[...]
A família do escritor, na praia santista do Gonzaga
Foto: do fotógrafo Peressini, acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
O futurismo tão em voga na Europa, a abrir caminho entre os intelectuais, empolgando o
escritor ao considerar essa onda de excentricidades. Dizia que o "futurismo é uma poeira azulada de artistas de nomes
bizarros, que empana, com miríades de livros quisilhantes, o poente ensangüentado de uma era - e o futurismo dos que verdadeiramente são inovadores,
daqueles cujo espírito criador deixaria um sulco profundo em qualquer época e em qualquer escola".
Era o reinado de Marinetti, o apóstolo; Soffici, o evangelista; Polazeschi, o
realizador; e Papini, o iconoclasta, todos a poder de talento, sabedoria e audácia tentavam impor um programa que tinha por lema: renascer.
L'Acerba renovou a arte e Clarté a sociedade, com o objetivo de destruir para reconstruir uma novidade. O debate sobre a estética da arte empolga os
jovens e o artigo Futurismo, de Afonso Schmidt, traz considerações sobre idéias, onde a arte para Zola era uma esmeralda e para Soffini um
raio de sol. Schmidt conceitua:
"Ao contrário da poesia atual, a poesia futurista deve
surpreender pela forma, despertar emoções desconhecidas pelo ritmo e conjunto, mesmo porque, segundo as suas afirmações, o artista vai unicamente
pelo que apresenta de absolutamente original na soma comum dos valores estéticos, ou porque a originalidade não tem limites, como é sem limites a
variedade dos seres e das sensibilidades".
Essa visão do futurismo, artigo publicado em 1921, dá a dimensão da presença do poeta
em seu tempo, visando captar as transformações que vão se sucedendo, ano após ano. É uma lição de estética e suas conseqüências, analisado por um
espírito preocupado com os destinos da humanidade, em sua trajetória evolutiva. Viveu aventuras e provocou façanhas como intelectual, dando o melhor
de seus esforços. Integral na boêmia humanizada, galante, cheia de vida, sol, seiva. Mantinha um ardor pela luta das idéias e achava a existência de
uma obra boa ou má, efêmera ou duradoura.
Luiz Toledo Machado, Afonso Schmidt, Ibiapaba Martins e Elias Raide, seus amigos
escritores
Foto publicada com o texto
Suas crônicas ou depoimentos marcam um tempo, na dimensão interpretativa de uma visão
global:
"Sou filho do litoral. Vi o oceano lutar contra o
rochedo. Toda onda que se atira contra a pedra, volta esfarrapada, desfeita, vencida: no entanto, os penhascos vitoriosos vão de ano para ano
desaparecendo da fímbria do mar. Essa é a luta do pensamento contra o interesse, do novo contra o estabelecido. Há milênios que nós assistimos a um
calculado esmagamento das idéias, pelas armas, pela calúnia, pela corda, pela cadeira elétrica. No entanto, apesar disso, o pensamento humano
continua a desabrochar como uma grande flor. A nossa vida é constituída de derrotas".
Podemos afirmar que o escritor tinha sempre a esperança do amanhã. Acreditava no seu
ideal e propugnava por uma aurora de libertação de seu povo. Tinha em mente que as suas preocupações ideológicas teriam uma vitória. E assim sonhou
e lutou, durante toda a sua vida, marcando presença em movimentos políticos.
A identificação de seu tempo está na participação do cotidiano, onde desponta a
temática episódica em busca de tesouros perdidos, ou melhor, escondidos. Assim o fez com o negro e sua luta pela liberdade, ao remexer nas canastras
da História, e dizia: "Encontrei tanta coisa bonita, que fiquei com pena de estragar o assunto".
Manteve contato com gente lúcida que viveu o período e obteve subsídios importantes
para sentir o que foi a luta abolicionista. Considerava a epopéia abolicionista coisa muito séria. Como escritor, procurou determinar conceitos
sobre sua profissão. Merece registro o seu depoimento sobre o livro A Marcha, publicado como contribuição para as comemorações do
cinqüentenário da abolição, e o registro dessas palavras ganha notoriedade no centenário do evento:
"Qualificativo de escritor popular é aquele que mais me
convém, por ser o mais verdadeiro. Na vida e na literatura, ao longo de uma existência que já se vai fazendo comprida, procurei ser o intérprete dos
que me cercam, os que esperam na mesma fila, os que viajam no mesmo ônibus, os que me acotovelam na rua, no café, no cinema, por toda parte.
