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A tinguejada
No dia seguinte, as imediações da lagoa apresentavam um aspecto de povoação improvisada. Cerca de cem tetos já se espalhavam pela capoeira, como
procurando a sombra e a proteção dos esparsos bosques. As famílias chegadas à última hora não tinham tido tempo de levantar o seu rancho e, como o
tempo estivesse limpo e seguro, se haviam abarracado por ali, de um modo rudimentar. Os animais, livres da carga, pastavam soltos entre os cambarás
e, sobre os seus dorsos luzidios, voejavam os carapinhés.
Negociantes da vila tinham instalado ali pequenos botequins. Nhá Trindinha, que aparecia em toda parte, vendia quitandas. Outras figuras populares
ganhavam o tempo apregoando café com mistura, gengibirra, capilé, rapadura, melado, garapa, rapadura de cidra, amendoim torrado e comes e bebes de
toda espécie. Respirava-se à beira da lagoa um ambiente de festa.
Naquela manhã iniciava-se a pescaria. Diante das barracas encontrava-se sempre um toro de madeira arrastado do mato e, sobre ele, senhores e
escravos se debruçavam na faina de macetar timbó. Um cheiro ativo, característico, embalsamava a manhã.
De quando em quando, um grupo de homens, levando nas mãos rodelas de cipós gotejantes de sumo, descia à lagoa e entrava por ela adentro até ficar
com água pela cintura e, ali, espalhava à direita e à esquerda as filipêndulas maceradas. A superfície das águas se cobria de manchas irisadas que
se iam alargando nas ondulações.
Homens e mulheres agrupados à beira da água seguiam com atenção o seu trabalho. Atiravam-lhes lembranças e chalaças. Proclamavam a sua pouca
sorte. E tudo isso era acompanhado de risadas. Depois de uma expectativa que durava horas, os peixes começavam a emergia à flor da lagoa, com
rabanadas aflitas, para de novo sumirem nas águas. Mais um instante e os acarás, as piabas e os lambaris voltavam à tona, tontos pelo timbó,
revirando para a luz o ventre prateado. Na sua desorientação enveredavam para as margens e iam cair nas mãos ágeis dos pescadores, de calças
arregaçadas para cima dos joelhos. Estes colhiam-nos com mãos espertas e metiam-nos nos samburás que traziam a tiracolo.
A cena se repetia durante dois ou três dias inteiros. Quando não era um, era outro pescador que ia atirar timbó na lagoa. Por fim, já não era
preciso que alguém tivesse esse trabalho; as águas estavam saturadas da essência letal e os peixes, aos cardumes, apareciam indefesos, rolando de um
lado para outro.
As mulheres, com as baetas arregaçadas por cima da cabeça, as saias sungadas na cintura, mariscavam com peneiras de taquara. Os homens, fartos de
recolher peixe no samburá, adentravam pelo lago e transformavam a pescaria em natação. Alguns deles, que não queriam molhar-se, que se moviam com
cuidado, não raro escorregavam e caíam. Nessas ocasiões, os espectadores que se amontoavam de cócoras nas margens, riam a bandeiras despregadas.
Nos ranchos havia fartura de pescado. Eram piabas, lambaris, acarás, tabaranas, até mesmo mussuns, traíras e bagres. Estavam amontoados em
gamelas. As escravas, com facas afiadas, escamavam, lanhavam e salgavam, dispondo-os em camadas nos alguidares de barro. Algumas famílias preferiam
levá-los já fritos para a vila. Nesses ranchos, sobre a tisnada itacuruba, rechinava uma larga frigideira a meio de gordura e os peixes iam sendo
atirados aí até ficarem tostados, a ponto de poderem ser trincados sem levar em conta os espinhos. Nhá Géquinha determinava a Gertrudes:
- Gertrudes, deixai o peixe tostar até ficar pururuca…
Havia entre aquela gente duas pessoas que não se interessavam pela pescaria. Eram Paulinho e a Musa. Levavam o tempo a passear pela beira da água,
entre os curiosos,sem se aperceberem da sua presença. Conversavam e riam sempre como se tivessem muita coisa boa a dizer-se. Cataram flores e com
elas fizeram coroas; procuraram descobrir onde se escondia um sabiá que cantava sempre, sem denunciar o seu pouso; ao cair da tarde, com a ponta de
um canivete, gravaram seus nomes no tronco de uma árvore. E assim prosseguiriam se Emygdia não fosse chamá-los, numa carinhosa censura, para comerem
ovas de peixe com farinha torrada.
