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Afonso Schmidt na década de 1930
Original de foto publicada com o texto, no acervo do Arquivo Histórico Municipal de
Cubatão
Afonso Schmidt e seu tempo
Estamos em 1890. Uma República em vigor, A vida na
Baixada Santista não apresentava novidades. Uma parada de trem entra na história, dessas paradas que possuem apenas um pequeno abrigo e um nome:
Cubatão. Nada mais. O trem passa dia e mais dia, parando vez ou outra, quando alguém deseja apear.
"Ali nascia, vivia e morria gente, gente criada
preguiçosamente, ao embalo do trem, que tinha nomes, dramas, amores e ódios, gente que pertenceu a um romance jamais escrito e cuja existência se
enriquecia de novos episódios, a cada passagem pela estrada, a cada conseqüente evocação do poema dedicado à vila humilde."
(carta de Afonso Schmidt a Nair Lacerda ao evocar a sua terra natal).
O ambiente dos bananais, lírios e sapos do brejo é um poema. Uma estrada que se abria
ao horizonte rumo ao infinito. "Ao fundo, a Serra. Pinceladas frouxas/De ouro e tristeza em fundo azul..."
formava o painel de um passado. "Gente tostada que desfolha o mangue,/Crianças pálidas que vêm da escola".
29 de junho de 1890. Nasce um menino predestinado a futuro promissor, enquanto balões
riscam festivamente o céu na orgia de "Curiangos". Um mundo se descortinou aos olhos do menino, visão de um cenário:
"Nasci em Cubatão, passei a infância à beira do rio,
entre bananais. Com o tempo, troquei o sítio primitivo com a casa de pau-a-pique, os doze mil pés de bananeiras, as quatro laranjeiras amargas e uma
canoa com dois varejões, pela cidade com suas praças, avenidas, palácios e uma população diligente que trabalha para viver e vive para trabalhar.
Sinto que mudei. Por outro lado, os que chegam serra-abaixo contam-me que os bananais também mudaram".
E passados quase 100 anos, muita coisa mudou em Cubatão, ficando apenas os
contrafortes da serra, esfumaçada pelo complexo industrial. E raramente floresce o amarelo-ouro da flor do reino de Zanzalá, terras da serra
a lembrar "Zanr Allah", flor de Deus, ou "Zanerefail", flor da altura. Esse vocábulo do preto muçulmano a determinar a aleluia que
floresce em março, vislumbrando a abolição da escravidão, cujo centenário transcorre neste ano (N.E.: 1998).
O pai de Afonso Schmidt, João Afonso Schmidt, nascido em 4/5/1859 e falecido em
24/1/1927
Foto: acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
A sua infância está contida em crônicas, poemas e romances e representa significativas
evocações de um tempo, carregado de fatos e acontecimentos, numa descrição comovente para qualquer época. Teve ao longo de sua vida um anjo tutelar,
a sua mãe, a quem devotou página primorosa. Sentia que ela se debruçava e "sem dizer palavra, chorando comigo, sugeria
o caminho mais acertado. Seu nome fazia milagres. Se não descambei para o mal, se trago, por acaso, alguma coisa de aproveitável, ao cabo desta
jornada incrível, a ela, exclusivamente a ela, o devo - minha mãe!"
E o jovem Afonso Schmidt, com a obsessão da estrada, caminhou pela vida cruzando
muitos caminhos. E eles se tornavam limpos e luminosos, graças ao respeito e ternura que sempre dedicou a Odila, sua mãe. E foi ela que providenciou
o início do escritor, ajudando a publicar seus primeiros livros.
Desafiava aos dezesseis anos toda uma sociedade, quando vê nas primeiras páginas de
seu livrinho o seu retrato, "cabeleira, gravata borboleta, uma atitude hostil para com os preconceituosos armazeneiros
da rua Piratininga..." Levou os mil réis contados e amealhados com sacrifício para o tipógrafo Thomaz, da Typ. Thomaz
Stocco, para a edição dos primeiros versos, intitulados Lírios Roxos. Em duas palavras dirigidas à querida leitora, dizendo que seus versos
são simples "como podem ser os sonhos e as aspirações aos quinze anos", Afonso Schmidt
relembra seu início e afirma:
"Tempos depois, dei o livro a um poeta em moda naqueles
dias, um poeta de rimas como o classificaria o Osmar Pimentel, e ele se pôs a contar as sílabas nos dedos. Não entendi aquilo. Ele me
explicou, caridosamente:
- Falta metrificação.
- Falta o quê?
- Metrificação...
- Sei lá que diabo é isso...
Era a primeira vez que ouvi semelhante palavra que deveria atormentar-me ainda por
muitos anos. Foi mais ou menos assim que comecei.
O poeta nasceu daí."
Afonso Schmidt e Adélia Leoni Schmidt, em 1922, o ano em que se casaram
Original de foto publicada com o texto, no acervo do Arquivo Histórico Municipal de
Cubatão
Aos 21 anos consegue a proeza de ser reconhecido pela Academia Brasileira de Letras,
ao concorrer ao prêmio de poesia com Janelas abertas, e tem como relator Silvio Romero, autor de História da Literatura Brasileira. Em
seu parecer reconhece a poesia do jovem, onde desponta "boa métrica, felizes imagens, real inspiração".