"Por uma questão de temperamento, de formação intelectual, nunca mantive estreitas
relações com os colegas, nas redações das revistas, nos clubes disto ou daquilo, nos salões literários que, em certos dias da semana, fazem e
desfazem reputações. Não ponho nessa esquivança minha caridade, antes dela me penitencio. A verdade é que se tivesse freqüentado esses meios
escolhidos, meus romances, meus contos e até mesmo meus poemas de outros tempos não seriam viveiros de vadios, de desajustados, de boêmios e de
homens à procura de qualquer coisa difícil de encontrar.
"Mas eu, graças a esta maneira arrepiada de ser, fiquei com os meus personagens de
carne e osso, que vivem, sofrem e esperam. Dessa humanidade triste que me coube na partilha da terra não tenho motivos para queixar-me. Aqui, por
exemplo, estão os negros. Eu os conheço e estimo desde que nasci: as velhas me contaram histórias lindas, os meninos brincaram comigo à beira do
riacho. Mais tarde, trabalharam na imprensa a meu lado, escreveram formosas páginas que enriqueceram a nossa literatura. Agora, conto-os com
satisfação no número de meus amigos, os melhores.
"Eu tenho com os negros uma dívida imensa, que só poderei pagar com o meu afeto. Esta
edição de A Marcha, primorosamente ilustrada pelo artista Álvaro Moya, lançada pela empresa Editora Brasil-América Limitada, em sua coleção
Maravilhosa, profusamente distribuída pelo país inteiro, em todas as bancas de jornais, é o que de mais carinhoso se tem feito por minha
obra. Colocar esse romance popular, da abolição, ao alcance de todos os que devem conhecê-lo, numa publicação correta e acessível como esta, é o que
eu mais desejo, a melhor homenagem que os amigos me podem prestar. E por essa delicada iniciativa aqui deixo, comovido, o meu muito obrigado.".
Assim, Afonso Schmidt sentiu o grande instante de sua vida e exultou com o sucesso de
sua obra A Marcha, transformada em história em quadrinhos, atingindo tiragem fantástica e conquistando leitores em dimensão nacional. Uma
obra que fica como marco de uma marcha para a liberdade, visualizando a luta desenvolvida para abolir a escravidão. Uma epopéia de personagens que
deixaram o exemplo de tenacidade.
Afonso Schmidt e sua segunda mulher, Maria José da Silva Schmidt
Foto: acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
Para marcar a presença de Afonso Schmidt no seu tempo, devemos evocar a sua
preocupação pela profissionalização do escritor, defendendo a tese de que "o escritor, portanto, já tem a honra de
figurar entre os carpinteiros, os médicos, os engenheiros, os tecelões e todos os profissionais". Isso ele o fez na
década de 30, sem contudo querer industrializar o seu talento. Perguntas eram formuladas: o intelectual deve exercitar como profissão, a sua cultura
e a sua arte? ou a pena deve ser classificada na categoria de ferramenta que arranca o pão de cada dia? Enfatizou a criação de uma associação
profissional ou sindicato de escritores. Foi militante e defensor da profissão de escritor. Eis uma entrevista, cujo texto tem atualidade nos dias
de hoje:
"O conceito romântico que se formou sobre nossas cabeças
tem-nos prejudicado tanto que, ainda hoje, somos próprios a descrer de nós mesmos e dos que se parecem conosco. Nós somos ainda, indiscutivelmente,
os nossos maiores inimigos. E cada um por si, temos de lutar contra esse preconceito, essa idéia errônea que certa gente ainda tem, a começar pelos
nossos próprios companheiros. Entretanto, para combater esses velhos vícios basta citar fatos. Muitos dos maiores homens do Brasil foram ou são
nossos colegas, de Pero Vaz de Caminha a Pedro II, de Ouro Preto a Getúlio Vargas. Numa terra excepcional como a nossa, onde o próprio chefe da
Nação deixa o Catete para tomar parte nas reuniões da Academia Brasileira de Letras, a profissão de escritor não merece o desamparo em que se
encontra.".
O escritor, a esposa d. Maria José (segundas núpcias) e a filha do casal, Rosana
Foto publicada com o texto
Original em sua maneira de ser, Afonso Schmidt pautou pela simplicidade e pelo
humanismo. Começou como poeta numa interpolação de tendências ou escolas literárias, caracterizadas pela transição de uma poesia, cujas raízes
mergulham no passado, mas que, pelo conteúdo, consegue sobreviver em nossos dias. Sua comunicabilidade terá sentido de presença sempre atual,
jogando com imagens psicológicas de evocação, com pesquisa pessoal, mesclando tonalidades de revolta, com sentimento de lutas sociais.
