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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A. SILVEIRA
Agenor Silveira (3)

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Agenor Silveira nasceu numa família de cultores da literatura: era irmão de Valdomiro Silveira e filho do dr. João Batista da Silveira e  Cristina Silveira. Ele foi assíduo colaborador da revista paulistana A Cigarra (exemplares preservados no Arquivo do Estado de São Paulo - acesso em 24 e 25/10/2011 - ortografia atualizada nestas transcrições):
 

A Cigarra - Ano 1/nº 1 - 6 de março de 1914 - página 13:


Imagem: reprodução da página com o texto original

Fragmento de um poema satírico

Razões sobejas o Barbosa tinha

Para fazer do verso tal conceito:

Se o Brasil para trás hoje caminha,

Deve isso ao mal que as musas lhe têm feito.

E há ainda quem te louve, arte mesquinha,

Arte do verso inútil, sem proveito!

Há quem te chame ilustre e soberana,

Sendo o flagelo, tu, da espécie humana!

 

Vede os nefelibatas, gente dura,

Açoite da ledora humanidade:

Enchem de sombras a literatura,

Nosso espírito de horror e escuridade;

Vede dos simbolistas a loucura,

E dos místicos vede a quantidade;

Dos cantores olhai a profusão,

E das letras e da arte a corrupção!

 

Hoje qualquer sandeu mais atrevido,

De honesto ofício material cansado,

Toma das musas a carreira, e é tido

Logo em conta de artista consumado:

Lê Dante; lê Petrarca esclarecido;

Cita trechos de Homero sublimado;

Lê Shakespeare, Voltaire... e de Camões

Não sabe nem As Armas e os Barões.

Agenor Silveira

A Cigarra - Ano 1/nº 2 - 30 de março de 1914 - página 35


Imagem: reprodução da página com o texto original

Soneto

Ei-la: lá está, na forma do costume,
Gorda e feliz, a um canto da janela,
Sua vida naquilo se resume:
Ver, observar; e nada mais faz ela.

Com os olhos a brilhar de intenso lume,
Os cansados transeuntes atropela;
E porque de formosa ainda presume,
Cuida que todos se enamoram dela.

Não há sol, por mais forte, que consiga
Arrancá-la dali. Sempre risonha,
A chuva embalde o rosto lhe fustiga.

Nãohá moléstia alguma que a indisponha;
Nem uma dor, ao menos, de barriga,
Que afaste da janela a sem-vergonha.

Agenor Silveira

A Cigarra - Ano 1/nº 4 - 6 de maio de 1914 -  página 38:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Musa consoladora

O banqueiro, da sorte bafejado,
Pode arruinar-se um dia totalmente,
E, se vivia alegre e descuidado,
Viverá cuidadoso e descontente.

Assim o humilde, o baixo, o desprezado,
Chega a ser grande às vezes e eminente:
Não tem firmeza, enfim, nenhum estado,
Pois todo o tempo não será presente.

Sucede à noite escura o claro dia;
Logo após o temor vem a esperança;
Ora o pesar nos toma, ora a alegria.

… E tua sogra, ainda hás de vê-la mansa,
Razoável, sem vislumbre de energia:
Pois na mulher também tudo é mudança.

Agenor Silveira

A Cigarra - Ano 1/nº 8 - 1 de agosto de 1914 -  página 22:


Imagem: reprodução da página com o texto original

Barões da Índia

E eu ajudarei o pregão universal com este pequeno brado...

Jacintho Freire de Andrade

 

I - Albuquerque terribil

 

Aquele estranho, bélico çaguate

Que ao Persa ofereceste por tributo

O castigo de Ormuz: o estrago bruto

De Gerum, de Mascate e Calayafe;


Goa, que uma e outra vez teu ferro abate;

Málaca, onde penetras resoluto,

Rendendo, com poder tão diminuto,

Inimigos tão destros no combate;

 

A Índia sujeita; livre, o mar que sondas,

Às naus dos teus, mas cheio de fumaça,

E flamas, e trovões d'artilharia;

 

- Ó leão coroado sobre as ondas!

São feitos que enobrecem tua raça,

E enchem de glória a lusa Monarquia.

 

II - Castro forte

 

Desprezador das honras e dinheiro,

Que Fortuna igualmente não reparte,

Provas em Tânger teu valor primeiro,

Mas em Diu hão de as armas ilustrar-te.

 

Várias nações ao cerco o aventureiro

Rumecão traz; e aperta-o de tal arte,

Que o mundo todo vê com verdadeiro

Assombro sustentar-se o baluarte.

 

Eis no horizonte a tua armada aponta,

Que vem, num dia só, vingar a afronta,

E as gentes destruir de Rumecão;

 

Ninguém a fúria do teu braço arrosta:

Não lhe escapa Dabul, que está na costa,

Nem Pondá, que se esconde no sertão.

 

III - Pacheco ousado

 

O ódio de Calicute, feroz e antigo,

Que tolhe o cravo aos lusos, e a pimenta,

No Malabar também o experimenta

O bom rei de Cochim, vassalo e amigo.

 

Tu, Pacheco, lhe acodes no perigo,

Sofrendo todo o peso da tormenta:

A espessa multidão não te amedrenta,

Dos remos e das velas do inimigo.

 

Venenos e traições, ardis e enganos,

Que o mouro tece e o bárbaro gentio,

Tudo ali desfarás, sábio e prudente;

 

E com os teus cento e poucos lusitanos,

Romperás Cambalão, tornando frio

De espanto o ardor imenso do Oriente.

Santos, 5/7/1914 - Agenor Silveira

A Cigarra - Ano 1/nº 15 - 31 de dezembro de 1914 -  página 35:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Teus olhos

Esses olhos, onde a graça
Mora e habita a sedução,
Refletem o que se passa
Dentro de teu coração.

A outro, não a mim, podia
Seu falso brilho enganar:
Eu conheço a aleivosia
              Do teu olhar…

Quando os meus olhos, com mágoa,
Fito nos teus, meu amor,
Enquanto os meus se enchem de água,
Os teus se enchem de fulgor…

Quando as minhas infinitas
Penas te estou a contar,
Com que alegria me fitas
              O teu olhar!

Cintilam tão vivamente
Teus olhos, tal brilho dão,
Que eu vejo que estás contente,
Que é fraca a tua afeição.

Parecem rir, petulantes,
Os olhos com que me vês:
Não olhes assim; quero, antes
Que o faças com timidez!

Não olhes assim: que eu leio.
Na luz que os teus olhos dão,
O deserto escuro e feio
Que trazes no coração.

Santos, dezembro de 1914 – Agenor Silveira

A Cigarra - Ano 1/nº 15 - 31 de dezembro de 1914 -  página 54:


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Heitor de Moraes, para Agenor Silveira:

A morte da águia

(De Heredia) A Agenor Silveira

Escalando o infinito, a águia, gloriosamente,
Conquista mais espaço à larga envergadura.
E, num mais claro azul, mais claro sol procura.
Que o brilho do tristonho olhar lhe aqueça e aumente.

E sobe: e sobe mais: e aspira uma torrente
De centelhas… E altiva, impávida e segura.
Contra a tormenta, voa aonde o fuzil fulgura…
Mas o raio lhe quebra as asas, de repente:

A águia regouga um grito: e arrastada na tromba,
A rolar, a rolar, no vórtice medonho,
Sobre o abismo, engolindo os relâmpagos, tomba.

Feliz que, pela Glória ou pela Liberdade.
Orgulhoso de força e bêbado de sonho,
Morre assim, entra assim pela Imortalidade!

Santos, 1914 – Heitor de Moraes.

A Cigarra - Ano 1/nº 16 - 20 de janeiro de 1915 -  página 27:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Epístola
Ao Brenno.

Prezado irmão e carinhoso amigo.
Com quem nas horas de pesar me expando.
Deixa-me em verso praticar contigo:

Não imaginas a tristeza em que ando
No fundo deste quarto mergulhado,
Só com meus pensamentos praticando!

De pensar tenho o espírito cansado:
E para repousar a fantasia,
Quantos meios, em vão , tenho empregado!

Abandonei de vez a pescaria.
Pois no Rio Verdinho hoje não há
Senão mussuns que o lodo imundo cria;

O Sant'Anna, esse, então, nem cobras dá;
E o monótono estrondo da cachoeira
Mais aumenta a tristeza a quem vai lá.

