Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria
Na faculdade
Concluídos os preparatórios, Paulo Eiró
matriculou-se na Faculdade de Direito, em março de 1859. A fim de frequentar
o curso, ele se transferiu para esta capital, indo morar com tia Anninha, ou melhor, Anna Luiza, esposa do capitão Francisco de Assis Pinheiro e
Prado. A casa ficava na Rua de São José, ao lado da casa do cadete Santos.
Ao ver-se o poeta em S. Paulo, a inquietação que o angustiavam na vila
se transformou bruscamente numa imperturbável serenidade, numa quase ausência de si mesmo, que chocou o agitado ambiente estudantil. Ele aqui chegou
com José, numa tardinha clara, depois de rápido aguaceiro. A tia alarmou-se com a molhadela e preparou-lhe um café forte. Quando o escravo conduziu
as duas canastras - uma de livros e outra de roupa - que tinham vindo equilibradas no lombo de uma besta, Eiró recolheu-se ao quarto e mudou o traje
de viagem.
Já conhecia aquele quarto, pois ali estivera hospedado diversas vezes.
Ainda nos últimos tempos, durante o curso da Escola Normal, passara meses a fio entre aquelas quatro paredes caiadas, mergulhado nas suas leituras.
Pegado a esse quarto, ficava o do primo Ernesto.
Tinha por essa ocasião uns 19 anos, mas, vivendo sempre num meio de
estudantes e moços de alta roda, adquirira hábitos e maneiras que inquietavam o misticismo do santamarense. Recolhia-se tarde, acordava tarde,
comprazia-se entre jovens que liam filósofos de má nota e cultivavam paradoxos alarmantes. Os dois moços se estimavam mas não se compreendiam.
Naquela tarde, ao sair do quarto, encontrou o primo que se preparava
para o passeio. Abraçaram-se. Ernesto quis à força levá-lo consigo e o poeta teve de inventar pretextos para permanecer em casa, pondo em ordem os
queridos livros.
Quando o rapaz partiu, envergando uma sobrecasaca cor de pinhão,
apertada na cintura por fivela de ouro, Paulo Eiró conveio consigo mesmo que o primo era encantador e que bem merecia as delicadezas de sua amizade.
Depois desse dia, procurou compreendê-lo, achou linda a sua maneira de viver e se permitiu longos passeios em sua companhia, principalmente nas
tardes em que Ernesto andava à cata de alguém para acompanhá-lo na ronda que fazia diante da casa de Antoninha...
Os calouros daquele ano reuniram-se pela primeira vez em certa manhã
muito alegre, no claustro da Faculdade de Direito. Paulo Eiró era conhecido entre os moços como um poeta admirável. Algumas de suas poesias já
haviam reboado á sombra das augustas arcadas. No entanto, isso não impediu que sofresse as aperturas do trote.
Os demais calouros, cada qual com o seu temperamento, reagiram de
diversos modos contra o rigor dos veteranos. Campos Salles, um campineiro de olhos vivos, quis provar à força de eloquência que o trote era
instituição anacrônica, mas a sua voz foi abafada pelos que o rodeavam. Prudente de Moraes, um calouro que persistia em falar na língua-da-terra,
não foi mais feliz. Bernardino de Campos, jovem muito magro e muito alto, conseguiu atrair por algum tempo a admiração dos perseguidores, mas dentro
de pouco ouviram-se gritos:
- Calouro não chia! Calouro não chia!
Por essa altura, Francisco Rangel Pestana já andava lá pelo Largo de
São Francisco, com a casaca de lustrina vestida pelo avesso. Theophilo Ottoni e Luiz Ernesto Xavier (outro primo de Paulo Eiró, filho de Nhandores),
que se haviam escondido na ferraria do largo, eram descobertos pelos veteranos e trazidos para a praça no meio de louca algazarra.
Quanto a Paulo Eiró, obedeceu de boamente a todas as imposições do
trote, mas fê-lo com tanta serenidade, com tanta tristeza mesmo, que a inesperada atitude desanimou a quantos pretenderam rir à sua custa.
Ninguém esperava tal doçura por parte de um revolucionário. Sim, do
precursor da poesia abolicionista que, mais de dez anos após, deveria alcançar o máximo esplendor com Castro Alves. Paulo Eiró já era poeta
republicano e abolicionista em 1854.
