Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria
"Monsieur" Vaz
Ali por 1907, embora o Larousse não tenha registrado, deu-se um grande acontecimento em Paris: a minha chegada. Foram dez meses de vida
sobrenatural. A não ser um pasquim da oposição que assinalou essa visita com um artigo de quatro linhas intitulado: "Menino fugido, procura-se",
nenhum jornal respeitável assinalou a minha passagem por aquela capital.
Nas rodas que frequentei (os bouquineurs, o jardim do Luxemburgo, a posta restante do Palais des Postes e a canjica das irmãs Peruanas), ao
saber-se que eu era vagamente brasileiro, havia sempre um erudito que explicava: "É da terra de Monsieur Vaz". Então os ouvintes faziam uma ligeira
idéia da minha procedência. O dono da bicoca da Rua Vaugirard, onde nos dias de grande gala eu tomava um bouillon esporádico, ao saber-me
oriundo destas ensolaradas plagas, confessou-me com orgulho que tinha sido cocheiro de Monsieur Vaz. A verdade é que aquele Monsieur Vaz era, no
Paris de 1907, mais conhecido do que o Brasil. Muito tempo depois, já aqui no Brasil, vim a conhecer o cabuloso Monsieur Vaz.
Era Trajano Vaz. Um pintor nascido em Iguape, mas que andou por esse mundo a fazer coisas extraordinárias. Deixara o Brasil por causa de um
fantasma. Expliquemo-nos. Ali por 1893, ele e o inconfundível Emile Rouéde (de que fala Coelho Netto, na "Conquista") viram-se donos do
extinto Diario de Santos. Trabalhavam como duas bestas, mas nada do jornal "entrar". Imprimiam
diariamente 1.000 exemplares; encalhavam 999. Certa noite, Trajano teve uma ideia: escreveu a notícia de um fantasma que, alta noite, rondava os
muros brancos do cemitério do Paquetá. Foi um sucesso nunca visto. Não havia mais jornal que chegasse.
Aconteceu,porém, que quando o êxito cresceu demais e foi preciso retirar o fantasma de circulação, já era tarde. A população de Santos ia toda
noite para as proximidades do cemitério e, como a polícia começasse a querer intervir, surgiram conflitos. Uma bela manhã, chegou a cavalaria e
tomou militarmente o cemitério. Trajano, tido como o autor de tudo aquilo, foi detido e trazido para a capital, onde ficou em liberdade mas sob as
vistas da polícia. Era hóspede do Estado, na antiga Rotisserie. Tudo quanto era jornalista, artista, poeta e boêmio daqueles dias ia almoçar e
jantar com ele. E a despesa foi tal que no fim da primeira semana o chefe de polícia chamou-o e mandou-o embora para Santos.
Logo depois começaram as suas viagens. Em Buenos Aires, foi carregador da Darsena Norte; em São Petersburgo, empresário de uma companhia espanhola
de zarzuelas. Mas em Paris, quando eu pela primeira vez ouvi o seu nome, tinha um talher à mesa acolhedora do castelo d'Eu, em Eu-sur-Seine. A
princesa Isabel recebia-o com a sua imensa bondade. Ele retribuía a hospitalidade contando anedotas do Rio de Janeiro e, quando solicitado, cantando
as modinhas que faziam furor em Catumbi.
Quando a polida lua parisiense prateava o Sena todo azul, em cujas águas aparentemente imóveis dormiam as chalandes, ouvia-se uma voz no
parque do castelo:
Acorda Adalgisa
Que a noite tem brisa
Vem ver o lugar.
E o violão carioca gemia como se lhe estivessem arrancando as vísceras.
Um dia, Trajano Vaz sentiu a nostalgia do Brasil e aqui aportou de torna-viagem, entregando-se de corpo e alma à sua arte. Tem feito muitas
exposições, colhido braçadas de louros. Há poucos dias, no salão da Rua João Brícola, onde expõe atualmente numerosas telas, contou-me a seguinte
anedota:
Na Paris de antes da guerra, era escandalosamente chique ter-se ao guidão um chofer de cor. Os grandes senhores mandavam buscar motoristas na
Argélia. Os que apenas aspiravam a ser grandes senhores arranjavam-se com a prata da casa. Essa prata, no presente caso, eram impropriamente os
nossos amigos pretos que, sem um cobre no bolso, vadiavam pelos boulavards.
Trajano conhecida muitos desses Toussaints Louventure que andavam por ali à cata de aventuras Pouco a pouco, mercê das tramoias do acaso, indicou
uns três ou quatro a diversas damas elegantes. Em certo ponto chegaram mesmo a julgá-lo uma espécie de comboieiro, fornecedor de choferes…
Uma tarde, ia ele pelo boulevard com dois patrícios, mais ou menos pigmentados. Um era do Pará, rico negociante de tabacos e importador de
filmes para as festas religiosas de Belém. Outro era jornalista carioca, de nomeada. Ambos de muita representação. Quando passaram diante de uma
confeitaria, começaram a ouvir chamados insistentes. Atenderam. Era uma dama conhecida de Trajan, que não resistira à tentação de falar-lhe. Então a
senhora, mostrando os homens com a ponta do leque, declarou:
- Fico com os dois.
Neste momento Trajano Vaz está escrevendo as suas memórias. Cinquenta anos de boemia, tal é o título. Fácil será imaginar o êxito desse livro,
onde duas gerações de artistas,intelectuais, políticos e cavalheiros de relevo social aparecem em anedotas vívidas, contadas com admirável verve por
esse pintor que tem pintado o sete e que todo o Brasil conhece e admira.
Affonso Schmidt
Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria