CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA
Narciso de Andrade (4)
Artigo
publicado no site PortoGente em 31 de
dezembro de 2007:
Narciso de Andrade
O Porto de Santos perde seu poeta-repórter
Texto publicado em 31 de Dezembro de 2007 - 18h41
|
por Alessandro Atanes * |
“Veio a noite, e veio a lua,
e uma tristeza infinita... Mas a morte,
a morte não veio.”
Narciso de Andrade
Escrevo este texto no
início da tarde do último domingo, ainda em 2007, logo depois de ter recebido do escritor Flávio Viegas Amoreira a notícia da morte do poeta Narciso
de Andrade, aos 82 anos, no início da noite de sábado (29), na Casa de Saúde de Santos, onde estava internado desde o Natal.
Não conheci Narciso.
Fomos apresentados durante um evento de leitura de poesia no consistório da Unisanta creio que ainda no primeiro semestre de 2007 e ele já estava
bastante frágil. À sua família e amigos ficam meus pensamentos e um abraço.
Se não tive a sorte de
conhecê-lo, tive pelo menos o prazer de escrever algumas vezes sobre sua poesia ao longo do ano graças à publicação de seus poemas pela editora da
Unisanta, que no final de 2006 lançou o volume Poesia sempre, com parte de sua produção lírica escrita ao longo de 50 anos reunida pela
primeira vez em livro.
Dos 101 poemas de Poesia sempre, temos cinco sobre a
morte. Eles não apresentam muita diferença em relação aos demais. Como grande parte da poesia de Narciso, seu tema é dissolvido no cotidiano ou,
como assinalou Lúcia Maria Teixeira Furlani no prefácio, é o próprio cotidiano que é arrancado de sua normalidade e transportado a outra dimensão:
são mortos que resistem, "à caça de ecos e nuvens e cheiros" em Os mortos; é a criança que passa na rua e faz algum barulho no Velório;
é a preparação para a morte em Poema da morte não vinda; os cuidados da família com o corpo do morto em A pele do morto; ou a
vida prosaica em A face do morto.
Mas nesse momento que o
próprio poeta se manifeste sobre a morte:
Os mortos
Os mortos
resistentes
se quedam mudos calados nunca.
Permanecem
resistindo
a todas as fomes e ânsias.
Resistem
freneticamente
até ao que convencionamos chamar vida.
E nada lhe
devora as entranhas
realizadas no cristalizado espírito.
Entranhas
maravilhosas
recostadas no solo da eternidade.
Ah, os mortos
são fabulosos caçadores
à caça de ecos e nuvens e cheiros!
Aos mortos –
implacavelmente mortos embora –
não chamaremos dizimados
que a sua matéria palpita e explode
em cada tempo da vida nossa
que para eles é morte.
Nós não
passamos de formações
operadas sobre carnes falecidas.
Nossa isso que chamamos alma
é a forma dos antepassados
por nós vivida no presente.
Quando
caminhamos
nossos mortos nos acompanham.
A nossa
condição de liberdade
se apóia na incrível
presença dos mortos
em sublime reino sem catálogo vivendo
devo confessar que vos amos
e por entre pedras folhas bactérias
como suave inseto circulo
ouvindo meu sangue palpitar
na vida que hoje tenho
e toda feita de outrora.
Poema da
morte não vinda
Senti que a
noite crescia
diante de meus olhos e por isso
me preparei para morrer. Mas, a morte...
A morte não
veio.
Veio, isso
sim, o suave rumor
de ondas rolando na distância,
de pétalas tombando e de pássaros
em revoada sobre alamedas de melancolia,
agosto em pranto sobre o instante.
E veio um odor
de rosas,
de cravos, flores silvestres,
campinas recobertas de orvalho,
Terra molhada
e a doce
maresia de uma praia solitária...
Cheia de
mistério e presságio,
diante de meus olhos a noite crescia,
Mas a morte...
A morte não veio.
Veio, isso
sim, incontida ânsia,
rebelado desejo, louca vontade
de correr sobre rochedos
pisando algas e espumas
e deixar os membros doloridos
irem cedendo, pouco a pouco,
ao convite azul das águas fundas...
Veio a noite,
e veio a lua,
e uma tristeza infinita... Mas a morte,
a morte não veio.
Epílogo
No lançamento de
Poesia sempre escrevi que os poemas de Narciso são "frutos da experiência do autor como repórter cobrindo as
atividades portuárias, mas também revelam detalhes da cidade e de seu clima. Além dos temas do cotidiano urbano e portuário, Narciso escreve também
muita poesia lírica, com peças com nomes de mulheres e a lua como motivo literário".
Na
introdução, Adelto Gonçalves conta um pouco da experiência de Narciso como repórter do porto na seção Vida marítima, do jornal O Diário:
Amassava lama à porta dos armazéns, subia nos navios, conversava com os comandantes, ouvia os doqueiros, os estivadores, os carregadores que, em
fila indiana, suportavam nos ombros sacos de 60 quilos de café, a subir e descer os vapores. Não havia dia em que não chegasse à redação com uma boa
reportagem. "Como falava inglês e francês, não tinha dificuldade para conversar com o pessoal dos navios estrangeiros", conta. "Naquela época, as
grandes personalidades do mundo sempre passavam por aqui a bordo de navios de passageiros".
Na semana
passada, por coincidência, escrevi sobre a literatura no turismo e ali destaquei a utilização dos versos iniciais de Cais, de Narciso de
Andrade, na entrada da Ponte Edgar Perdigão, na Ponta da Praia:
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar...
Cais
é um poema que também revela o lado repórter de Narciso. Nele, como já também escrevi antes, a perspectiva do narrador é a de quem está dentro do
porto, pisando no chão do cais, olhando as espumas que ficam no lugar dos cascos.
Narciso
manteve uma amizade literária com Roldão Mendes Rosa, eles eram os poetirmãos. Para encerrar o Porto Literário
desta semana triste para a literatura santista, um poema homenagem que Roldão escreveu para Narciso:
Ao poetirmão do vento e das maresias
Para Narciso de Andrade
O poeta, Irmão, se despede do dia.
O corpo não sabe
(desaprende a cada signo que lê
a cor das horas).
O corpo ama, dorme, come, trabalha.
Não sabe
que todo longe só é longe no exílio.
O poeta sabe e sofre antes do corpo.
Ele ouvia (podia ouvir)
o horizonte e seus navios,
o último cargueiro da madrugada marítima
na névoa da barra,
as pombas no ombro do fundador da Cidade,
os imortais pardais
no ombro das árvores que anoitecem na praça.
O corpo, Irmão que sabes,
nada sabe do poeta.
O poeta percorre sua íntima geografia em névoa,
pedra, sal, maresia.
Os pássaros que ouvia talvez tenham morrido,
ou simplesmente dormem (se é que existiram).
Os navios (há navios?) provavelmente deslizam invisíveis
a caminho da barra.
E o porto, velho Irmão,
é um terno rumor
de pedra caída no começo do mundo.
O mundo começa longe.
No segundo mês do ano de 24, o mundo começa
numa rua de lojas sonolentas,
de bondes e navios que atravessam o sono.
(Um dia, o poeta escreveu:
“Nasci num porto do Atlântico.
Dia e noite as águas cantam.
Ouvimos o mar desde o berço
no cais na praia no sono”.)
E não pôde continuar.
E não continuará.
O poeta irmão do vento se despede sem pássaros
do dia que se desprende
(O corpo é burro, nada sabe do poeta.)
O poeta está preso
na rua que o fez e o deu livre à Cidade.
Na mesma rua onde brincou de tempo e vento
o poeta está preso.
(E nada sabia naquele tempo a respeito da palavra exílio,
senão que um sabiá cantava na memória de alguém.)
Referências:
Narciso de
Andrade. Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.
Roldão
Mendes Rosa. Poemas do não e da noite. São Paulo: Editora Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal, 1992.
Narciso de
Andrade em Porto Literário:
Lacunas da história e da poesia santista
são preenchidas por editoras da cidade,
03/abril/2007.