Para fazer ideia de sua audácia, basta ler as palavras de um crítico
sobre o que representava a ideia de abolição em 1868, isto é, quatorze anos depois: "Em 1868, abolição era palavra execranda, incendiária,
sacrílega, que ninguém se animava a proferir em voz alta; não tinha curso no vocabulário do jornalismo".
Quando Castro Alves - o grande cantor da América - entrou para a
Faculdade de Direito de São Paulo, aqui já encontrou a poesia abolicionista e republicana. Entre outras expressões, poderíamos citar A bandeira
vermelha, de Paulo Eiró, e Mauro, o escravo, de Fagundes Varella. Esses versos ígneos eram copiados a lápis e passados de ume estudante
para outro, por baixo dos bancos. Mais tarde, foram gritados em todos os tons nas noites memoráveis do Corvo...
Mas, retomando o fio da conversa, o trote não se dava exclusivamente
na Faculdade durante os primeiros dias do curso; espalhava-se pela cidade e durava o ano inteiro. Fazia-se gato e sapato dos calouros. Os próprios
futricas, que nada tinham a ver com o caso, se permitiam vaias nos pobres moços.
Quando passava um desses infelizes, os que estavam agrupados na
esquina gritavam, para cadenciar-lhe os passos:
Bota o pé no
balaio;
Tira o pé do
balaio.
Bota o pé no
balaio,
Tira o pé do
balaio...
O estudante mudava de passo, perdia a compostura e assim que chegava à
primeira esquina, quebrava para oura rua, ansioso por evitar semelhantes encontros. Mas isso não era fácil. Os calouros viam-se apoquentados nas
ruas, nas repúblicas, no beco das Minas, onde alguns deles iam beber panásios de vinho, e até mesmo nos bailes que com frequência se realizavam nos
salões familiares.
Entre a casa de tia Anninha e o Largo de São Francisco, o poeta era
obrigado a passar por diversas repúblicas de estudantes. Numa delas, estabelecida na esquina da Rua do Ouvidor, moravam veteranos que se haviam
tornado famosos pela irreverência. Quando Paulo Eiró apontava lá embaixo, na esquina, o escolar que montava guarda, à espreita dos calouros, corria
para dentro, dava o alarma, e logo depois as janelas ficavam apinhadas de caras que riam, gritavam e ameaçavam.
O poeta nem sequer erguia os olhos. Continuava a caminhar com passo
firme, batendo a ponteira da bengala nas pedras da rua e, enquanto lá por cima os colegas se descabelavam numa assuada, alcançava serenamente o
Largo de São Francisco. Era como se não fosse com ele. E a sua infinita tristeza impressionava os transeuntes.
Começaram por esse tempo a aparecer os amigos. O primo Ernesto parecia
disputar a sua preferência. E Eiró, calado, taciturno, perguntava a si mesmo que encanto poderia encontrar o boêmio, o "polca", sempre jovial, na
sua companhia.
O jovem instava por levá-lo aos lugares que frequentava, por
apresentar-lhe os amigos que, afinal, eram toda a mocidade elegante da Paulicéia. E o poeta acedia, por bondade para não magoá-lo. Nas noites frias,
pelas esquinas das ladeiras, à luz do lampião grudado à parede, fazia agradáveis apresentações.
Certa vez, os dois estavam na Rua do Quartel quando Ernesto chamou um
mocinho da sua idade que passava do lado oposto. O desconhecido ia vergado para a frente, o chapéu desabado sobre os olhos, uma vasta capa espanhola
envolvendo a magra figura. Fez a apresentação:
- Este aqui é o Paulo Eiró, o primo de que lhe falei.
O desconhecido era pálido, fino, com uma penugem loura no lábio
superior e grossas melenas rolando sobre o colarinho aberto.
- Já li seus versos. Gostei loucamente deles!
Depois ajeitou a capa e se dispôs a partir.
- Onde vai?
- Ali, ao beco das Minas.
- Ah...
E lá se foi, fazendo ressoar os passos na noite fria.
Paulo Eiró perguntou ao primo?
- Quem é esse meninote?
- Você não conheceu? É o Fagundes Varella, poeta que está iniciando um
grande voo.
Paulo Eiró teve ímpetos de correr atrás daquela sombra que se perdia
na garoa, mas o primo não deixou. Ficaria para outra vez. Era fácil encontrá-lo; ele andava sempre por aí... E não se fazia rogado para dizer lindas
coisas, ou para escrever, de improviso, enternecidas poesias de amor...
(Do
livro "A Vida de Paulo Eiró", em preparação)
Affonso Schmidt
Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria |