Por falta de aviso não foi. Toda a gente da Ilha Grande aprofiava em dizer ao Zé Tucura que não arrodeasse a casa
da Oncinha: a Oncinha é uma cabrocha bonita, não há dúvida, mas o bonito às vezes serve só de longe. Ele bem sabia que sô Moraes, moço de opinião,
gastava co'a cabrocha e não havia de querer sociadade assim sem mais nem menos. E o Zé Tucura encabeçou naquilo: porque sim, porque era seu desejo,
porque havia de fazer e acontecer, nem que o céu viesse abaixo, quanto mais sendo a questão c'um filho de Deus, como ele mesmo! Em certas coisas o
falado é bom, mas o feito inda é melhor!
Sô Moraes até que não era tocado a valentão: vivia de seus ganchos, p'r um lado e p'r ouro, comprando café no sítio
de nho Tino p'ra vender na casa do Gervasio, barganhando um tordilho por um baio, recebendo dinheiro aqui p'ra mandar p'ra São Paulo, enfim fazendo
seus arranjos, caladinho e sem mexer c'a vida dos mais.
Por andar pelos vinte e cinco anos e ser sacudido que nem um marruás, precisava ter uma companheira que fosse
também mocetona e sadia, e tirou a Delminda dos pais, segundo se diz, de concórdia c'o eles: como a Delminda nesse tempo tinha um senhor gênio muito
zangado, ele batizou-a por Oncinha, e Oncinha ficou sendo o nome dela. Ora vai-se ver sô Moraes, um sujeito bem pacato, às voltas c'um demônio que
não tem miolo na torre.
O Zé Tucura, outrora, teve seus caprichos pela Delminda, lá isso teve, que não há quem não saiba. Ela mesma, p'ra
dizer agora a verdade inteira e sem mistura, não deixou de não gostar um pouco dele. Negócio passageiro, nuvem que logo passou, porque o Zé Tucura
deu mostra de ser um grandessíssimo preguiçoso, num ajutório que houve no rocio do pai dela, um grandessíssimo preguiçoso que, além de tudo, não
tinha pulso, pegava o guatambu e logo o largava, esbaforido e desfeito em suor. Pois qual é a moça de juízo que há de morrer de amores por um marica
amolentado assim? Não tinha arrumação nem uma co'ele, fosse bater à outra porta: isto não foi dito bocalmente, mas foi dado a entender e foi
entendido.
Agora, passados dois anos, o mato seco reverdeceu e, por sim ou por não, achava o Zé Tucura que havia de entrar na
casa alheia pelo coração da moça. Pensou lá consigo que aquilo era só chegar e bater, porque já estivera lá dentro uns tempos: mas não se lembrou
que coração de mulher é feito uma estalage', que acolhe muita gente, co'a diferença, porém, que aquele viandante que uma vez saiu não pode mais ter
pousada, volte quando voltar. Assim se deu, tal e qual: a Oncinha ensinou-lhe o andar da rua. P'r amor de ela proceder desse jeito, ele queixou-se
todo amagoado:
- Ah! Delminda, você bem se vê que merece o apelido que tem, depois que tá nessa vida de fadista!
- Decerto, pregou-lhe ela: o nome deve de ser como traste: não parecendo c'o dono, é furtado. E olhe que eu sou de
poucas prosas.
- 'tá bom, 'tá bom: não lhe amassarei mais as gramas da sua porta.
- Pois é 'bséquio que me faz.
Ele ficou fera. Já se viu como uma piguancha à toa queria fazer pouco num rapaz peitudo e couro-n'água como ele? Já
se viu o desaforo? E levou uma temporada a xingá-la, afirmando que ela era uma infeliz sem entranhas, que arrecebia uma antiga amizade do mesmo modo
que se arrecebesse uma visita do demônio. Tudo isso em pura perda,porque a Oncinha estava longe, não lhe querendo dar mais palha, e a sala de chão,
escura que nem tinta. Por fim lá se foi ele, resmungando de raiva: e não reconhecia dentro de si, nem por nada, que se sentia possuído mais de
tristeza que de raiva. Quase todos são assim!
Então que teima era essa de Zé Tucura, de continuar na ronda, todo santo dia, da casa da moça? Pois não tinha sido
tocado? E ainda que não tivesse sido tocado, pois não reparava que a outra vivia em boa paz c'o dono e a gente não pode sem mais aquelas bulir c'o
guardado alheio? O sonso queria mas era lenha, com toda a certeza, ainda mais depois que tantas pessoas de peso lhe deram o voto de não passar a
miúdo por cessa cercania. Queria lenha ou coisa mais pior – andavam rosnando uns tais que falam sempre acima do superlativo e não admitem que se
possa por de banda um conselho que eles dão.
Um dia que se encontraram vizinhando com a capela, sô Moraes pediu-lhe:
- Seu Zé Tucura, o senhor todas as manhãs e todas as tardes passa e repassa pela minha porta, não sei p'ra que: lá
p'r aqueles lados não hai morador nem um, que não seja eu mais a companheira, que não temos arranjo algum c'o senhor. Por isso eu lhe peço de favor
não faça tantas vezes a medição da minha rua.
- Ora dá-se! Enriminou-se o Zé Tucura: eu hei de ir lá quantas vezes quiser: a rua é pública, ninguém não mana nela
e, que me conste, mecê não tem escritura desse quarteirão.