Diálogos
entre Narciso de Andrade e Roldão Mendes Rosa, 10/04/2007.
Narciso e
Pagu: entre o mito e a amizade, 17/04/2007.
Literatura do porto ou da cidade?,
08/05/2007.
Um ciclo sobre o ciclo do romance de identidade
portuária,
17/07/2007.
O porto de nossos dias e o chão do cais,
31/07/2007.
Com tanto poema para partir,
24/12/2007 |
A
coluna de Alessandro, em PortoGente, publicada em
10/4/2007:
Conversa literária
Diálogos entre Narciso de Andrade e Roldão Mendes Rosa
Texto publicado em 10 de Abril de 2007 - 01h01
|
por Alessandro Atanes * |
I - O poetirmão
Na introdução
de Adelto Gonçalves a Poesia sempre, reunião de poemas de Narciso de Andrade, o professor e romancista destaca a amizade literária entre
Narciso e Roldão Mendes Rosa, poetirmãos, como lembra o autor de Barcelona Brasileira.
Os dois se conhecem ainda no ginásio no Colégio Santista. Nos
anos seguintes a amizade se consolida. Nos primeiros anos pós-guerra, Narciso era um jovem repórter em Santos, trabalhava em O Diário,
escrevendo notícias sobre o porto. Na Rua XV de Novembro, aos finais de tarde, unia-se a Roldão no Bazar Paris, livraria e ponto de encontro que
atraía pensadores de todo o país. Adelto Gonçalves conta:
Ali, várias vezes, Narciso e Roldão encontraram e
travaram longas conversas com Washington Luís, o elegante e discreto ex-presidente da República que vivia como uma sombra depois de seu regresso do
exílio. [página 19]
Na virada dos anos 40 para os 50 - ainda estamos na introdução -
Roldão já tinha se projetado como poeta. Nesse período ele passa a freqüentar o grupo de intelectuais reunidos por Cid Silveira, entre eles Miroel
Silveira e Cassiano Nunes, para o qual o poetirmão levaria também Narciso.
O diálogo entre os dois acabou extravasando para a poesia. Em
uma das estrofes de Ao poetirmão do vento e das maresias, de 1981, Roldão descreve o cotidiano portuário do repórter de vista poética:
O poeta sabe e sofre antes do corpo.
Ele ouvia (podia ouvir)
o horizonte e seus navios,
o último cargueiro da madrugada marítima
na névoa da barra,
As pombas no ombro do fundados da Cidade,
os imortais pardais
no ombro das árvores que anoitecem na praça.
Em Café da vida presa, de Narciso (foto), o ambiente é o
do encontro. O interlocutor da voz narrativa não tem nome, não podemos afirmar que seja Roldão, mas é chamado de amigo por ela. O poema vale
a citação completa:
Havia mesas e,
e eram muitas mesas.
Havia pessoas e,
eram muitas pessoas.
Sobre as mesas
café, refrescos, sanduíches.
Cigarros para as conversas,
fósforos para os cigarros.
Havia óculos tímidos
atravessado por múltiplos olhares.
Talvez um pouco de sonho
e até luar houvesse
naquela tarde, naquele café.
Mas o que havia mesmo, amigo,
era vida. Embora encarcerada
mas vida, muita vida
que ainda não fora vivida
e talvez um dia explodisse.
E talvez nunca.
Talvez resposta mais efetiva de Narciso a Roldão tenha sido a
apresentação que escreveu para Poemas do não e da noite, obra póstuma de Roldão, com poemas selecionados pelo poetirmão Narciso, que
termina assim:
Tendo sido escolhido para selecionar seus poemas em
razão de nossa longa e fraterna amizade procurei agir como se fora o próprio poeta, fiel ao seu expresso desejo de jamais publicar algo que nada
viesse a acrescentar (...).
Roldão Mendes Rosa não publicou nenhum livro em vida.
Resta, pois, a pergunta: esta seria a obra que ele publicaria? A resposta, me parece, deverá ser dada pelo leitor no momento da fruição dos poemas.
