A casa onde nasceu Afonso Schmidt, em Cubatão
Foto publicada com o texto. Publicada também, em 1954, na revista Fundamentos nº 34, pág. 9
Afonso Schmidt
Mais uma vez recordamos que a três de abril de 1964 esta cidade perdia o seu amado filho Afonso Schmidt, em cuja obra exaltou a cidade de Cubatão. Especialmente em Zanzalá, que produziu em sua mocidade.
Foi, porém, na obra O Menino Felipe, romance conhecido, quase em toda nossa pátria, em que o personagem é ele mesmo, vivendo desde garotinho nesta sua Cubatão. Aqui nasceu a 29 de junho de 1890; aqui nasceu na pobreza e foi vencendo com seus pais aqueles dias difíceis.
Deste tempo recorda-se Schmidt em 1957: O Menino Felipe é um cubatense do alvorecer do século, que atravessou a nado o rio Cubatão (lá em cima) e brincou com todos os moleques do seu século, dos quais guarda as melhores saudades. Ele estudou na escolinha do bairro, cultivou a sua arte a despeito de todas as dificuldades e, principalmente, sonhou. Foi soldado do "petróleo é nosso" e viajou algumas vezes sem tostão pelo mundo inteiro, levando por toda parte ao pescoço, como bentinho, o nome de Cubatão...
"O Menino Felipe... é o primeiro romance escrito no Município com a sua paisagem e algumas de suas figuras".
Cubatão orgulha-se com muito amor do seu filho Afonso Schmidt que foi jornalista em Santos, em São Paulo, poeta romântico, romancista, cronista de São Paulo, superando neste sentido tudo quanto se havia produzido dos personagens e da vida daquela grande cidade. Não chegara a terminar o curso primário, mas ao escrever, não o fazia como um diletante, mas demonstrava experiência de mestre.
Cubatão sempre terá muito que dizer de seu filho.
Dr. José Osvaldo Passarelli Prefeito Municipal
Grupo Escolar Eduardo Prado, antigo Grupo Escolar do Oriente, situado na Rua Almirante
Barroso, na capital paulista, onde Afonso Schmidt estudou o 4º ano primário
Foto publicada com o texto
Meu Afonso Schmidt
Filho de operário gráfico, Luiz Donato, e também gráfico até os 20 anos de idade, ainda menino tive acesso a muitos livros, dentre os quais dois de contos de Afonso Schmidt: Os Impunes e Brutalidade.
Abalaram-me fortemente. Eram um sadio tranco da realidade em quem, como eu, vinha das leituras amenas da infância e juventude, como os livros de Perrault, dos Irmãos Grimm, de Monteiro Lobato, de Alexandre Dumas. As cores cintilantes do meu mundo tornaram-se opacas, cinzentas. Quem seria aquele escritor amargo, tão duro, cruel?
Em 1936, pela mão de Menotti Del Picchia, que me apresentou a Júlio de Mesquita Filho, entrei como redator de O Estado de São Paulo. Comecei a carreira numa tarde e, em certa sala ao fim do corredor do prédio da Rua Boa Vista, sala essa que dava passagem àquela onde eu trabalharia, meu chefe, Hormisdas Silva, me apresentou a Schmidt, que batucava vagarosa e cuidadosamente numa desmantelada máquina de escrever.
Fiquei gelado. Imaginava-o enorme, magnificente, com auréola e tudo o mais. Schmidt não era nada disso. Era de altura mediana, claro, com pastinha caída de lado na testa e uma cara de garoto de praia. Parecia tão pobre como eu. Pelo menos a sua gravata, torcida, a escorrer de um colarinho mal passado, não mostrava que ele tinha melhores finanças do que o seu apresentado. Só não sei, porque não espiei, se tinha as calças remendadas no traseiro, como acontecia com as minhas.
