentamente.

Levantou-se e foi para o quintal. Viu que se encontrava numa tapera, talvez uma dessas casas que os donos abandonavam por mudança, por doença ou por morte na família. O mato crescia por toda parte. Os passarinhos aninhavam-se sobre o poço, na erva que crescia na travessa, onde a roldana havia muito se imobilizara. Um bode escuro, sem notar a sua presença, mordiscava nas brotalhas da cerca.

Abandonou a tapera e, depois de andar outro estirão, chegou ao rancho de um caboclo que lhe ofereceu café. Aceitou-o. E, como o dia estivesse esplêndido, prosseguiu no caminho para S. Paulo.

Antes de chegar à Penha, o caipira que o havia acolhido na ida acolheu-o com igual carinho na volta. E no dia 17 de março, desse triste ano de 1860, chegava de torna-viagem às proximidades da capital da Província.

Ao escurecer, ouvindo as Ave Marias da igreja de Nossa Senhora da Penha, entrou no templo, fez orações e retomou o caminho da cidade. Tarde da noite chegou à Ladeira do Carmo. A várzea estava toldada de neblina e lá para cima a cidade dormia. Um silêncio pesado caía sobre os tetos baixos, alongados para a rua. Pensou em dormir o resto da noite nuns barrancos da ladeira, mas resolveu ir à Rua de São José, pedir pouso à tia Anninha.

O relógio do colégio bateu pausadamente meia-noite.

Alcançou a Rua do Carmo e seguiu por ela em direção do pátio do Colégio, a fim de alcançar a Rua da Imperatriz. No entanto, ao passar pela Fundição, notou certo movimento lá para as bandas da Sé. Que seria? Por ali se encontravam estacionados, além dos tílburis, carros particulares à espera dos proprietários.

Dirigiu-se para o Largo da Sé e encontrou-o movimentado. O templo estava cheio de luzes e, pela porta larga, viu o interior festivo. Em 1860, os casamentos elegantes ainda se realizavam à noite. Sentiu aguda curiosidade e entrou. Os convidados, que eram toda a gente de algo da cidade, afastavam-se cautamente ao verem aquele maltrapilho, sujo e feio como um desenterrado. Assim, ele seguiu entre sobrecasacas e saias rodadas até as imediações do altar-mor e ajoelhou-se. Mas, ao iniciar o primeiro Pater, ouviu um ruído alegre: entravam os noivos, os padrinhos, os pajens...

Interrompeu a oração e ergueu os olhos. Lá vinham eles, lentamente, entre alas de admiradores. O noivo era um rapaz alto, forte, que parecia orgulhoso da jovem que trazia pelo braço. A noiva era também alta, fina, de passos ondeantes, toda envolta numa nuvem de sedas e de véus esvoaçantes. Teve a impressão de que os conhecia. Sim, era o Juca! Era a Musa! Então, passou as mãos pelos olhos. Sim, eram eles, eram eles...

A mulher que ele muito amou casou-se, de fato, segundo os documentos, a 17 de março de 1860, à meia hora depois da meia-noite. "Eram ambos nubentes fregueses da Sé, tendo servido de testemunhas Malachias Rogerio de Salles Guerra e Julio Cesar de Miranda Guerra, este irmão e aquele tio do noivo". Os convidados acompanharam os nubentes até o altar e na confusão que se operou foi possível a Paulo Eiró sair dali e alcançar a porta do templo.

Na praça, iluminada de lanternas, ouvia-se o piafar (N. E.: bater das patas no chão, sem andar) dos cavalos, a conversa pesada dos cocheiros tresnoitados.

Ninguém notou sua presença, ninguém o conheceu. Então ele, abandonando a ideia de pedir pouso à tia Anninha, que àquela hora devia estar entre os convidados, tomou a Rua do Imperador, chegou ao Largo de S. Gonçalo e dali dirigiu-se para o Caminho do Carro, que ia para Santo Amaro. A noite estava linda. As chácaras dormiam imersas em profundo silêncio. Uma lua clara, perdida no céu alto, caiava o caminho, as casas, os muros, as pedras da rua...

Andando, compunha um soneto a que deveria dar o título de Fatalidade. Talvez para não vexar àquela que muito amara e que no momento já estava casada, trocava propositalmente as cores do seu retrato. E, caminhando, parando para melhor contar nos dedos, compunha frases poéticas:

"Que visão! O sangue se afervora e escalda! - Por que impulso fatal fui hoje à Igreja? - Quer o Destino que, ao entrar, lá veja - Noiva gentil de cândida grinalda...".

E por fim, com um nó de ferro na garganta:

"... Unem as mãos; o órgão reboa ledo: - Em alvas espirais o incenso ondeia - Eu só, longe do altar, choro em segredo!".

(Do livro "A Vida de Paulo Eiró", em preparação)

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina 5 com a matéria

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