A conversa entre os dois também ocorre na descrição poética da
cidade portuária. Porto Literário escreveu uma vez sobre como o poema
Porto, de Roldão,
expressava certa "nostalgia da partida", como caracterizei na ocasião, isto é, a expressão poética da "condição de quem vive em uma cidade
portuária, ao sabor dos embarques e desembarques, mas sem partir em navio algum". Idéia concretizada logo na primeira estrofe:
Por que
este amor ao cais
se o que espero
não viaja?
Cais, de
Narciso, também é feito a partir da perspectiva de quem fica. Aí vai ele:
- 1-
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar...
- 2 -
A água comove a pedra
que parece fremir levemente.
Na oscilação breve das marolas
há homens malogrando olhares
vagos, indecisos, alongados.
(Completa ausência de tempo.
O calendário se desfaz
nas sombras, na brisa e na anatomia
recortada do estuário).
- 3 -
Cambia todos os tons
essa angústia a flor da água.
- 4 -
Não há gaivotas nem quaisquer
outros pássaros oceânicos.
Todavia aquela espuma brilhante
sugere o roçar logo de algum.
- 5 -
Silenciosamente pesados
firmam-se nas horas os navios,
fortuitos donos do porto,
transitórios proprietários
de metros de alvenaria
que fazem maior a tristeza
da imensa nostalgia portuária.
Ah! receber todos os adeuses,
todos os abraços, todos os olhares
de ida e volta e permanecer
ancorado na paisagem imutável!
- 6 -
Passarinho no topo do mastro
partirá ou há de voltar para a terra?
Esse espaço já se referiu uma vez à hipotipose, isto é, a
descrição literária de um determinado espaço. A expressão é de Umberto Eco e tem a serventia de despertar as idéias para a individualidade de cada
estilo e da narrativa de cada um dos poetirmãos em relação ao espaço portuário.
Primeiro Porto, de Roldão. Porto é o nome que se dá ao
espaço econômico com infra-estrutura multimodal para o embarque e desembarque de pessoas, idéias e mercadorias, isto é, um lugar em que várias
coisas ocorrem ao mesmo tempo. Quem vê o porto está fora dele. O ponto de observação é da cidade, de uma das janelas do centro ou das calçadas dos
bairros portuários, cuja distância visual pode ser imaginada no verso “vejo lenços que acenam”.
Cais, de
Narciso, opera em outro plano. Desta vez estamos dentro do porto - a perspectiva do repórter que entrevistava estivadores e trabalhadores do cais -
e agora podemos notar um passarinho pousado no mastro e até a ação do mar e da maresia na beira do cais ("A água comove a pedra/ que parece fremir
levemente.", lembrando que fremir, diz o dicionário Michaelis, é vibrar, agitar-se levemente).
No espaço do cais, temos acesso à ação dos homens e à percepção
do tempo (o da sucessão dos momentos e também o do clima) na paisagem humana.
Até a estrofe que caracteriza a nostalgia da partida é realizada
a partir de quem está próximo para identificar os navios, "fortuitos donos do porto", e seus transitórios "metros de alvenaria".
Quem lá trabalha ou muito visita recebe um excesso de abraços,
adeuses, acenos e olhares que a soma das partidas e chegadas "que fazem maior a tristeza/ da imensa nostalgia portuária.".
Talvez esta sobrecarga de adeuses seja a origem da dúvida
("minha saudade não sabe onde embarcar") que sinaliza que deixar a cidade portuária já tinha passado pela cabeça do narrador, mas ele nada faz e
acaba por permanecer "ancorado na paisagem imutável".
Epílogo
Não tenho como conferir se Roldão Mendes Rosa (1924-1988) nenhum
livro havia publicado em vida por excesso de autocrítica, por algum motivo extraliterário ou pela falta na cidade de condições editorias, isto é,
casas editoras e parque gráfico, hipótese que deve ser levada em conta para escrever também a história das edições, das editoras e dos espaços
literários da cidade.
Considerando tudo isso, deve se ressaltar o quanto é importante
esta edição em livro pela primeira vez dos poemas de Narciso de Andrade em Poesia sempre, poeta e intelectual nascido em 1925, farol que, com seus
depoimentos e textos de e sobre a história e a ficção de Santos, há mais de meio século vem jogando luz nas letras desta cidade portuária.
