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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 19

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 21 de dezembro de 1938 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Desaparecido

- Meu pai, vou para Mariana!

- Que ides fazer tão longe, meu filho?

- Quero continuar os estudos no Seminário daquela cidade.

O pai sacudiu a cabeça sem responder. Este curto diálogo ocorreu no dia seguinte, no terreiro da chácara, ao pé do cruzeiro enredado de madressilvas. Francisco Antonio das Chagas estava de cócoras diante de uma fogueira feita de gravetos e queimava manuscritos. Quando uma folha ficava reduzida a cinzas, arrancava outra do caderno e atirava-a às chamas, que subiam alegremente.

O filho, que desde a partida do Seminário mergulhara numa imperturbável mudez, conservava-se de pé, atrás do velho, e acompanhava melancolicamente o seu trabalho. Em certo ponto, tomou uma das poesias, leu-a mentalmente e, depois, foi ele próprio quem a atirou ao fogo. O fumo desprendeu-se, desenhou um leve arabesco e subiu para o céu.

Terminada a operação, Chagas passou a mão pelo rosto. Estava de olhos vermelhos. Talvez efeito da fumaça; ou então, quem sabe lá, porque tivesse chorado. Encaminhou-se para a casa, seguido do filho. Na sala, Lucas, de chapéu na cabeça, costurava uma peça de arreio. Os dois passaram sem lhe dar atenção e entraram na cozinha, onde nhá Gequinha, rodeada pelas escravas, preparava o almoço. Desinteressando-se da conversa, Paulo Eiró seguiu dali mesmo para o quarto. O professor queixou-se à mulher:

- Agora ele quer ir para Mariana!

- É tolice. Não vai coisa nenhuma.

O velho coçou a cabeça branca:

- Deus está castigando o orgulho que eu tinha deste filho...

Nhá Gequinha ordenou a uma escrava:

- Anna, ide ao quarto de Paulinho e vede o que ele está fazendo.

A preta enxugou a mão no avental e foi. Logo depois voltou:

- Sinhá, Nhozinho está arrumando a roupa, a resmungá, a resmungá...

Ninguém  viu durante o resto do dia. À tarde, Anna foi convencê-lo de que devia comer alguma coisa. Depois de muita relutância, acedeu. Anna, naqueles momentos, era a única pessoa a quem ele atendia. Foi para a varanda, sentou-se à mesa, rezou e comeu num visível alheamento. Feito isso, voltou para o quarto.

Duas vezes foram espiá-lo e viram-no deitado ao comprido da cama, as mãos servindo de travesseiro, a olhar perdidamente o teto, onde a luz espiava pelo vão das telhas. Altas horas da noite, o pai tomou do castiçal e foi vê-lo novamente. Continuava na mesma posição e parecia tão abstrato que nem se apercebeu da sua presença. Mas, ao clarear da manhã, levantou-se e começou a andar pela casa, de um lado para outro. Depois, sobraçando um embrulho de roupa, parou na porta do quarto dos pais, espiou para dentro e disse:

- Suas bênçãos; já vou.

Chagas e nhá Gequinha levantaram-se apressados e vieram atendê-lo, aconselhá-lo. Tudo inútil. Partiria para Mariana, imediatamente. Era uma força terrível que o impelia para aquele fim de mundo. E iria a pé, por essas estradas, ao acaso dos meios de condução. Como nada conseguissem, o pai e a mãe acabaram por consentir nessa viagem louca, que ele realizaria de qualquer forma.

Para suavizar a peregrinação, o pai foi aos seus guardados, tirou algum dinheiro e, quase à força, meteu-lhe no bolso. Sem mais esperar, o moço saiu porta fora. Diante do cruzeiro encontrou Anna, que, com uma cuia na mão, dava milho às galinhas.

- Ué, Nhozinho! Tão cedo?

- Vou para Mariana.

- E volta hoje?

Ele encarou-a com olhos inexpressivos, transpôs o portão e entrou no caminho da vila. Como nhá Gequinha aparecesse na porta, a escrava informou-a de que ele ia para Mariana, mas voltava naquele mesmo dia; a pobre preta não sabia que a viagem era de meses e quando a ama lhe informou, ela persignou-se, enxugando depois uma lágrima de piedade.

Paulo Eiró chegou à casa de tia Anninha à hora do café. Passou ali o dia, sem falar dos seus intuitos, talvez para evitar conselhos e recriminações. Mostrou-se mesmo de excelente humor. À noite saiu com o primo Ernesto Pinheiro e prado e fez um longo passeio pela cidade.