Renata Palottini considera Schmidt como poeta puro, essencialmente poeta, "não
apenas poeta no que escreve, mas também o poeta que vive, no que faz. Quem senão um poeta teria o gosto e a altura de envelhecer pobre e puro, quem
teria o poder de ser amado por todos, nunca tendo renegado suas idéias nem hesitado em suas escolhas? É fácil ser amado quando se concede, quando se
titubeia, quando se é ambíguo. Ser querido por honesto, a despeito de honesto, é coisa de poeta.
"A poesia de Afonso Schmidt é a miniatura delicadamente perfeita de sua obra e de sua
vida. Ali se encontram em poucos poemas sua maneira de ser, as preocupações de seu coração fraterno, as dúvidas do seu espírito afligido".
O itinerário traçado ao título "Afonso Schmidt e seu tempo" tem curiosa
diretriz: a difícil missão de sintetizar em poucas páginas a força e dimensão de um escritor que viveu e vibrou com entusiasmo o seu tempo. Lutando
com palavras, buscando sua contemporaneidade, enxugando frases e parágrafos, sintetizando opiniões, sofrendo com cortes, chego a afirmar que o
escritor vai transbordando todos os limites de espaço para traçar sua época.
Ao conviver com o mestre e amigo, ficaram tantas relembranças, tantos encontros a
marcarem profundamente um período da vida literária. Não poderia deixar de registrar o instante sentido de sua passagem, ouvindo e rememorando
palavras de seu companheiro Cid Franco, na derradeira saudação:
"Afonso Schmidt, meu velho e querido amigo. Amigo desde
1925 ou 26, nem me lembro mais. Você foi o criador da poesia social da fase do proletariado, como Castro Alves foi o criador da fase da escravidão.
Você sofreu injustiças dos poderosos durante toda sua vida. Há mesmo uma literatura em que seu nome não se encontra.
"Agora, desce à terra. Não como um cadáver, mas como uma semente, que há de brotar e
frutificar". E começa a declamar o poema Ao bater das enxadas:
"Revolve a terra, lavrador,
que anda por tudo o sol esparso,
nessa explosão de vida e amor
que aos campos traz o mês de março!
Florido enterro da semente
no seio amigo de uma cova,
para que surja, viridente,
a planta e dê semente nova...
Mas, ai! Quando a Mãe Terra estremecer no parto
e este humo palpitar em fibra, em folha, em flor,
outro aproveitará o que plantaste e, farto,
há de correr contigo, oh pobre lavrador!
Depois, ao longo dos caminhos,
órgão de amor, judeu sem lar,
errante como os passarinhos,
que Junho-Mau faz emigrar,
verás o fruto abrindo na haste,
de um rubro sol ao doce banho...
Fome terás, tu que plantaste
e enriqueceste a algum estranho!
Não vás te revoltar contra essa dor suprema
de ver teus filhos nus e ricos os ladrões:
dirão: 'o mundo é assim, há quem cante e quem gema...'
Para os pobres somente ergueram-se as prisões!
E, se teu corpo não resiste
a tanta mágoa e tanta dor,
num hospital gelado e triste
terás teu fim, oh lavrador.
Nem mãos amigas, nem o pranto...
Sois enterrados todos juntos...
Que existe até no Campo Santo
o bairro pobre dos defuntos!
O sol esplende no alto... A torreira em começo,
zumbidos de verão nas árvores copadas...
Eu caminho no campo e estas estrofes terço,
cadenciando o meu verso ao bater das enxadas!"
E o poeta ficou no tempo, marcando presença efetiva. Sua obra lida e relida. Seus
poemas ganham notoriedade. Sua vida repassada em estudos, crônicas e ensaios. Seu tempo revigorado pelos contemporâneos, numa seqüência evocativa,
útil e necessária. Voltamos a viver e vibrar com Afonso Schmidt, cuja ausência é uma viagem empreendida de bons tempos aqueles, em que dizia: "Foi
uma aventura, uma façanha esportiva em que, de alto a baixo, todos deram, alegremente, o melhor de seu esforço". E
muitas histórias ainda estão para serem contadas. E assim, este texto tumultuosamente improvisado, sempre com a esperança de melhorá-lo, vai ficando
assim como está para ver como fica.
Os poetas dimensionam seu universo e falam com alma. Renata Palottini, usando versos e
palavras de Afonso Schmidt, soube saudá-lo num grande instante de sua vida, o da conquista do troféu "Juca Pato", dizendo:
"Afonso: pensei que te queria um pouco
e nunca imaginei que te quisesse tanto!"
Henrique L. Alves - 25/3/1988.
O irmão Godofredo Augusto Schmidt
Foto: acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
|