Desanimado vivo de maneira,
Que de sair às vezes sem vontade,
Em casa fico uma semana inteira.

Se dos campos na quieta soledade
Procuro refugiar-me, o pensamento
Mais se enche ali de horror e de saudade.

Se nos livros procuro o esquecimento
Para o profundo mal que me devora,
Toda a leitura aviva meu tormento.

Meu desespero cresce de hora em hora:
Para o trabalho sempre estou disposto,
Mas nem trabalho me aparece agora!

Passou, cheio de lágrimas, agosto:
Setembro aí vem; aí vem a Primavera
Cheia de risos, de prazer, de gosto.

O sol cintila na azulada esfera;
A água das fontes límpida murmura,
E o bosque e o vale extenso refrigera;

As campinas se cobrem de verdura;
Dos pássaros se escuta a melodia;
De perfumes o ambiente se satura;

Mas tudo isto, que alegre me fazia
Quando eu vivia isento de cuidados,
Agora me enche de melancolia…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Trinta dias, em suma, são passados,
Nesta solidão cruel, sem um pequeno
Gosto em momentos tão envenenados!

Tu, que sabes a origem do veneno,
Minhas queixas acolhe compassivo:
Dá-me notícias dessa por quem peno,
De quem tão longe e tão saudoso vivo.

Agenor Silveira

A Cigarra - Ano 1/nº 18 - 25 de fevereiro de 1915 -  página 30:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Do nosso brilhante colaborador Agenor Silveira recebemos a seguinte epístola, apresentando um soneto, em estilo quinhentista, de José Lannes, que hoje inicia a sua colaboração efetiva n'a A Cigarra  (N. E.: o citado Gelasio Pimenta era o editor da revista).

Gelasio, os versos que hoje te apresento,
           Bem vês que meus não são,
Pois revelam muitíssimo talento
           Na arte e na inspiração

Dá-lhes um canto da Cigarra amiga,
           E acolhe com prazer
Quem a nossa linguagem bela e antiga
           Procura enaltecer.

O honrado e velho idioma sem desdouro
           Podemos cultivar:
O ouro velho e de casa – esse é o bom ouro
           Que havemos de estimar.

Outros de inculto o notem, só lhe vejam
           Manchas de limpidez:
Porque farelos há que até se pejam
           De estudar português.

Mas o jovem cantor o exemplo lança
           Do início que convém:
Acolhe, pois, Gelasio, essa esperança
           Que assim cantando vem.

Os pardais novos de amarelo bico
           Zombem de sua voz:
Mas brilhe, mas floresça o idioma rico
           De nossos pais e avós.

Agenor Silveira

Ao dr. Agenor Silveira

Despois que ela se foi para outra herdade
Todala minha cândida alegria
Se fez d'huma tristura que soía
Bem mais do que tristura, ser soidade.

Entonces, pela minha soledade,
Por meu bem busquei ver se algo esquecia
Do antigo céu de amor que me sorria
E asinha se cobriu de escuridade.

O tempo, alfim, que tudo foi mudando
Despois que pera alhures a mudou,
Foi também os meus males abrandando.

E assim as minhas lagrimas levou!
Pois eu vi que no val' andar chorando
Um bem que pera sempre se acabou…

José Lannes.

A Cigarra - Ano 2/nº 20 - 21 de abril de 1915 -  página 35:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

O licor de craguatá
(Ao Ferraz Napoles)

I
Tomei hoje meio cálice
Da pinga de craguatá,
E confesso-lhe, seu Napoles,
      Que melhor coisa não há
Desde o Amazonas ao Prata
Do Rio Grande ao Pará…

II
Tem muitas virtudes, - muitas!
O licor de craguatá:
Com água é um prazer no estômago,
Sem ela o mesmo será;
Não fará mal com açúcar:
Sem ele só bem fará;
No verão refresca a máquina,
Se o calor mui forte está;
No inverno afugenta o frio,
Que nunca mais voltará…
Tem mesmo virtudes máximas
O licor de craguatá!