Acha futuro no autor e destaca os poemas Beijos, Aquário, Coração fadista e No campo, considerados "lindíssimos".
Já Rubens do Amaral, ao travar amizade com Schmidt, considerou-o um mau foca no
jornalismo e a sua prosa era eivada de muitas impropriedades, como "mau noticiarista".
"Quando publicou Janelas abertas, conheci Afonso
Schmidt fazendo jornalismo. Por sinal que me pareciam muito mal redigidas as suas notícias. Ao ponto de eu haver decidido que ali estava o caso dos
poetas excelentes que não sabem escrever prosa, como Alberto de Oliveira, como tantos outros...".
Talvez esta opinião tenha influenciado o poeta a se dedicar ao jornalismo. Produz
durante muitos anos boa poesia, acabando por incursionar na ficção em 1922. O jornalismo foi a grande oficina a moldar um estilo e forma para criar
contos, novelas e romances. Determina com essa experiência um lema onde ele "daria tudo para atingir a última
simplicidade, de modo a exprimir coisas pensadas em palavras vividas; enxugar a prosa até poder falar ao tecelão com a fluência do fio mercerizado
que escorre dos teares, ao ir e vir, azeitado, das lançadeiras".
Familiares de Afonso Schmidt, em 26 de julho de 1931
Original de foto publicada com o texto, no acervo do Arquivo Histórico Municipal de
Cubatão
Anarquista, revolucionário, empreende viagem pela Europa para vislumbrar novos
horizontes. Tem na boêmia a integração de rumos de tantas estradas trilhadas. Escreve Ode aos russos, primeira expressão de exaltação à
revolução socialista escrita por um poeta latino-americano. E laudas e mais laudas de papéis são consumidas, deixando aos poucos a poesia. Cassiano
Nunes tem este conceito:
"Zombaria do destino. O anarquista que não queria se
escravizar nem à fortuna, nem à glória, nem à felicidade, foi se entregar, sem queixas, à tirania de uma banal máquina de escrever. O poeta, que
tudo queria sacrificar pela poesia, teve que deixar de escrever poemas, porque só a prosa, no Brasil, consegue obter algum rendimento".
Passa o seu tempo preocupado com o cotidiano. Escreve sobre fatos e acontecimentos do
momento para usufruir a oportunidade. Diríamos que Schmidt foi o grande repórter de São Paulo e de sua época. Vivia a cada dia com a intenção de
registrar os instantes e as inquietações de seu povo.
Afonso Schmidt incursionou ao teatro com Levianas e fez muito sucesso,
inclusive, o de ser encenado nos palcos de Buenos Aires, com aplausos consagradores. Agripino Grieco, crítico mordaz, ele que se arvorava, dizendo:
"Quem tem razão sou eu, quando me revolto contra as forças pornográficas dos deseducadores das platéias do país",
considerava Schmidt como "admirável poeta e um dos melhores prosadores brasileiros".
Louvava Levianas como peça integrada dentro da técnica teatral da época e acrescentava:
"É um trabalho sutil, de uma arte encantadora com trechos
irônicos e trechos apaixonados. Conciliando verdade e poesia, oferece-nos ali deliciosas condensações de malícia, perversidades de felino
civilizado, a par de notações líricas e de notações psicológicas de alguém que não encontra a menor dificuldade em traduzir a linguagem cifrada dos
alunos. O sr. Schmidt pode ainda dar-nos peças bem superiores a essa, de resto já bastante elogiável em si mesma. É ele um desses talentos robustos
em condições de renovar o teatro e melhorar o público".
Pouco produziu neste setor, ficando como ponto de referência a presença de Schmidt,
autor de algumas peças encenadas, todas com sucesso. Resta a expressão de Agripino Grieco, cáustico como crítico, complacente com as boas produções
na arte literária e, em especial, na fase em que era crítico teatral. Essa preocupação da crítica encontra nos mais variados setores uma palavra em
torno do Schmidt, tal como faz Maria de Lourdes Teixeira:
"Romances, contos, novelas, crônicas ou memórias, em
cenários recentes ou antigos, apresentam a constante de um blackground de mural paulista, sem motivos retóricos ou barrocos, a que se irá
valorizando cada vez mais, à medida que os anos decorreram. Gerações diversas perpassam por essas páginas, sucedendo-se figuras populares e
intelectuais, estudantes e boêmios, artistas e aventureiros, brancos e pretos, gente da terra e de além-mar, operários e vagabundos, poetas líricos
e anarquistas românticos, de misturas com instantâneos da vida paulista de hoje e de sempre".
Carta de Afonso Schmidt à sua mãe, em 4/7/1934, em razão do aniversário dela
Imagem: acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão/Coleção Afonso Schmidt
tombo nº 201 - doação de Maria Clara Schmidt e Odila Schmidt de Mello
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