Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria
Matraca
(Página de um romance histórico)
Certo domingo azul, de céu profundo, com uma poeira diáfana pela atmosfera, saiu de casa a assobiar. Tomou a Rua da Boa Morte e chegou ao Largo do
Carmo. Os taludes do João Theodoro que punham alguma ordem naquele barranco, com seus passeios estreitos, sempre floridos, eram considerados
logradouro público, como o Jardim da Luz ou a Ilha dos Amores. Muita gente saía de casa, em dias de folga, a fim de espairecer um pouco nos seus
bancos.
Atravessou o pátio do Carmo, onde os moleques faziam algazarra, e foi passear diante do quartel dos Permanentes, para ver alguma coisa de novo. As
várzeas estavam muito quietas, sob a carícia morna do sol. As águas do Tamanduateí brilhavam. O gasômetro pareceu-lhe mais baixo e, na empoeirada
estrada do Braz, formigavam vultos humanos. Depois, a vista da Ilha dos Amores, onde adivinhava casais passeando à sombra das árvores, tentou-o.
Iria até lá… Encaminhou-se para a ladeira e pôs-se a descê-la. Um tílburi subia penosamente; o animal escorregava no chão empedrado.
Mais alguns passos e o passeante teve de parar. Chusmas de moleques convergiam de diversos pontos para a frente de um sobradinho amarelo, onde
parecia haver alguma coisa de extraordinário. Um projétil partido desse prédio veio cair ao seu lado, esboroando-se. Lutava-se ali. Que seria? Na
porta de uma quitanda, onde se abrigou, a preta velha, de grande chapéu de palha, tirou o pito da boca, cuspinhou a uma braça e contou-lhe o caso.
Aquilo era assim sempre, entrava ano saía ano.
Era o Matraca. Esse curioso indivíduo morava havia muito tempo naquele sobradinho que pouco a pouco se foi transformando em fortaleza. Nos
caixilhos não havia mais vidros. A pintura estava descascada e o reboco furao em diversos pontos. A janelinha que ficava sobre a porta apresentava
grades de ferro, com pontas retorcidas para fora.
Era ali que Matraca, de camisola comprida e capuz, trelia com os transeuntes. Muitos já sabiam da sua maluquice e não ligavam importância aos
desaforos. Mas com os moleques não se dava a mesma coisa. Afiava-se a língua durante horas inteiras. Depois, travavam-se combates em que havia
cabeças partidas, olhos saltados para fora das órbitas.
Todo dia, depois de um bom almoço, Matraca saía para a janela, a palitar os entes. A vizinhança, sempre assustadiça, recolhia-se, fechava-se por
dentro. Dali a pouco passava um moleque pela ladeira…
- Onde vai, piolhento?
- Piolhento é o diabo que o carregue!
- Olhe'que eu lhe arranco uma orelha!
- Vá arrancar a orelha…
Pof! E o moleque não terminava a frase, porque uma pelota de barro, atirada por bodoque, vinha esborrachar-lhe o nariz. Era o toque de alarma. O
valdevinos punha dois dedos na boca e começava a dar assobios de endemoniado. Então, do mercado, do Osório, da Rua do Hospício, repontava a saparia
em pé de guerra, sacudindo ao correr os bolsos empanturrados de pedras. O Matraca, por seu lado, parecia ter armazenado em casa um arsenal de
bodoques, de atiradeiras, um sortimento de pelotas feitas de barro e cozidas na chapa do fogão, pedras de todos os tamanhos e feitios, canudos de
areia grossa para despejar na cabeça dos assaltantes em caso de escalada do seu reduto. Falava-se também em caldeirões de água fervente, em tachos
de azeite, em sacos de cal virgem.
A luta era encarniçada e por vezes cruenta. Pedradas de criar bicho. Toques de corneta, vozes de comando, arrancadas heroicas, gritos lancinantes
e gente eu caía a chorar, limpando a cara na fralda da camisa. Matraca ficava de joelhos atrás das grades, indiferente à chuva de calhaus e, de
bodoque em punho, pausadamente, velho soldado de tal guerra, ia distribuindo certeiras pelotadas nos contrários. Aquilo era só: pof, pof, pof… A
cada bodocada que acertava ouvia-se um grito e um moleque era posto fora de combate. Mas era logo substituído por outros, que pareciam surgir do
chão.
Tais encontros terminavam sempre com a intromissão dos pais, que iam tomar satisfações de Matraca. Homens e mulheres chegavam a gesticular, diante
da porta do maluco:
- Você quase matou meu filho…
- Chame o vidraceiro!
- Isso não se faz!
- Vá queixar-se ao bispo!
Azedava-se logo a contenda:
- Venha dizer isso cá fora!
- Covarde!
- Matraca! Matraca!
Então, o bodoque voltava à faina: pof, pof, pof… E a chusma dos reclamantes fazia retirada estratégica, numa nuvem de poeira, entre o pipocar das
pelotas de barro que se desfaziam contra as pedras largas da ladeira. Por essas e outas,os transeuntes evitavam a ladeira do Carmo naquele tempo e a
vizinhança vivia num sobressalto. As queixas chegavam aos montes na polícia, mas o conselheiro Furtado, sempre de sobrecasaca preta e largas calças
de brim, parecia gostar das proezas do Matraca e dizia aos queixosos:
- Gosto do Matraca. Ele impede os figurões da governança e os lojistas da Rua da Imperatriz de irem todas as atardes à ponte do Carmo, para ver as
lavadeiras enxaguarem a roupa no Tamanduateí.
Em represália, essa gente limpa, amadora de quadros bucólicos, vingava-se do conselheiro Furtado, atirando-lhe calúnias. Chegava mesmo a dizer que
ele, o conselheiro, não usava ceroulas. Creio em Deus Padre! E a preta quitandeira, escandalizada, persignou-se com o pito, como se tivesse visto o
Tinhoso, em carne e osso.
Affonso Schmidt
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