Por essas alturas, o primo já andava mais contente: frequentava a casa de Antoninha na qualidade de noivo oficial. O dr. Hyppolito mostrava pelo rapaz uma grande simpatia e era ele próprio quem intercedia junto da filha, sempre que era preciso apaziguar desavença surgida entre eles.

No dia seguinte, sem dar muitas explicações à tia Anninha, o poeta tomou do seu embrulho de roupas, fez umas ligeiras despedidas e encaminhou-se para os lados da penha, a fim de alcançar a estrada do Rio de Janeiro; esperava chegar um dia a Embaú, onde começava a estrada de Minas Gerais.

Cruzou com caipiras que, a pé ou a cavalo, demandavam a cidade. Interrogou-os, orientou-se e sentou pé no caminho. O dia estava quente. O verão cantava nos descampados. A luz dourava as árvores e estirava sombras pelo chão. Animais soltos pastavam nos barrancos. Bandos de teribas e maitacas passavam gritando pelo céu. Um cheiro gostoso de almecega ia e vinha nas auras errantes.

Venceu a primeira légua, a segunda... Sentiu-se cansadíssimo, acolheu-se debaixo de velha árvore, abriu o embrulho e dele tirou o único livro que levava consigo. Era o Compendium Theologiae Moralis, de Joanne Petro Gury, S. J. (N. E.: abreviatura de "Superior Jesuíta"). Uma lembrança do Seminário de São Paulo. Folheou-o com delícia e sorriu ao ver uma nota por ele mesmo tomada à margem, enre duas aulas: "Jurisdictio est potestas regendi subditos in ordine ad saluten"... Lembrava-se tão bem da hora em que escrevera aquelas palavras... Pôs-se a ler, esqueceu-se do tempo.

Ao anoitecer,um caipira que passava a cavalo viu-o naquela atitude e perguntou-lhe:

- Eh, moço... Inda que má pregunte vancê tá doente?

- Não. Estava lendo, mas escureceu.

- Vai prá Mogy?

- Não senhor; vou prá Mariana.

- Ché...

E levou-o para o seu rancho, a fim de lhe dar pousada. Depois de um estirão, lá chegaram. Os cachorros latiam no terreiro. A mulher, de pano branco na cabeça, chegou à porta e, vendo o marido em companhia de um estranho, correu para dentro. E, enquanto era posta a mesa, os dois homens ficaram conversando junto à porta, à luz de um candeeiro. Mariposas que vinham do mato afloravam às chamas fumarentas, debatendo-se pelas paredes. Nuvens de mosquitos rodeavam o candeeiro.

Paulo Eiró contou quem era, de onde vinha e para onde ia. Terminado o jantar, foi-lhe indicada uma cama com colchão de palhas de milho, onde ele mergulhou e dormiu até o sol vir acordá-lo. Depois do café com farinha de milho, agradeceu a hospitalidade, despediu-se e se pôs a caminho.

Em Mogi das Cruzes, passou dois dias, na casa de um conhecido da família; em Jacareí dormiu na porta do mercado; no dia que se seguiu, foi agasalhado por uma turma de engenheiros que faziam o traçado da Estrada de S. Paulo e Rio. No dia seguinte partiu de novo e ninguém mais soube notícias suas. Passaram-se os meses de janeiro e fevereiro e os primeiros dias de março.

Nhá Gequinha por essa altura já estava de cabelos brancos. Todos os dias procurava Emygdia, a fim de pedir notícias sobre o paradeiro de Paulo Eiró. Mano Guerrinha, seu genro, ia sempre a S. Paulo e aí se hospedava na casa do filho, Malachias Rogerio de Salles Guerra. A residência de Malachias era uma das mais fartas e acolhedoras. o sobradão do Piques regurgitava sempre de hóspedes. Os almoços e jantares eram concorridíssimos. Neles tomavam assento viajantes da Corte e do interior da Provincia.

Mas no sobradão do Piques, onde se conversava sobre todos os assuntos, onde apareciam hóspedes de todas procedências, nada se conseguia saber a respeito de Paulo Eiró. Escutando tais informações da boca de mano Guerrinha, a mãe do poeta se inquietava, enxugava lágrimas na matinèe de rendas.

Regressando à chácara, ela fazia promessas. Todas as tardes, sentava-se no cepo que haviam arrastado para junto do portão e ali ficava, entre os espinheiros do tapume, a olhar para as bandas da vila, com uma saudade, uma saudade doida daquele filho que andava não sabia onde; que talvez já tivesse morrido à míngua, perdido "por esse mundo de meu Deus"...

(Do livro "A Vida de Paulo Eiró", em preparação)

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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