Referências:
Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos:
Editora Unisanta, 2006.
Mais:
Lacunas da história e da poesia santista
são preenchidas por editoras da cidade,
03/abril/2007.
Roldão Mendes Rosa. Poemas do não e da noite.
Com apresentação de Narciso de Andrade. São Paulo-Santos: Editora Hucitec, Prefeitura Municipal de Santos, 1992.
Mais:
Duas sombras sobre o cais e o estilo do
imperador,
25/julho/2006.
Um porto para cada história,
18/julho/2006.
Paisagem, trabalho e máquinas narrativas,
10/janeiro/2006.
Considerações sobre um poema de Roldão,
13/setembro/2005.
Umberto Eco. Les sémaphores sous la pluie. In: Sobre a
literatura. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.
Mais:
A expressão verbal do espaço portuário,
12/setembro/2006. |
A
coluna de Alessandro, publicada em 17/4/2007 em PortoGente:
Outras conversas
Narciso e Pagu: entre o mito e a amizade
Texto atualizado em 17 de Abril de 2007 - 01h27
|
por Alessandro Atanes * |
A partir da edição de Poesia sempre,
primeira coletânea de poemas de Narciso de Andrade, o Porto Literário da semana anterior
mostrou um pouco do diálogo da obra do autor com a do poeta Roldão Mendes Rosa, que chamava Narciso de
poetirmão.
Hoje veremos, a partir do poema Pagu, do
mesmo livro, o diálogo de Narciso com Patrícia Galvão, o nome por trás do famoso pseudônimo. Antes, vamos à sua
transcrição:
Pagu
eu ouvia falar de Pagu
de sua coragem de sua valentia
de sua beleza
contavam histórias de Pagu
cobrindo seu corpo
o companheiro que tombava
enfrentando as patas dos cavalos
e o sabre dos milicianos
na Praça da República
nesta cidade de Santos
contavam que Pagu
fora traída por seus companheiros
e quanto martírio sofreu
na imunda cadeia pública
desta cidade de Santos
Pagu mulher virando mito
falavam das viagens de Pagu
a estranhos orientes
andando de bicicleta com o rei
trazendo as primeiras sementes de soja
Pagu nas ruas de Paris
ao lado de Edith Piaff
que vendia castanhas e cantava
Pagu e Edith
na cidade de Paris
com frio, com fome, com tosse
sei lá! É noite em Paris
e tudo pode acontecer
eu ouvia muito falar da beleza de Pagu
de suas formas ardentemente femininas
de seus olhos capitulinos
de seus lábios violentamente pintados
de sua figura dominadora
nos arredores da Escola Normal Caetano de Campos
na austera cidade de São Paulo
eu ouvi falar tanta coisa de Pagu
que até pensei que ela não existia
era uma invenção de visionário
revolucionários que tomam chá com limão
tanta coisa ouvi
que imaginei uma mulher impossível
jamais nascida increada
a Pagu das lendas e dos martírios
sonhei com Pagu até encontrá-la
reciclada em Patrícia Galvão
fomos amigos
era tudo verdade
Na verdade, o que ocorre no poema não é um
diálogo, pelo menos nos termos em que o assunto foi tratado na semana passada. Lemos em Pagu, de fato, uma espera pelo diálogo, uma
expectativa, até um pouco de ansiedade do narrador. Ele ouve tantas coisas fantásticas sobre Pagu que chega até a desacreditar de sua existência
("até pensei que ela não existia/ era uma visão de visionário").
Assim como o professor Adelto Gonçalves
destacou na introdução de Poesia sempre, vemos também em Pagu o gosto de Narciso de Andrade pelas coisas e formas reais. Ao
transformar a amiga em objeto literário, o poeta celebra a concretude da vida, nesse caso por preferir a pessoa real ao mito, ainda que este tenha
sido a forma com a qual o poeta primeiro travou contato com o tema da poesia, que começa em tom de lenda:
eu ouvia falar de Pagu
de sua coragem de sua valentia
de sua beleza
E a segunda estrofe amplia o efeito ao por o
sujeito da ação no plural e em forma indeterminada: "contavam estórias de Pagu". E ele continua pelas demais estrofes, repetindo o motivo: "contavam
que Pagu", "falavam das viagens de Pagu", "eu ouvia falar da beleza de Pagu", até o "eu ouvi falar tanta coisa de Pagu".
