- Que ides fazer tão longe, meu filho?
- Quero continuar os estudos no Seminário daquela cidade.
O pai sacudiu a cabeça sem responder. Este curto diálogo ocorreu no dia seguinte, no terreiro da chácara, ao pé do cruzeiro
enredado de madressilvas. Francisco Antonio das Chagas estava de cócoras diante de uma fogueira feita de gravetos e queimava manuscritos. Quando uma
folha ficava reduzida a cinzas, arrancava outra do caderno e atirava-a às chamas, que subiam alegremente.
O filho, que desde a partida do Seminário mergulhara numa imperturbável mudez, conservava-se de pé, atrás do velho, e
acompanhava melancolicamente o seu trabalho. Em certo ponto, tomou uma das poesias, leu-a mentalmente e, depois, foi ele próprio quem a atirou ao
fogo. O fumo desprendeu-se, desenhou um leve arabesco e subiu para o céu.
Terminada a operação, Chagas passou a mão pelo rosto. Estava de olhos vermelhos. Talvez efeito da fumaça; ou então, quem sabe
lá, porque tivesse chorado. Encaminhou-se para a casa, seguido do filho. Na sala, Lucas, de chapéu na cabeça, costurava uma peça de arreio. Os dois
passaram sem lhe dar atenção e entraram na cozinha, onde nhá Gequinha, rodeada pelas escravas, preparava o almoço. Desinteressando-se da conversa,
Paulo Eiró seguiu dali mesmo para o quarto. O professor queixou-se à mulher:
- Agora ele quer ir para Mariana!
- É tolice. Não vai coisa nenhuma.
O velho coçou a cabeça branca:
- Deus está castigando o orgulho que eu tinha deste filho...
Nhá Gequinha ordenou a uma escrava:
- Anna, ide ao quarto de Paulinho e vede o que ele está fazendo.
A preta enxugou a mão no avental e foi. Logo depois voltou:
- Sinhá, Nhozinho está arrumando a roupa, a resmungá, a resmungá...
Ninguém viu durante o resto do dia. À tarde, Anna foi convencê-lo de que devia comer alguma coisa. Depois de muita
relutância, acedeu. Anna, naqueles momentos, era a única pessoa a quem ele atendia. Foi para a varanda, sentou-se à mesa, rezou e comeu num visível
alheamento. Feito isso, voltou para o quarto.
Duas vezes foram espiá-lo e viram-no deitado ao comprido da cama, as mãos servindo de travesseiro, a olhar perdidamente o teto,
onde a luz espiava pelo vão das telhas. Altas horas da noite, o pai tomou do castiçal e foi vê-lo novamente. Continuava na mesma posição e parecia
tão abstrato que nem se apercebeu da sua presença. Mas, ao clarear da manhã, levantou-se e começou a andar pela casa, de um lado para outro. Depois,
sobraçando um embrulho de roupa, parou na porta do quarto dos pais, espiou para dentro e disse:
- Suas bênçãos; já vou.
Chagas e nhá Gequinha levantaram-se apressados e vieram atendê-lo, aconselhá-lo. Tudo inútil. Partiria para Mariana,
imediatamente. Era uma força terrível que o impelia para aquele fim de mundo. E iria a pé, por essas estradas, ao acaso dos meios de condução. Como
nada conseguissem, o pai e a mãe acabaram por consentir nessa viagem louca, que ele realizaria de qualquer forma.
Para suavizar a peregrinação, o pai foi aos seus guardados, tirou algum dinheiro e, quase à força, meteu-lhe no bolso. Sem mais
esperar, o moço saiu porta fora. Diante do cruzeiro encontrou Anna, que, com uma cuia na mão, dava milho às galinhas.
- Ué, Nhozinho! Tão cedo?
- Vou para Mariana.
- E volta hoje?
Ele encarou-a com olhos inexpressivos, transpôs o portão e entrou no caminho da vila. Como nhá Gequinha aparecesse na porta, a
escrava informou-a de que ele ia para Mariana, mas voltava naquele mesmo dia; a pobre preta não sabia que a viagem era de meses e quando a ama lhe
informou, ela persignou-se, enxugando depois uma lágrima de piedade.
Paulo Eiró chegou à casa de tia Anninha à hora do café. Passou ali o dia, sem falar dos seus intuitos, talvez para evitar
conselhos e recriminações. Mostrou-se mesmo de excelente humor. À noite saiu com o primo Ernesto Pinheiro e prado e fez um longo passeio pela
cidade.
Por essas alturas, o primo já andava mais contente: frequentava a casa de Antoninha na qualidade de noivo oficial. O dr.
Hyppolito mostrava pelo rapaz uma grande simpatia e era ele próprio quem intercedia junto da filha, sempre que era preciso apaziguar desavença
surgida entre eles.
No dia seguinte, sem dar muitas explicações à tia Anninha, o poeta tomou do seu embrulho de roupas, fez umas ligeiras
despedidas e encaminhou-se para os lados da penha, a fim de alcançar a estrada do Rio de Janeiro; esperava chegar um dia a Embaú, onde começava a
estrada de Minas Gerais.
Cruzou com caipiras que, a pé ou a cavalo, demandavam a cidade. Interrogou-os, orientou-se e sentou pé no caminho. O dia estava
quente. O verão cantava nos descampados. A luz dourava as árvores e estirava sombras pelo chão. Animais soltos pastavam nos barrancos. Bandos de
teribas e maitacas passavam gritando pelo céu. Um cheiro gostoso de almecega ia e vinha nas auras errantes.
Venceu a primeira légua, a segunda... Sentiu-se cansadíssimo, acolheu-se debaixo de velha árvore, abriu o embrulho e dele tirou
o único livro que levava consigo. Era o Compendium Theologiae Moralis, de Joanne Petro Gury, S. J.