III
Dos nossos homens políticos
A orientação é bem má!
Dão recepções, dão banquetes:
Para eles crise não há:
É só champanhe que estoura,
E o povo com fome está!
Não vem de Inglaterra o arame
(N. E.: gíria antiga para "dinheiro"),
Que dele precisam lá;
Pois nestes dias difíceis
Para a terra do Tupá,
Em vez de vinhos caríssimos,
Muito melhor não será
Que nos banquetes se adote
A pinga de craguatá?

IV
"Nossa terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá"
(Que hoje os caçadores ítalos
Tanto perseguem por cá!);
Tem o caju de careta
A guabiroba, o araçá;
A jabuticaba doce,
Que veio de Sabará;
A quina, que corta a febre;
A caroba e o manacá;
Tem a flor do "para tudo",
E a flor do maracujá
Tem o ingá de metro e pico
E outro mais modesto ingá;
O olho-de-cabra e a coronha,
Que de Corunha virá;
O cipó, que mata a sede,
E que cozido é um bom chá;
Em cujo cerne, poroso,
De Mala a cruz se verá;
Sem ter o queimor do cravo,
No sabor o imitará;
Tem o coco da Bahia;
Tem o rasteiro indaiá;
Tem o pau-d'alho e o pau-ferro,
E o pau-de-vinho terá;
Tem o fumo do Quilombo;
Como tem o do Araxá;
Tem a congonha do campo
E o mate do Paraná;
Tem a bromélia utilíssima,
Que se chama – craguatá!

V
Dizem os despachos últimos
Do Matin e do Gaulois
Que os alemães das trincheiras
Resolveram sair já;
A ofensiva é fulminante:
Paris capitulará?
Para conter o inimigo,
Um só remédio haverá:
Fornecer aos aliados
A pinga de craguatá:
- Ele a cor ao gesto muda,
E furor bélico dá…

VI
O licor do seu fabrico,
Provado e aprovado está:
Eu confesso-lhe, seu Napoles,
Que melhor cousa nãohá,
Desde o Amazonas ao Prata,
Do Rio Grande ao Pará…

Abril de 1915 – Agenor Silveira

A Cigarra - Ano 2/nº 27 - 30 de setembro de 1915 -  página 29:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

A um moço orgulhoso

Podes (eu sou mesmo ruim)

Sem compaixão e sem dó,

Vociferar contra mim:

Podes reduzir-me a pó,

Ao triste pó donde vim.

 

Precisas dar expansão

A esse orgulho singular,

A essa inchada presunção?

Faze por aí constar

Que és um talento, e que eu não.

 

Dize que sou incapaz

De pensar e de sentir:

Que só pratico ações más:

Que hei de, afinal, sucumbir,

Mas tu, forte, vencerás.

 

Vencerás, na vida, sim:

Terás da Fortuna a mão:

Passarás à História, enfim:

E eu tornarei - tens razão!

Ao triste pó donde vim.

Santos, 1915 – Agenor Silveira

A Cigarra - Ano 2/nº 32 - 8 de dezembro de 1915 -  páginas 22 e 23:


Imagem: reprodução da página 22 com o texto original

Egloga única
Interlocutores:
Urbino, cidadão
Silvano, lavrador

Ao pé de um ingazeiro alto e formoso,
Que de amarelos frutos se adornava,
E cuja sombra, no verão calmoso,
A uma família inteira abrigo dava.
Urbino, da cidade mui queixoso,
Com o lavrador Silvano conversava,
Perto, na estrada, murmurar se ouvia
A fonte, que da mata procedia.

Marcava o sol das horas a terceira,
Depois que os raios vibra superiores,
Na mór quentura e a meio da carreira,
Para abrasar da terra os moradores.
Derramava-se o gado na capoeira,
Onde jacatirões abriam flores
Alvas e roxas,lindas e abundantes,
E Urbino,olhando os montes circunstantes:

URBINO
Como te invejo a sorte, bom Silvano,
Vendo-te aqui dos homens apartado:
(Que é sempre aborrecido o trato humano!)

Aqui, dos lavradores estimado,
Gozas a nobre e santa companhia
Da consorte e dos filhos, que, a teu lado,

Vivem fortes e sãos, numa alegria
Difícil de encontrar lá no tumulto
Da praça, que entontece e que enfastia.

Entre estas verdes árvores oculto,
Teu lar feliz não sofre a ira do vento,
Do inverno o agravo, do calor o insulto.