Nessas estrofes Pagu enfrentou milícias,
traições e a cadeia; tomou um navio no porto para o oriente; trouxe sementes de soja para o Brasil; conheceu Edith Piaff em Paris; passou fome, frio
e tossiu; mas era linda, de "formas ardentemente femininas", "olhos capitulinos", "lábios violentamente pintados", um ser que o poeta chega a pensar
que não existia, imaginando-a "impossível". Mas o narrador encontra é Patrícia Galvão e assim termina o poema:
sonhei com Pagu até encontrá-la
reciclada
em Patrícia Galvão
fomos amigos
era tudo verdade
Na introdução aos contos policiais de Safra
macabra (que Patrícia Galvão havia assinado com outro pseudônimo, King Shelter), o crítico Geraldo Galvão Ferraz, filho da escritora, conta que
no final de sua vida Patrícia Galvão costumava dizer que detestava ser chamada de Pagu: "Pagu era o rótulo que parecia designar, segundo ela, uma
pessoa que já não existia".
Talvez seja isso o que Narciso pressentia em
sua expectativa de diálogo: partir do mito Pagu para chegar à verdade Patrícia Galvão. Só que ao contrário do que queria a escritora e intelectual,
por mais que Patrícia Galvão tenha sido mais que Pagu, Pagu nunca deixou de ser parte dela.
Era tudo verdade.
Referências:
Narciso de Andrade. Pagu. In: Poesia
sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.
Geraldo Galvão Ferraz. A pulp fiction de Patrícia Galvão. In: Patrícia Galvão
como King Shelter. Safra Macabra: contos policiais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. |
E a
coluna de Alessandro, também em PortoGente,
publicada em 24/12/2007:
Turismo literário
Com tanto poema para partir
Texto publicado em 24 de Dezembro de 2007 - 18h40
|
por Alessandro Atanes * |
O caderno
de turismo da Folha de S. Paulo nesta semana que acaba trouxe uma
reportagem sobre turismo
literário no Rio de Janeiro, com sugestões aos turistas para que visitassem e conhecessem os lugares freqüentados por Machado de Assis na então
capital do Império e, posteriormente, da República. Considerado por muitos nosso maior escritor, é nas ruas do Rio de Janeiro da virada do século
XIX para o XX que o bruxo do Cosme Velho (bairro carioca) faz seus personagens andarem e viverem suas tramas.
I
E turismo
literário em nossas terras, como seria? Um indício é a Ponte Edgar Perdigão, de cujos atracadouros partem e chegam barcas que transportam
diariamente centenas de pessoas entre a Ponta da Praia, em Santos, e as praias do Góes e de Santa Cruz dos Navegantes, em Guarujá. Desde a
reinauguração da ponte, qualquer um que ali entra pode ler à direita o verso inicial de Cais, poema de
Narciso de Andrade:
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar...
Foto: Skyscrapercity
Que frase
para um lugar onde se tomam barcos, hein? Quem escolheu o verso para o local foi o secretário de Comunicação da Prefeitura de Santos à época da
inauguração do local, José Alberto Pereira, o Sheik, co-autor de Santos: uma história de pioneiros, piratas, revoltas, epidemias, carnaval e
futebol. No lançamento do livro, em março deste ano, ele me contou que na época da inauguração da ponte, no final de 2006, estava procurando por
uma boa frase para o local e a descobriu em uma matéria da repórter Elcira Nuñez y Nuñez, de A Tribuna. Elcira havia me entrevistado sobre a
pesquisa que faço sobre o romance Navios Iluminados e outras literaturas portuárias e, para completar a matéria (Porto
santista é fonte de inspiração), acabou escrevendo também sobre o poema de Narciso, que eu ainda não conhecia e que, por
coincidência, acabou sendo publicado pela primeira vez em livro logo depois, em dezembro de 2006 (Lacunas
da história e da poesia santista são preenchidas por editoras da cidade).