Ficamos amigos. Custei a chamá-lo de você, uma das primeiras coisas que me pediu que fizesse: nada de senhor. Não queria saber de senhores. Depois vim a saber que era comunista, um dos primeiros que tomaram tal decisão em nosso país. Vim a saber também que o P.C.B. o tinha expulsado sob o pretexto - o que era pura maldade - de que queria carteira do partido para entrar com meia entrada no cinema... De qualquer forma, era absolutamente inimaginável supor o Schmidt abrindo um comício, comandando uma greve, trocando sopapos com quem quer que fosse.
A nossa intimidade diária durante dez anos nunca me mostrou um Schmidt capaz de dizer uma palavra dura ou tomar uma atitude que lembrasse aquelas feras sanguissidentas, como eram denominados os comunas pelo P.R.P. e a sua ativa Polícia. Era uma doçura de pessoa. O que não impedia que, nas freqüentes razias para colher os comunas, Schmidt encabeçasse a lista dos procurados. Mas, ao que eu saiba, nunca o levaram, pois os Mesquitas, avisados a tempo por alguém da delegacia, mandava o Schmidt esconder-se e, ainda, no fim do mês, enviavam-lhe o ordenado à sua esposa.
Como trabalhávamos paredes-meia, vi-o escrever, capítulo por capítulo, vários dos seus livros. Ele gostava de lê-los à medida que os escrevia, desde que o ouvinte mostrasse interesse, coisa não muito comum entre jornalistas, mesmo os do passado. Assim, vi nascerem Zanzalá, A Marcha, O Retrato da Valentina, O Menino Felipe e Paulo Eiró. E ganhei com dedicatória um volume da reimpressão de A Sombra de Júlio Frank, cuja primeira edição, todinha - dizia ele, olhando para os lados -, fora comprada e queimada por um figurão de São Paulo, também ele bucheiro...
Quando ele estava escrevendo O Reino do Céu, sobre São Francisco de Assis e os seus seguidores, não pude deixar de comentar que, para um comuna, ele estava muito católico. Ao que Schmidt respondeu, em voz baixa: "Mas Ele também era!" Perguntei: "Quem lhe disse isso?" E o Schmidt, piscando um olho, maroto: "O Papa. Mas não conte a ninguém".
Raro era o dia em que não me vinha ele com uma pergunta de algibeira: "Qual é a palavra que substitui piquenique?" - Ou: "Sabe qual foi a sétima maravilha do mundo?" - Ou, ainda: "De que lado emagrece a Lua?" Como, em geral, eu não sabia a resposta, saía rindo e só depois me dava a solução. Era meio moleque, o Schmidt. Meu chefe Hormisdas, que o adorava, dizia: "O Schmidt é uma criança grande".
Fugia de discutir política. Com o passar do tempo, durante o Estado Novo, ocupado o jornal e exilados os Mesquitas, recebíamos discretamente a visita de gente disposta a passar informações, conversar e até conspirar. Schmidt, sem dizer coisa alguma, afastava-se. Causava-me estranheza aquela atitude de quem escrevera coisas terríveis como O Dragão e as Virgens e Carne para Canhão. No meu inconsciente de jovem plumitivo talvez eu quisesse que Schmidt encarnasse a figura de um mosqueteiro de Dumas, capaz de invadir sozinho o Palácio do Catete e de lá escorraçar o Getúlio a pontapés... Ou o dr. Ademar dos Campos Elíseos.
Cheguei a perguntar-lhe, atrevidamente, o porquê do seu aparente absenteísmo. Ele sorriu o seu sorriso miúdo, com o toco de cigarro pendente do lábio. E praticamente desconversou, dizendo que era preciso mudar os homens, não quebrar-lhes a cabeça. Velho leitor da Bíblia, achei impróprio retrucar a um homem tão mais idoso do que eu, que ele não estava fazendo mais do que repetir Jesus Cristo quando dizia que o homem deveria nascer de novo. Meu bom Schmidt!
E agora eu pergunto ao leitor, em nome de Afonso Schmidt: - "Sabe você o que é escalabitano?"
Mário Donato - 25/3/1988
Afonso Schmidt em 1908, logo após o seu regresso da Europa
Foto publicada com o texto. Publicada também, em 1954, na revista Fundamentos nº 34,
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