Os carteiros andam afobados, com um dilúvio de cartas sem endereço. Na 4ª Seção amontoam-se envelopes nos quais se lê apenas
isto: "Ilmo. sr. Papai Noel - São Paulo". A caligrafia é muito variada: há letrinhas bem talhadas e garranchos que mais parecem escritos com um
palito de fósforo. O dono do Correio, um velho pálido de óculos, uniformizado de cáqui, com o boné puxado para o olho, e que anda por essas ruas a
distribuir emoções, contou-me, em segredo, que sabe onde mora Papai Noel. Entre toda a gente da terra, ele é o único moral que conhece o seu
endereço...
Por isso, nas horas de folga, com o intuito de atender às crianças que escrevem cartas a Papai Noel, ele pega naquela
correspondência e vai entregá-la na casa do bom velho, casa que mais parece um relógio de parede. Lá chegando, puxa a aldrava, terminada num
pião-de-música. No buraco que existe sobre a porta, um cuco espia três vezes. Papai Noel aparece - como a gente julga que ele deve ser - de túnica
vermelha, alpargatas e carapuça.
Anda devagar, apoiado num bastão, e cofia as longas barbas brancas. O carteiro entrega-lhe a correspondência, recebe os
agradecimentos e vai tranquilamente para a casa. A mulher fica zangada porque ele voltou tarde e o bispo entrou no feijão. No entanto, o carteiro
está contente. Está contente porque todas as crianças vão ficar contentes.
E a cena se repete quase todos os dias. Agora, porém, mudou. Ontem, por exemplo, já não foi assim. Papai Noel, quando recebeu a
correspondência, levou o carteiro para o canto:
- Venha cá. Olhe ali quantas cartas tenho recebido nestes últimos dias. Já não disponho de tempo para responder a todas, nem
para levar os brinquedos pedidos pelos meus amiguinhos. No entanto, não quero que sobre a terra, neste período festivo, exista uma só criança sem o
seu brinquedo. Eu ficaria muito triste com isso. Muito triste. Está ouvindo?
E o velho mandou pelo carteiro um recado a todas as crianças inteligentes de São Paulo.
***
Amanhã é domingo e vai fazer um dia resplandecente. À tarde, no Teatro Municipal,
teremos uma deliciosa festa. Será representada a peça em 3 atos Casa Assombrada, de Alfredo Mesquita, interpretada por jovens da sociedade
paulistana e consagrados artistas da pintura, do canto e da música. As primeiras representações alcançaram êxito formidável, tanto pelas emoções que
despertaram na assistência, como também pelo intuito admirável dos organizadores dessas noites de arte.
As notícias dos jornais e os comentários favoráveis que se ouvem despertaram por aí
afora uma aguda curiosidade. Boa parte da nossa população está ansiosa. Então, para que não haja nesta capital uma só pessoa capaz de alegar não ter
podido ir ao espetáculo, a comissão resolveu que a Casa Assombrada seja levada à cena pela terceira vez, o que se dará amanhã, à tarde, no
Teatro Municipal, a preços populares. Essa notícia, espalhando-se rapidamente, encheu a todos de contentamento. Principalmente a Papai Noel que,
como dissemos, mandou um recado urgente às crianças de São Paulo.
***
Disse ele:
- Convido os pequenos de nossa terra a assistirem, amanhã, à grande festa beneficente. Toda criança que lá for passará algumas
horas felizes, vendo coisas do arco-da-velha, ouvindo músicas deliciosas; ao mesmo tempo - e isto é deveras importante - quem lá for proporcionará,
só com o fato de lá ter ido, um brinquedo para outras crianças, paras as crianças pobres recolhidas ao Asylo Santa Therezinha.
Compreenderam?
Indo à matinèe de amanhã, vocês se divertirão e ao mesmo tempo levarão um presente a outras crianças da sua idade que,
por pobrezinhas e asiladas, precisam mais de brinquedos e de afeto que quaisquer outras da cidade. Acho que vocês não terão dificuldade na escolha
do motivo que os há de levar ao teatro. Qualquer deles será louvável: tomar conhecimento de um mundo de harmonias e lindezas, ou contribuir para que
lá longe, entre os claros e retilíneos pavilhões de um asilo, centenas e centenas de crianças, vivendo afastadas de papai e de mamãe, tenham também
o seu sorriso de felicidade. E Felicidade é flor que não dá todo o ano...
Comparecendo ao espetáculo verão uma coisa nova: o "tempo de d'antes", quando vovô usava sobrecasaca e vovó tinha tranças,
quando papai era estudante e mamãe ainda era menina. uma página viva, movimentada, colorida e musical de nossas tradições. A fazenda, a casa
alpendrada com madressilvas pelas janelas. Os costumes que passaram; as vestimentas, os penteados e as atitudes que hoje só encontramos nas velhas
fotografias descoloridas; as valsas lentas e as mazurcas brilhantes, as recordações que ficaram como folhas de malva entre folhas de breviário... E
ao lado de tudo isso, os ritmos mais sacudidos da vida moderna: o jazz, o swing...
Todo o mundo que vocês desconhecem e de que tanto ouvem falar, está ali, nos três atos
da peça de Alfredo Mesquita. Esse mundo é transportado para nossos dias e vivido com intensidade, graças á inteligência de seus intérpretes. É
história representada, livro de figuras, vida de mentira que parece de verdade. Não é só para gente grande, é para a criançada também. Há músicas
lindas, cenários sugestivos, trajes curiosos, canções que, embora estilizadas, lembram as que as mães cantam baixinho, quando estão distraídas;
enfim, há, ali, tudo quanto possa encantar, comover, espalhar no asfalto uma leve fragrância de saudade.
***
E o recado de Papai Noel termina assim:
É preciso que amanhã, à tarde, o teatro esteja repleto. Que não falte ninguém. Que não
sobre nenhum lugarzinho. No espaldar de cada cadeira que for encontrada vazia, será escrita esta frase: "Aqui deveria estar sentado aquele menino
que não quis ver coisas bonitas, que não contribuiu com um brinquedo para alegrar o Natal de uma criança triste".
***
Aí vai, dirigido a todas as crianças de São Paulo, o recado de Papai Noel, mandado por
intermédio do carteiro de óculos, fardado de cáqui, com o boné sobre o olho, aquele que os pequenos da minha rua julgam ser o dono do Correio.