Fiquei
muito satisfeito ao ver que uma entrevista sobre a pesquisa que faço permitiu à repórter acrescentar novos elementos ao material e que todos eles
juntos conseguiram sensibilizar um secretário de governo (ainda bem que Sheik é repórter e escritor, e não um burocrata).
No caso da
ponte Edgar Perdigão, a frase do poeta é apenas ilustrativa, mas o exemplo tem de ser seguido e ampliado.
II
Ainda pelas
proximidades da Ponte Edgar Perdigão temos mais uns versos ilustrativos. São do poema Da Ponta da Praia, em que Alberto Martins poetiza a
visão dos navios entrando ou saindo do estuário santista, visão que atrai tantos visitantes ao calçadão à beira-mar.
Da calçada vejo
a quina de aço
– feito cunha –
na paisagem:
A Pouca Farinha
o forte em ruínas
o Góes... e por aí vai,
devorando a outra margem.
Boa viagem.
Da Ponta
da Praia é um poema do livro Cais. Ali, os versos são
acompanhados por uma série de gravuras feitas pelo próprio autor. A página dupla digitalizada abaixo tem seu espaço dividido entre uma gravura e o
trecho final do poema acima transcrito.
A imagem
abaixo da capa de Transatlânticos de Cruzeiros Marítimos – O Passado no Presente, do colega de PortoGente Laire José Giraud,
mostra a atenção que recebem os navios e suas cunhas que "devoram a outra margem".
Outros
pontos da cidade também podem ser ilustrados poeticamente. Mas a própria literatura também pode despertar interesse turístico, de forma autônoma,
sendo ela mesma o objeto de interesse dos visitantes. Voltamos a isso na próxima semana.
Canja
Enquanto
isso, fiquemos com os dois poemas citados:
Cais,
de Narciso de Andrade:
– 1 –
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar...
– 2 –
A água comove a pedra
que parece fremir levemente.
Na oscilação breve das marolas
há homens malogrando olhares
vagos, indecisos, alongados.
(Completa ausência de tempo.
O calendário se desfaz
nas sombras, na brisa e na anatomia
recortada do estuário).
– 3 –
Cambia todos os tons
esta angústia à flor da água.
– 4 –
Não há gaivotas nem quaisquer
outros pássaros oceânicos.
Todavia aquela espuma brilhante
sugere o roçar logo de algum.
– 5 –
Silenciosamente pesados
firmam-se nas horas os navios,
fortuitos donos do porto,
transitórios proprietários
de metros de alvenaria
que fazem maior a tristeza
da imensa nostalgia portuária.
Ah!, receber todos os adeuses,
todos os abraços, todos os olhares
de ida e volta e permanecer
ancorado na paisagem imutável!
– 6 –
Passarinho no topo do mastro
partirá ou há de voltar para a terra?
E agora
Da Ponta da Praia, de Alberto Martins:
Tão perto de tocar
o instante quase-já
de toda viagem;
no entanto, rente à praia
é tanto rente ao fundo
que só percebo
o espesso casco negro
brilhando à tona
um segundo. E depois?
Viagem houve de fato?
Ou tudo não passa
de um golpe
do acaso?
Mas –
e o casco?
É úmido. Está coberto
de cracas e a ferrugem
que rói as chapas
rói a carga
é visível
da Ponta da Praia
a olho nu.
Da calçada vejo
a quina de aço
– feito cunha –
na paisagem:
a Pouca Farinha
o forte em ruínas
o Góes... e por aí vai,
devorando a outra margem.
Boa viagem.
Referências:
Narciso de
Andrade. Poesia sempre. Santos, Editora da Unisanta, 2006.
Alberto
Martins. Cais; gravuras do autor. São Paulo: Editora 34, 2002.
Laire José
Giraud. Transatlânticos de Cruzeiros Marítimos – O Passado no Presente. Santos: sem editora, 2003. |
|