Sem exigir trabalho mais violento,
A generosa terra aqui fornece
O necessário para teu sustento.

O feijão com cem sóis amadurece;
A mandioca é raiz tão abençoada,
Que em qualquer lua que a enterrares, cresce.

As hortaliças dão-se na baixada;
Tens leitões; tens galinhas com fartura,
E sobremesa no pomar variada.

Se a grande guerra mais um ano dura,
A crise, que a nós outros apavora,
Não te visitará nesta espessura.

Triste, porém, quem na cidade mora,
A que derrota insigne está sujeito,
Se quer lutar nos tempos maus de agora!

A desconfiança lavra de tal jeito
Nos homens de negócio, que hoje em dia
Só ao dinheiro é que eles têm respeito.

Ninguém dá, sem que tome, em garantia,
Propriedades e títulos bastantes
A cobrir cinco vezes a quantia!

Para os que firmam letras – não te espantes
Se eu te disser que trinta e seis por cento
Hoje é taxa das menos aviltantes.

Um prestamista, sórdido avarento,
Reformando uma delas, teve cara
De pedir-me ainda mais, no vencimento.

Paguei, Silvano, e o dobro lhe pagara,
Temendo ver meu nome envilecido
Pelo protesto com que me acenara.

Muito e muito explorado tenho sido,
Aos que me devem não lhes cobro juros;
O principal restituirão? Duvido.

Os horizontes do Brasil, escuros,
Não dão sinal de próspera mudança.
Que a situação geral tire de apuros.

A inépcia da passada governança
E a cobiça e alguns, tudo arrasaram,
Com a sua insensatez e intemperança.

Em vindo a guerra, as coisas pioraram:
Logo os imóveis de desvalorizam;
As casas quebram; as indústrias param.

Da fome, ao Norte, os quadros horrorizam:
Morrem uns: outros vão, sem assistência,
Maldizendo o chão áspero que pisam.

Teve com o Sul o céu maior clemência:
Mas nos centros da vida continua
Ainda bem caro o preço da existência!

Invejo, como disse, a estrela tua,
Que te afastou a tempo da cidade,
Onde não há banqueiro que possua
Tanta saúde, e paz, e liberdade!

SILVANO
Mas não tem sido, Urbino, só de flores
Meu viver nesta amiga soledade.

Trabalhos e acidentes, dissabores
E revezes, também aparelhados
Estão no campo aos pobres lavradores.

Não são eles isentos de cuidados:
Nem sempre o dia azul lhes amanhece;
Nem sempre à noite dormem sossegados.

Aqui pus, como vês, grande interesse:
Aqui desenvolvi seguros planos,
Que ambição justa e moderada tece.

Foram-se os cabedais por muitos canos:
Com meu suor molhei baixada e mato,
Colhendo, mais que frutos, desenganos.

Não era o solo totalmente ingrato:
Com tibieza, entretanto, respondia
Ao dispendioso amanho e assíduo trato.

Influição do céu talvez seria;
Ou pouca experiência e fraco estudo
Que eu, então, destas coisas possuía.

Se de heroica paciência não me ajudo,
Meu caro Urbino, aqui te certifico
Que abandonara chão, feitio, e tudo.

Eu, que viera de esperanças rico,
Tive-as, como o feijão, muito bichadas:
(Não sei se claramente assim me explico).

Tanto mal não fizeram as geadas
Ali na várzea, às tenras bananeiras,
Quanto a mim, o vagar dos camaradas.

Com a terra, enfim, vencidas as primeiras
Grandes fadigas, inventou a sorte,
De afligir-me e provar-me, outras maneiras.

Tudo remédio tem, menos a morte;
A tudo resisti: chorar que adianta?
Desesperar que val'? Seja o homem forte.

Do que havia de ser, em cópia tanta
Avisos vi, tão claros e evidentes,
Que qualquer deles referido espanta:

Um dos galos mais belos e valentes,
Que, entre os nossos, então se distinguia,
Raro exemplar de manhãs excelentes.

- O infeliz carijó! Vimo-lo, um dia,
No garbo e nas feições tão demudado,
Que um bicho, em vez de uma ave, parecia.

