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O homem da rabeca
Não pensem vocês que na noite de hoje todos os meninos da cidade têm um pinheiro iluminado, uma esplêndida mesa de doces, e amanhã, quando
alvorecer, vão encontrar pilhas de brinquedos sobre o borralho morto do fogão. Nem todas as crianças são ditosas. Mas, as outras? – perguntarão
interessadas as almas compassivas. Ah! Das outras, aquelas de que ninguém se lembra, há alguém que cuida… É o homem da Rabeca.
Certamente, não haverá por aí criança inteligente e boazinha que, já agora, não queira saber quem é essa misteriosa personagem. Eu mesmo, que
estou contando esta história, não sei quem ela seja, mas vou lembrar uma tradição que na minha vila, há séculos, se transmite de pais a filhos. Eu a
ouvi, mais ou menos com estas palavras, quando tinha a idade de vocês:
Todas as crianças devem ser felizes, principalmente uma vez por ano, na noite de Natal. Assim se pensava naquela vila pasmada e silenciosa. Por
isso, os pais ricos, em chegando esse tempo, enchiam os filhos de doces e brinquedos muito bonitos. Depois, iam à casa dos vizinhos e distribuíam
mãe-benta, pé-de-moleque e cocada mulatinha. Esses, por sua vez, saíam pela beirada do rio e iam dando cartuchos de paçoca de amendoim à molecada
sem nome.
Quando o relógio da torre batia onze badaladas, já quase todas as crianças do lugarejo sentiam-se felizes. Mas havia um quase. Referia-se às que
moravam longe, às que estavam doentinhas no fundo da cama, as que não tinham papai nem mamãe. Essas, não havendo recebido certo ano um presente de
Natal, por pequenininho que fosse, foram deitar-se muito esquecidas, muito tristinhas…
Mas ali pela meia noite passou o Homem da Rabeca. Uns dizem que era um sujeito alto e seco, com a barbicha espetada para a frente, que dava largos
passos ao mesmo tempo que tocava; outros chegam a dizer eu nem havia sujeito: era a rabeca que ia pelo ar, na altura de um homem, a tocar sozinha.
Ninguém sabia ao certo. O caso é que ao escutar aquela ária alegre que passava lá fora, na noite branca de Ivar, as crianças tristes erguiam-se na
cama e como se tivessem prática do que iam fazer, davam um pulo na noite, como balão que sobe, atravessando as paredes tal se elas fossem de vidro e
os seus corpos claridade.
E lá iam atrás do Homem da Rabeca. Todos os que haviam sido esquecidos no lugarejo atendiam ao seu chamado.
Aconteceu, porém, que o Mingote, menino muito esperto que havia recebido um saco de brinquedos, soube da história e ao escutar a misteriosa toada,
pôs às costas o pesado saco e deu também o seu pulo no espaço.
Lá se foi ele. Mas, enquanto seu corpo atravessava com facilidade as paredes e as árvores do jardim, os cacarecos iam batendo por toda parte, numa
barulheira ensurdecedora, como lata amarrada em cauda de cachorro.
O Homem da rabeca ia tocando à frente e a garotada correndo atrás; na rabeira, atrapalhado, ia o Mingote. Chegando ao rio, tão prateado pela lua
que mais parecia um rio de leite, o Homem da Rabeca, sem hesitar, continuou o seu caminho sobre a água, e a criançada, seguindo o exemplo, fez a
mesma coisa. Mingote também quis ir.
Era só atirar para as ervas aquele saco de brinquedos e fazer como os outros meninos, correr alegremente pela água parada do rio e juntar-se aos
que lá estavam mais adiante, numa grande algazarra. Mais de uma vez esboçou o gesto de livrar-se da carga, mas o ruído alegre dos brinquedos
convencia-o do contrário.
Então, para ver se de fato o seu encanto equivalia ao sacrifício da solidão, enfileirava-os sobre a areia úmida. Afinal, o polichinelo já estava
muito visto; o carro de folha de Flandres amolgava-se com facilidade; a boneca dizia "papai" e "mamãe", mas era preciso apertar-lhe o peito de fole…
E apesar de tão bonita, Mingote sabia por experiência, tinha alma de arame, corpo de serragem, cabelos de estopa. Que valia tudo aquilo para sua
felicidade? Nada. E, pensando nisso, encaminhava-se para a água… Mas logo depois olhava para trás… Voltava…
A cena repetiu-se muitas vezes.
Teria ele forças para abrir mão dos seus brinquedos? E assim ficou indeciso, na beira do rio, enquanto ouvia cada vez mais longe a bulha festiva
dos outros meninos. Seria tão feliz se conseguisse chegar até eles. Dentro de pouco compreendeu que seria o único menino triste daquela noite de
Natal. Mas, traiste por sua culpa.
Então… quis conciliar as duas coisas…
A água estava que nem vidro e os reflexos da lua se ajuntavam na superfície enrugada como uma farinha de luz. Mingote afinal resolveu-se a seguir
o bando, mas com o peso do saco que levava às costas, a água de quando em quando se abria e ele tinha de dar pulos para não ir ao fundo. Lutou muito
tempo mas, para não perder os brinquedos, resolveu regressar à margem e ali ficou, de olho comprido, muito triste, a contemplar a alegria dos demais
garotos.
O Natal dos esquecidos era festejado na primeira curva do rio, onde os ingazeiros pesados de ninhos, de aves e de parasitas se miravam nas águas
adormecidas. A festa aquela noite estava muito bonita. Nuvens de vagalumes que suspendiam no ar as suas lanternas iluminavam de verde a paisagem. A
orquestra era de […]. Num ramo inclinado, uma dança de tangarás. O martelo era mestre de cerimônias e dava o sinal quando era preciso. Um sagui,
descon[…], foi buscar uma cobra […], amarrou a ponta no galho e desceu por ela, como se fosse uma corda, até tocar a […] d'água; como a água estava
mesmo sólida, ele largou a cobra, que se enrolou depressa no galho.
A coruja, pousada numa forquilha, recitou:
Barata de casaca,
Camundongo de chapéu
Lagartixa de colete,
Saracura no mundéu.
As rãs acharam grana nos versos da coruja e riram m[…] quá, quá, quá, quá! Entre […] contradanças, as abelhas […]savam oferecendo favos de […]aos
convidados.
Quando o Homem da Rabeca chegou com os amiguinhos, as aves todas cantaram seus […]lindos cânticos, como se estivesse amanhecendo. A festa r[…]brou.
Nunca em nenhum […]cio houve reunião mais bonita. Os pequeninos tristes estavam maravilhados. Quando o Homem da Rebeca chegava perto deles, uma
infinita doçura penetrava-os, tornando-os tão felizes, felizes… E o homem so[…], perguntando-lhes quais os brinquedos que desejavam. […]queria uma
boneca; aquele[…] gato felpudo, aquele outro um carrinho pintado de azul; […]tão o desconhecido, com as mãos finas e brancas que pareciam
transparentes, tomava […]farrapos de neblina do rio e, depois de torcê-los, entre os dedos transformava-os nos brinquedos cobiçados. Era uma
alegria!
Neste ponto, ouviram-se gritos na margem do rio. Todos os […]ram assustados. Era Mingote que, testemunhando a alegria dos outros, se pusera a
choramingar, acabando mesmo por desabar num berreiro, gritando que queria ir lá também. O homem viu-o daquele jeito e ficou com pena. Com sua voz
amiga, gritou-lhe:
- Para você chegar até aqui, precisa atirar fora esse saco de bugiganga dourada. Liberte-o e venha!
Mingote desejava ir com os outros, mas tinha pena de atirar fora tudo aquilo que […]a sua felicidadezinha. E como não podia ir e ao mesmo tempo
levar consigo o trambolho, preferiu ficar à margem, sentado numa pedra, assistindo de longe à festa dos que não tinham nada. O homem observou tudo
isso, sacudindo tristemente a cabeça e dos seus grandes olhos pensativos caíram duas lágrimas que purificaram ainda mais a pureza das águas.
Quando ao alvorecer amiudaram os galos, ele tocou na rabeca a mesma ária, e regressou para o lugarejo, seguido das crianças que desde o começo se
haviam tornado suas amiguinhas. Os cachorros da estrada, quando os viram passar, estenderam as patas para a frente e mergulharam o focinho na
poeira. A madrugada cheirava a jasmins. Mas, onde haveria tanto jasmim naquela pobre terra: Em caminho, os garotos foram desaparecendo diante das
suas casas, levando consigo braçadas de brinquedos de neblina. No dia seguinte, quando acordaram, os brinquedos haviam desaparecido, desfeitos pelo
sol. Mas os pobrezinhos, embora de mãos vazias, lembravam-se de uma festa… de uma festa… E sorriam tão felizes!
Mingote também acordou no dia seguinte, mas estava com aquele saco de brinquedos sobre o estômago e tivera um pesadelo.
Mas quem é afinal o Homem da Rabeca?
Não sei quem é. Ninguém sabe. Deve ser infinitamente mais puro, mai suave e mais meigo do que todos os homens. É o amigo das crianças e dos que
sofrem. Em cada terra dão-lhe um carinhoso nome. Mas quem quiser conhecê-lo, vá hoje, à meia noite, sentar-se à porta dos casebres do bairro pobre,
onde há tantas crianças esquecidas…
Affonso Schmidt
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coluna final, truncada