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Quando o Paulinho era menino
Naquela manhã de 1847, o Largo de São Francisco resplandecia banhado de sol. A árvore engelhada que lhe ficava ao centro parecia mais moça. A
ferraria situada em frente à Faculdade enchia a praça de límpidas malhadelas. Os cavalos, em que os lentes chegavam para as aulas, pastavam nos
barrancos da igreja ou cochilavam amarrados nos oitões.
Foi quando apareceu um banguê procedente de Santo Amaro. Dele desceram uma jovem de 19 anos e um menino de 11, ambos vestidos com elegância. A
moça chamava-se Emygdia Clementina e o menino Paulo, filhos de mestre Chagas. Vinham da chácara; ela com o fim de prestar exame num concurso para
professora pública daquela vila e ele, já um homenzinho, para acompanhá-la na viagem.
À porta da Faculdade, que era ainda a mesma da igreja, foram recebidos pelo seu primo Malachias Rogerio de Salles Guerra. Este estava acompanhado
por uma menina de dez anos, também vestida com apuro e que os recém-chegados já conheciam. Era uma parenta dos Guerras. Apesar da sua pouca idade,
já demonstrava quanto ia ser bela, mais tarde. Tinha o talhe fino, esgalgado, flexível. Seus cabelos, repartidos em duas tranças largadas pelas
costas, eram de um negro profundo. Os olhos, igualmente negros e rasgados, davam-lhe o ar de uma mocinha.
Malachias explicou a sua presença:
- Meu pai avisou-me da vossa chegada e eu aqui vim para acompanhar-vos.
Depois de muitas perguntas de parte a parte, entraram na igreja e em seguida no claustro da Faculdade. Uma tal visita despertou logo a curiosidade
da escola. Quando Malachias passou pelas arcadas, em companhia dos primos e da menina, houve um murmúrio entre os estudantes. Que seria aquilo? Não
faltou logo quem explicasse que a jovem vinha prestar concurso para ser professora pública de Santo Amaro. O fato, no entanto, apesar de não saer
novo, atraiu a atenção de todos aqueles rapazes. Para tanto, naturalmente, muito contribuiu a beleza de Emygdia.
Quando entraram na sala, os examinadores já lá estavam a postos e os estudantes que os acompanhavam à distância ficaram agrupados à porta.
Puseram-se a conversar, a discutir, a falar alto. Foi preciso que o presidente da banca agitasse no ar a campainha, impondo silêncio.
Então começou o exame. Emygdia estava sentada diante do presidente da mesa e dos dois examinadores. Mostrava-se um tanto nervosa, apertando uma na
outra as mãozinhas geladas. Malachias encostou-se a uma das janelas baixas que abriam sobre o largo; com a mão esquerda apoiada na ilharga
sustentava o chapéu alto, enquanto com a direita apalpava o peito engomado, por dentro da cava do colete. As duas crianças, de mãos dadas,
permaneceram próximas da mesa, para melhor ouvirem aquela prova que lhes aparecia com uma importância fora do comum.
O exame durou pouco mais de meia hora e Emygdia saiu-se tão bem que, ao deixar a sala, os estudantes fizeram-lhe uma manifestação com palmas e
frases de entusiasmo. Se a travessia do claustro fosse maior, certamente surgiriam os discursos. Malachias e a prima iam à frente. Um pouco atrás,
os dois meninos sempre de mãos dadas. Em certo ponto, o estudante Manuel Antonio, um grande poeta acadêmico, de rosto oval e olhos claros, muito
rasgados, levantou o braço e mostrou-os aos colegas:
- Saudemos o grande poeta e a sua Musa!
Todos riram. Todos, menos Paulinho que, por sinal, nunca mais esqueceu aquela frase.
Do Largo de São Francisco foram para o Piques, onde Malachias de Salles Guerra tinha o seu sobradão. Ficava na esquina da ladeira de Santo Amaro e
continuava num muro até a esquina da ladeira de São Francisco. Em frente, ficavam a ponte sobre o Anhangabaú, a Cruz Preta e uns casebres. Lá muito
para baixo, entre árvores, o obelisco.
Pousaram na casa de Malachias. No dia seguinte, retomaram o banguê e seguiram para Santo Amaro. À hora do jantar chegaram à vila. Francisco
Antonio das Chagas esperava-os na altura das primeiras casas, cheio de curiosidade pelo exame da filha. As notícias eram boas. Depois do "louvado",
foi ela mesma, caminhando ao seu lado, enquanto o banguê ia vazio na frente, quem lhe contou tudo, com alegres pormenores.
Na Rua Direita separaram-se: Chagas entrou na escola e os filhos tomaram mais adiante o caminho da chácara. Apenas aberta a janela da casa, o
professor viu o chapelão do seu concunhado José Antonio Leme da Guerra que, parado na rua, espiava para dentro da sala.
- Onde ides, mano Guerrinha? – perguntou Chagas.
- Fui pagar uma dívida de jogo ao Ignacio Jacú.
- Muito dinheiro?
- Assim, assim… Um vintém.
José Antonio Leme da Guerra enviuvara de nhá Maria Antonia. Os filhos estavam criados. Malachias de Salles Guerra, residente na capital,
notabilizava-se na política e conquistava lugar de relevo na sociedade. Enquanto isso, o pai, viúvo, de ânimo loução, gastava o tempo o melhor que
podia na pacata vila de Santo Amaro. Todas as noites, na sala de jantar de sua residência, à luz de uma vela, os figurões se reuniam e ficavam até
tarde, grudados na orelha da sota. Jogavam o solo a dez réis por partida. Nessas reuniões eram muito encontradiços os outros camaristas. Bento Pires
de Olifeira e Ignacio Antonio de Borba, a quem o Guerra,no fervor do jogo, chamava pela sua alcunha de Ignacio Jacú, o que punha o homem todo
formalizado e escandalizava os conspícuos parceiros.
No dia seguinte, como vimos, aquele que por acaso ficava devendo ia saldar o débito na casa do credor…
Não raro, o jogo terminava por uma discussão entre José Antonio Leme da Guerra e Francisco de Assis Pinheiro e Prado que, em política,não se
deixava vencer pelas razões do seu concunhado. Militavam em campos opostos. Leme da Guerra era "farroupilha", como sua filha Jesuina, ou como seu
filho Malachias; Pinheiro e Prado era "cascudo", e dos mais renitentes.
Quando ele ia a Santo Amaro e perdia duas partidas a fio, o sangue lhe subia à cabeça e logo encontrava afinidades entre a má sorte daquela noite
e as picuinhas da política…
Mas com o Chagas não se dava o mesmo. Leme da Guerra espreitava-o por diversos motivos: porque não jogava o solo, porque não se interessava pela
política, apesar de presidente da Câmara, e também (vamos ser francos) porque Chagas era pai daquela encantadora Emygdia Clementina, que, toda
rosada, acabava de chegar da capital onde a sua inteligência tanto brilhara. O tio viúvo tinha um fraco pela sobrinha que, tempos depois, deveria
ser sua segunda esposa. Chagas não percebia isso ou, pelo menos, não dava essa "ganja" ao concunhado.
Já noite, os dois saíram da escola e se dirigiram para a chácara, onde Leme da Guerra ficou muito tempo, ouvindo a sobrinha contar os pormenores
do concurso. Depois, foi-se embora pela noite fria, com um bastão e uma lanterna. Em caminho, no silêncio do campo e à tênue claridade das estrelas,
pensava aflitamente na fórmula inédita com que um dia, se Deus lhe desse vida e coragem, solicitaria ao Chagas a mão da filha. De quando em quando,
parava, tirava a binga do bolso e acendia um cigarro apreensivo. Achava aquele pedido difícil, difícil…
Depois da partida de mano Guerrinha, a família ainda ficou na sala, ouvindo as últimas novidades de Emygdia. Nhá Gequinha embalava-se lentamente
na rede; Lucas, com os cotovelos apoiados na cômoda, acompanhava, muito alheado, os desenhos da toalha de crivo; Maria Seraphina, com a maior calma
do mundo, repetia a sua tarefa de todas as noites: cortava as velas de sebo pelo meio e espetava os cotos nos castiçais. Depois, com muito jeito, ia
acendendo uma vela na outra, para dar aos que se fossem deitar.
A janela ainda estava abeta, mas não havia vento. Ouvia-se o rumor caricioso das noites frias. Sentia-se a umidade cheirosa dos campos. Chagas,
que se encarregava de "fechar a casa",dirigiu-se para essa janela e ficou um instante a olhar para fora.
Foi quando Paulinho, sentado à mesa, com um livro aberto diante dos olhos, se pôs a ler um trecho, para Emygdia. Aquela leitura teve o dom de
interessar a todos, de modo que a cena familiar, de todas as noites, ficou suspensa durante alguns minutos. O menino lia com grande facilidade, com
perfeita dicção, dando colorido à paisagem e vida aos diálogos. Em certo ponto, o pai interrompeu-lhe a leitura:
- Que livro é esse que vós estais lendo
- "Gil Braz de Santilhana", de Lesage.
- Em português?!
- Não, senhor; em francês…
Nessa mesma noite, Paulinho, depois de fazer as suas orações habituais, repetiu uma frase que lhe ficara a cantar nos ouvidos: "… o grande poeta e
a sua Musa". E ao repeti-la, via, na penumbra das arcadas, o estudante Manuel Antonio, a sorrir-lhe com seus olhos grandes e claros, onde havia um
pouco de sonho, um pouco de loucura…
(Do livro A vida de Paulo Eiró, em preparo)
Affonso Schmidt
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