Pus-me a considerar maravilhado
Aquela inverossímil estranheza:
Já viste, Urbino, um galo desbicado?

Era horrendo, medonho: e com tristeza,
Para a ração, sem a tomar, olhava,
Decaído da antiga fortaleza.

A água da mesma forma recusava:
E, inteiros tendo os esporões e a crista,
Nem vestígios de luta apresentava!

Logo depois o caso nos contrista
De um beija-flor, que, sussurrando, esvoaça,
E na alcova cai morto, à nossa vista:

Partira-se-lhe o peito na vidraça,
Por onde a alminha cândida atravessa,
Mas o seu verde invólucro não passa.

Eis na manhã seguinte, a toda a pressa,
O nosso cão fiel a estrada ganha,
E foge, sem haver quem isso impeça.

Com esta fuga inopinada e estranha,

A série de desastres principia.
Que por um ano ou mais nos acompanha.

A vaca Estrela deita fora a cria:
Morrem muitos leitões, mata, uma porca,
E a três devora que gerado havia.

Leva o bicho oito pintos com a minorca:
Um bezerrinho, que era o nosso encanto,
Vai romper o cercado, e lá se enforca.

Os eucaliptos, que no morro planto,
Comidos das saúvas pereceram:
Delas rebenta um olho em cada canto.

Nunca os raios de sol tanto beberam
Nos ribeirões que em torno o sítio lavam;
Nem a terra com fúria igual morderam:

Os animais o pasto refusavam,
Porque a erva seca e pobre os não convida;
Emagrecendo, as forças lhe faltavam.

A peste os atacou, logo em seguida:
O que eu mais estimava, o de mais preços,
Foi o primeiro a abandonar a vida.

Ainda deste pesar não convalesço
Perco o piquira, que no andar e estampa
Outro nenhum que o iguale aqui conheço.

Graças a Deus, pude salvar o pampa
E a Criolina, que, ao depois, ingrata,
Vira comigo o trole numa rampa:

O trole quebra e enfim quase se mata,
Meu filho, que contava um lustro apenas.
A queda mais o assusta que maltrata.

Contrariedades grandes e pequenas,
Como acabas de ouvir, tenho-as curtido
Bem longe da cidade, que condenas.

Vês? E aqui estou: provado, não vencido:
Amarga a medicina de constância,
Mas de muito proveito me tem sido.

URBINO
Sempre eu quis ver triagas à distância
Porém tão boa a tua considero,
Que tomo-a desde já sem repugnância.

Com paciência também sofrer espero
As coisas contra as quais meus nervos gritam:
Retemperá-los ao teu modo quero.

SILVANO
Hão de cessar as coisas que te irritam
A crise, que me atinge e que te agasta;
Os roubos que os agiotas exercitam.

Governado por gente de outra casta,
Será grande o Brasil: a atual não presta,
E a que passou foi ao país nefasta.

URBINO
Digam-te amém os anjos! E, com esta,
Vou-me: que uma hora só, segundo entendo,
Para tomar o último trem, me resta.

SILVANO
Sim: volta o gado, e as sombras vão descendo.

URBINO
Paz e saúde aos teus! Dá-me um abraço:

E vive!

SILVANO
A Deus, Urbino, te encomendo.
 

*
Extinta, do poente no regaço,
Há muito a maior lâmpada jazia.
O zelador das mais, no etéreo espaço,
As primeiras estrelas acendia.

Santos, dezembro de 1915 - Agenor Silveira


Imagem: reprodução da página 23 com o texto original

A Cigarra - Ano 2/nº 33 - 30 de dezembro de 1915 -  página 59:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Três anos! - Soneto inédito

Três vezes deu, querida, o sol dourado
Ao mundo universal a volta inteira:
De fresca relva, pela vez terceira
E de boninas se reveste o prado.

Três vezes, de teus olhos apartado,
Eu tive a solidão por companheira:
Já vi florir três vezes a roseira,
Junto da qual todo o meu mal foi nado.

Três anos são volvidos, finalmente,
Depois que nos teus olhos soberanos
O veneno bebi de amor ardente:

Desse veneno ainda hoje sinto os danos:
Mas como o teu amor é diferente
Daquilo que juravas há três anos!

Agenor Silveira

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