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As moças do sobrado
Em Santo Amaro, no pátio da Igreja, em frente ao histórico templo, ainda há poucos anos podia ser vista, e amorosamente considerada pelos
espíritos melancólicos, uma construção que, como tudo levava a crer, provinha do tempo da catequese e das bandeiras. Era um sobrado já descambando
para tapera e que se erguia entre casas humildes. Todos o conheciam simplesmente como "o sobrado", designação que passara de pais a filhos, através
dos séculos.
Teto de duas águas, de telhas portuguesas enegrecidas pelo tempo, estendia largos e ondulados beirais sobre o pátio grosseiramente empedrado, onde
as gramíneas se esgueiravam pelas frestas e, não raro, flores do campo abriam pequeninas e delicadas corolas. À sombra desses beirais, nas tardes
limpas e claras, meninas de saia rodada brincavam de "tempo será" e negras velhas, de xale pela cabeça, pitavam em pitos de barro, evocando coisas
de antanho.
No lance superior do sobrado, havia quatro janelas, duas de rótula e duas de balcão-de-rótula, o que lhe dava um aspecto de velhice imemorial. Na
parte inferior, recortavam-se duas portas de folhas inteiriças, alternadas com duas janelas baixas, de bandeiras tripartidas e escuros largos que
abrigam para o lado de fora, o que representaria certa ameaça para os transeuntes se naquela época fossem encontradiças diversas pessoas passeando
ao mesmo tempo pela mesma rua.
Nesse sobrado, durante muitos anos, residiu o capitão Bento José de Salles, casado, em 1749, com a nobre Anna Pontes de Eiró, da família do
venerável padre Belchior e Pontes. José de Salles, como foi conhecido durante a vida e mesmo depois da morte, era o que se poderia chamar de "o
sossego em pessoa". Entrou par a tradição de Santo Amaro como a flor dos distraídos; a lenda tornou-o herói de umas tantas anedotas, que eram
repetidas pelas sestas e serões do povoado.
Contava-se, por exemplo, entre pitadas azuis de cigarro de palha, que, certa vez, a esposa, sentindo os prenúncios de próximo parto, mandou-o com
urgência à casa da comadre. José de Salles partiu a toda presa. Ninguém sabe o caminho que tomou nem as voltas que eu, mas quando ele regressou ao
lar, em companhia da curiosa, já era um pouco fora de tempo. O sobrado estava em festa. Gente que entrava e saía. Mesas postas. Toalhas de linho.
Cortinas de renda. Mães-bentas, quindins, baba-de-anjo. Que foi? Que foi? Já se tratava do batizado da criança…
José de Salles deixou muitos herdeiros, entre os quais Joaquim Antonio de Mattos, que mantinha dares e tomares com as musas. Esse seu filho varão
casou-se, em 1783, com Maria Branca Ribeiro – Mãe Branca para os íntimos – e foi o pai daquelas graciosas nhanhãs conhecidas como "as moças do
sobrado". A propósito… Naquele tempo, quando o sobrenome paterno passava para uma filha, tomava geralmente o gênero feminino. Essa veneranda Mãe
Branca assim se chamava por ser filha do capitão Antonio Blanco Ribeiro, que procedia de grada estirpe castelhana.
As numerosas filhas do casal, pouco letradas caipirinhas de Santo Amaro, no tempo em que São Paulo era ainda uma rançosa província, deixaram fama
de lindeza e inteligência, tendo algumas delas "casado com doutor", o que representava uma aspiração feminina do tempo. As moças do sobrado podem
ser assim lembradas:
Maria do Carmo, casada, ali por 1830, com o "cadete de Mato Grosso" João Guedes Homem Portilho, filho do tenente-coronel Portilho, nascido em
Lisboa. No assentamento João Guedes figura como "ajudante", e chegou a ser mais tarde comandante do Corpo de Permanentes; Maria Antonia, casada com
José Antonio Leme da Guerra e que veio residir na capital; Maria Joaquina, esposa de José Ferraz de Campos, que acompanhou o marido para Campinas;
Antonia Mariana Branca, casada em 1817, com João Franco Ribeiro. Essa senhora, apesar de pouco enfronhada nos mistérios da leitura e da escrita,
como era regra no seu tempo, fazia versos e versos humorísticos, alguns dos quais andaram repetidos pelos salões de Santo Amaro, entre fungadelas de
rapé e sorrisos perdidos em ramalhudos lenços de Alcobaça.
Mas no sobrado ainda viveram outras Marias:
Maria das Dores, a discreta Nhandores, casada com o dr. Firmino José Maria Xavier, que foi residir em Santos; Anna Luiza, Nh'Anninha, casada, em
1828, com o capitão Francisco de Assis Pinheiro e Prado. Esse velho paulista, esmoler da Santa Casa de Misericórdia, era uma figura particularmente
simpática. Sanguíneo, de barbas e cabelos alvíssimos, passava horas inteiras jogando a bisca-de-nove com a esposa. Os tentos eram de olhos-de-cabra.
Conta-se que uma vez, depois de perder trabalhosa partida, ficou de mau humor. A esposa, então, pintou-o com uma simples frase:
- Ó sol de toucados brancos!
Ele próprio repetia essa frase, nas conversas.
Uma das mais novas entre as moças do sobrado era Maria Angelica, nhá Gequinha, que mais tarde deveria casar-se com um primo viúvo, Francisco
Antonio das Chagas, e contar a glória melancólica de ser a mãe de Paulo Eiró, um dos maiores e mais infelizes poetas do nosso passado.
De 1810 a 1836, o sobrado foi um dos encantos de Santo Amaro. No pátio da Igreja, diante do velho templo, ele representava um pouco de animação e
festa naquele quadro em que tudo parecia adormecido.
Nem sempre o vento da serra murmurava na copa arroxeada das paineiras. Nem sempre as cabras soltas mastigavam miudinho as trepadeiras das cercas.
Havia horas em que o pátio, calçado de granes lajes chatas, parecia sonhar com a inúbia dos velhos tempos. Os cachorros vadios deitavam-se à sombra
dos beirais e quando a faixa de sol lhes alcançava o dorso, eles viravam para o canto, aproveitando o mais que podiam a frescura daquela sombra.
Em frente ao sobrado, na torre da Igreja, havia revoadas de andorinhas. Quando, ao escurecer, o sacristão dava as badaladas lentas e graves das
Ave-Marias, o céu ficava ressoante de dobres e de asas.
Era voz corrente que por aquele pátio passavam mais rapazes do que se poderia esperar numa localidade de tão escasso movimento. Aos domingos, a
missa era muito concorrida. Os devotos vinham de longe, em famílias, em bandos. Como os caminhos fossem maus, faziam o percurso descalços,
carregando as botinas na mão. Estudantes da capital, muito adamados, a quem o comadrio chamava de polkas, iam a cavalo assistir à missa de
Santo Amaro. Nem todos, certamente, lá iriam por excesso de zelo, mas para verem, embora de longe, as moças do sobrado…
Afora, no pátio da Igreja e nas janelas do solar, elas eram vistas nos passeios mais lindos da época; nas cavalhadas do Largo da Cadeia, ou nos
bailes que se realizavam em casa do Manuel Joaquim do Rosario, Antonio Bento de Andrade, José Fernandes Moreira e outros figurões da vila. Além
disso, não perdiam as "farinhadas", as "tinguejadas" e os passeios pelo campo à cata de guabirobas, dos araçás, dos biris e dos cambuís.
Assim foram casando, uma a uma, as moças do sobrado.
(Do livro "A Vida de Paulo Eiró", em preparo)
Affonso Schmidt
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