Gabriel Galdino Branco, marido de nhá Cherú, recebeu-os na porta com cara tão amiga que comoveu a Paulinho. Este compreendeu aquela simpatia,
sentiu-se infinitamente grato e disse lá consigo: - Ainda hei de consagrar-lhe uns versos…
Quando terminaram a refeição, escurecia. A lagoa estava deserta. Sobre ela erguia-se uma neblina gélida que o vento atirava pelo campo, como véu
imponderável que se ia esgarçando nos espinheiros. Logo depois, os botequins acenderam os candeeiros, iluminaram-se. Foram logo se enchendo de
agregados e escravos que aproveitavam aquela oportunidade para divertir-se um pouco. Nhá Trindinha fritava traíras à porta do rancho e as vendia em
cuias de farinha da última fornada. Os moleques corriam de um lado para outro, apanhando lenha, apesar da noite estar escura, e, dentro de pouco,
aqui e ali erguiam-se alegres fogueiras que se foram povoando de sombras.
Paulinho e a Musa sentaram-se à beira de um desses fogos, entre gente festiva. As violas começaram a lamentar-se e dali a pouco a noite ficou
cheia de toadas doridas e tristes. Perto deles, a Gertrudes cantou uma das suas quadrinhas a que o saudoso nhô João Redondo chamava de "décimas" e
que ela improvisava no momento ou aprendia não se sabe onde. Paulinho calou-se, ouviu-a com toda atenção e depois repetiu os toscos versos,
martelando as tônicas fracas. A Musa riu:
- Vós gostais então da poesia da escrava?
- Gosto. Estou até colecionando as quadrinhas populares. Hei de publicar um estudo sobre essa poesia que é a queixa dos negros sem liberdade e dos
brancos abandonados ao seu destino.
Naquele momento, um caipira começou a contar "causos". Era nhô Tó. Paulinho conhecia-o. Fora ele que, na última terça-feira-gorda, espetara a
lapiana na barriga de um mascarado.
- E matou-o? Perguntou a Musa.
- Não. O Franzen – pois era ele – tinha posto uma barriga postiça, feita de palha.
***
Nhô Tó contava anedotas ocorridas ali mesmo. A primeira delas referia-se ao Zé do Correio, que havia iniciado a sua carreira de estafeta entre a
capital, M'boy e Itapecirica, passando por Santo Amaro. Fazia o serviço num burro sabido, que conhecia o caminho e só faltava entregar as cartas.
Uma vez, o Jurubatuba encheu e como o Zé do Correio forçasse a passagem, foi arrastado pela correnteza com animal e tudo. Então, pôs-se a gritar. Do
outro lado apareceu um conhecido.
- Me acuda! Me tire daqui pelo amor de Deus!
O outro ficou atarantado.
- De que jeito?
E o Zé do Correio:
- Do jeito que mecê quisé!
***
Como pedissem outra, ele coçou a barbicha de cebola e atendeu às solicitações. Tratava-se agora do Piquira, da banda de música. O homenzinho tinha
esticado a perna no sítio e os amigos levaram-no, na rede, para enterrar no adro da igreja. Mas o Jurubatuba estava numa das suas cheias. A estrada
aparecia cortada pelas águas. Os que conduziam o Piquira andaram de um lado para outro, à procura de passagem. Em certo ponto, desanimados, deitaram
a rede no chão e se puseram a pitar um cigarro. Escurecia. Foi quando o "morto" sentou na rede e, estendendo o braço, disse:
- Ó!... Nestes causo quando eu tava vivo passava por ali…
Houve arrepios e risadas pela assistência. Nhô Tó cuspinhou de lado e indicou o Piquira com a ponta do beiço.
- Tá í o Piquira que não me dêxa mintir…
Nhá Trindinha quis saber se era mesmo verdade, mas o músico da banda nem lhe deu resposta:
- Essa nhá Trindinha é especula!
Lá por detrás da serra longínqua apareceu o disco lunar. Paulinho e a Musa ergueram-se e prosseguiram no passeio. A lagoa estendia-se prateada. O
campo, batido pelo luar, apresentava ilhas de silêncio e sombra. Os ranchos dormiam quietos, lambidos pela claridade interna das itacurubas. E
estavam nessa muda contemplação quando Gertrudes veio chamá-los. Os dois seguiram a escrava, em passos lentos, procurando retardar o mais possível o
instante da despedida.
(Do livro A vida de Paulo Eiró, em preparação)
Affonso Schmidt
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