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Os médicos daquele tempo
Algum tempo depois, José regressou acompanhado de seu Jeremias. Era um homem baixo, moreno, escanhoado, de olhos miúdos e apertados pelo esforço
contínuo de esmiuçar. Falava continuamente, usando os termos do Chernoviz, mesmo quando se dirigia aos leigos.
Nem bem entrou, dirigiu-se à cama onde já se encontrava estendido nhô João Redondo e se pôs a examiná-lo conscienciosamente. Depois, sabendo o
enfermo sem sentidos, voltou-se para os circunstantes e abriu os braços num ar de quem se conforma com a vontade divina. Era, sentenciava ele nesse
gesto, um caso perdido.
- Vossuncê bem sabe, seu Chagas…
Nessa frase havia uma alusão aos conhecimentos de mestre Chagas que, tendo-se dedicado ao estudo da botânica, mergulhado no mistério das nossas
ervas medicinais, tratava com elas as pessoas da família e todos os que o procuravam na esperança de um alívio para seus males.
Seu Jeremias – aliás Jeremias Gloria – tinha grande prática de farmácia e enfermagem. No fundo de sua casa havia um laboratório que mais parecia
lura de alquimista. Ali se encontravam almofarizes, bastões de louça, bocais de vidro contendo substâncias coloridas e séries de vidros de tinturas
com rótulo escrito à mão. Passava horas inteiras mergulhado na leitura do grosso Chernoviz e fabricava umas famosas pílulas contra as bexigas,
pílulas que nhá Trindinha dizia manipuladas com "jasmim do campo".
Tinha, na sua clínica, realizado curas notáveis. Citava-se, entre outros, o caso do Moysés, um pobre diabo que um dia fora exposto à porta de seu
Chagas e que, criado por este, não encontrou felicidade no casamento. Certa noite em que Moyses dormia a sono solto, a mulher anavalhou-o, de
combinação com o amante. O corte fora profundo, atingindo mesmo a carótida. Acordou ensanguentado e certamente morreria se o médico não fosse
chamado a toda pressa.
Junto com o médico chegou o delegado, pois a ocorrência havia alarmado toda a população pacata daquela vila que, durante anos inteiros, não tinha
notícia de um só crime de morte. E enquanto o cirurgião tratava da sutura da artéria e de estancar a hemorragia, o delegado ia fazendo o
interrogatório. O ferido fazia um grande esforço, mas não conseguia falar. Arregalava os olhos, emitia um sopro, mas as palavras ficavam na garganta
já entupida de sangue coagulado. Via-se que o ferido ansiava por dizer alguma coisa. E sua palavra seria utilíssima para a Justiça.
O fato é que dentro de pouco seu Jeremias pediu um alguidar de água morna, lavou as mãos e saiu dizendo.
- Esse escapou…
Dias depois, o delegado voltou à casa de Moysés e perguntou-lhe o que ele procurava dizer na sua aflição.
- Queria dizer que não foi minha mulher que me anavalhou.
- Mas você sabia que foi ela. Até já confessou na prisão…
- Sabia, mas o que eu queria era inocentá-la.
- Por que isso?
- Porque tinha pena dela.
Talvez estivesse nesse seu procedimento um traço da educação recebida em casa do Chagas, incapaz de acusar a quem quer que fosse, até mesmo os
criminosos, até mesmo aqueles que porventura lhe quisessem cortar o pescoço a navalha, em pleno sono.
Seu Jeremias tratou de nhô João Redondo. Fê-lo com um devotamento que parecia acima das forças humanas. Passava horas na cabeceira do enfermo. E-
segundo o testemunho de nhá Trindinha – chegara mesmo a levar para a casa do Chagas aquele livro grosso ao qual a população de Santo Amaro, em 1847,
se referia com reverência.
Naquele tempo havia na vila um terceiro socorro da pobreza. Era seu Adolpho – Adolpho Alves Pinheiro de Paiva – que tratava pela homeopatia.
Pessoa de prestígio, mostrava-se sempre pronto a atender aos que o procuravam. Morava no grande sobrado que ainda hoje existe à direita de quem
entra em Santo Amaro.
Todas as manhãs dava consulta a meia dúzia de visitantes. Recebia-os na sala térrea, ao lado do corredor, e depois de ouvir as suas queixas corria
à estante, tomava de um livro encadernado em couro, inteiramente tomado por marcas feitas com tiras de papel amarelado nas pontas, e se punha a
folheá-lo.
-Tenesmos, camaradas de sangue…
Espiava o paciente por cima dos óculos:
- Você comeu alimentos excessivamente gordurosos?
O caipira não compreendia; ele repetia a pergunta em outras palavras.
- Nhor não. Eu inté ando de corpo doce e não como nada.
Fechava o livro e punha-se a olhar para os dizeres da capa: "Guia Homoeopathica dos Fazendeiros e de todas as Classes do Povo…". Voltava a
espiar o doente: "…Pelo Doutor Rigel, traduzido da segunda edição francesa por um homoeopatha brasileiro…". Então, como inspirado, receitava.
- Trouxe o vidro?
- Nhor não.
- Então, onde é que você quer levar o remédio? No bolso?
Quando o pobre se dispunha a sair, de ar desolado, seu Adolpho chamava-o de novo e repetia a frase a que já se havia habituado:
- Está bem. Por hoje eu lhe arranjo o vidro, mas outra vez que me apareça aqui de mãos abanando, não leva o medicamento.
- O quê?
- … a mezinha…
Ia ao fundo da sala, tomava um vidro muito limpo, media oito colheradas de água – das de sopa – e depois se debruçava na pequena estante colocada
no centro da mesa e se punha a catar vidrinhos amarelos. Contava as gotas com dificuldade, pois as mãos lhe tremiam de emoção sobre o bocal. Para
uns receitava "Aconitum nap", ou "Bryonia alba"; para outro era "Rhus doxit" ou "Apis melit". Nos casos mais rebeldes – a frase era do livro –
emprega-se "Mercurius viv." E punha-se a repetir em voz alta os nomes dos remédios e as indicações decoradas do texto.
Temperando o remédio, começava o trabalho de explicação das doses, da dieta, da necessidade de voltar à sua casa dentro de alguns dias. Todas as
manhãs era aquela maçada que ele levava a cabo com ânimo de santo e de mártir.
Foi o próprio Jeremias quem uma tarde convidou-o a visitar nhô João Redondo.
- Só por descargo de consciência, seu Adolpho…
Seu Adolpho aceitou o convite. Mas quando lá chegou já encontrou o poeta caipira estirado na cama entre quatro velas, com um Crucifixo sobre o
peito.
- É isso, vocês chamam o homeopata depois do padre.
(Do livro A vida de Paulo Eiró, em preparo)
Affonso Schmidt
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