- Não tenho escritura do quarteirão, seu Zé Tucura, mas tenho um rabo-de-tatu no cabide da sala, uma troxada atrás
da janela e uma faca sempre fiel na cintura.
- Pois, sô Moraes, então os direitos que mecê tem andam agualando c'os meus, que são esses, pintadinhos.
- O senhor esteja aprevenido. Eu já cumpri minha obrigação: quem me avisa, meu amigo é.
E foi só isso. Sô Moraes é de poucas prosas, que nem a Oncinha: até murmuram que ela tem o costume proveniente duns
desaquisados caseiros co'ele, no fim dos quais ela vê que o home faz muito e fala pouco.
Neste mundo o bom exemplo vale tudo!
Vieram dias, vieram meses, um em riba do outro. Sô Moraes, descansado no assunto, notava que a observação dera bom
resultado, pois o Zé Tucura tinha criado parte de bicho arisco. A rua dormia seu sono de sossego, e o bairro acompanhava a rua, des'que o Zé Tucura
acabara co'as indróminas e roncos de valentia e promessas de escangalhar céus e terra. Não, que isto de valentias afinal não adianta nada: parceiro
que incha o papo e arregala os olhos e faz grande esparrame, nunca presta: os bons são os tais que entendem que silêncio é ouro e apenas tossem meio
baixo, puxando um certo pigarro da goela quando chega a ocasião do perigo.
A história não transpirou.
P'ra quê? Sô Moraes não percisava matraquear o acontecido, porque, sendo um manata de fiança, não dá trela das
proezas que faz. Agora o povo é que viu dente de coelho na enleada: pois se de primeiro o Zé Tucura volta e meia transitava por aquele retiro, o que
significava ter abandonado seus passeios tão prediletos que já nem notícia mandava de si? A roda parou decerto p'r amor de algum estrovo…
Cada qual indagava: ora porque seria, porque não seria? E houve um filho de Deus que achou explicação p'r'o causo:
sem dúvida aparecera qualquer pisquim na janela do Zé Tucura -, que esta gente da Ilha Grande é mesmo danada p'r' um pisquim, e trova sempre!
Tiradas as contas, o rapaz com certeza leu as letras e não se sentiu com disposição de afrontar uns tantos empecilhos. A coisa amargou, e ele
intentou que era mais acertado não teimar co'a caixa de marimbondo. Dada esta explicação, todos a acharam conforme e, vistos os nulos, concordaram
em que o diabo do namorador de água turva não passava também de um contador de maxambetas.
Enquanto o Zé Tucura pensou que em roda de seus passos tinha caído uma noite de silêncio e ninguém via suas
intenções, tudo lhe correu a gosto e prazimento. Mas no dia em que lhe contaram que o disque de toda a Ilha Grande era desta maneira, Jesus! – o
caboclo quase perdeu o juízo, se é que ainda lhe restava algum pouco de juízo p'ra perder. Descabelou-se e fúria, pulou feito um tigre acuado,
amarelou que nem mamão maduro, tremeu os beiços, pintou o sete. A páginas tantas caçou uma garrucha e cantou, alto e bom som, que ali dentro ia ûa
mãe e dez filhos, e que onde fosse a mãe haviam de ir os filhos por força.
Podia ser três horas da tarde. Bateu o chapéu na testa, pôs a arma bem à vista, e fechou na direção da casa de sô
Moraes. Um casal de sivis-sivis que voava sobre o patrimônio começou a piar uns pios tão finos e tão agudos que davam ares de ser uma caçoada no Zé
Tucura. Ele nem pôs reparo nos sivis nem em nada, porque estava baio de raiva: o sangue, correndo-lhe nas veias grandes do pescoço, com muita
violência, tapava-lhe os ouvidos; e atrapalhando os olhos, que num repente ficaram vermelhos, na certeza não lhe permitia ver coisa alguma.
Quando ele se aproximou da casa, sô Moraes tinha cabado de quebrantar um burro pelo-de-rato, e ainda trazia na mão
direita o relho, que era terminado por uma argola de metal morruda assim. Sô Moraes desamarrava o lenço da cabeça, em pé na soleira da porta, e
sofismou que uma visita a semelhantes horas, depois de tamanha ausência, era novidade e novidade grossa: encostou-se, pois, ao portal e esperou-o.
Não percisou muita demora p'r'adivinhar que o home vinha c'uma veneta onça: bastava olhar aqueles passos de anta
mordida de cachorrada, p'ra se descobrir que dali sairia forte rebordosa. Sô Moraes nem piscou e pela certa nem sentiu bater a pacuera: pôs a mão do
relho atrás das costas, a outra na algibeira esquerda da calça, e 'panhou um feitio como de distraído.
O Zé Tucura já chegou bufando:
- Saia p'ra fora, caboclo sem raça, você que diz que é todo avalentado, que quero dar-lhe uma lição! P'ra você
ficar sabendo que c'um sujeito de sangue nos olhos não se brinca! Saia p'ra fora!
Sô Moraes ficou parado, como quem não entendia aquelas prosas. E o Zé Tucura mais se arreliou, por ver o grande
sossego:
- Eu logo vi que você havia de enjeitar a briga: fácil é o dizer, mas difícil é o fazer. Você antão cuida que me há
de subi na alma, e que eu hei de murchar sem dizer esta boca é minha: Cuida que me há de correr as esporas desde as paletas até às virilhas, pelo
corpo inteiro, tomar conta de mim duma vez, e que eu hei de consentir: 'stá enganado, 'stá muito enganado!
Sô Moraes pregou-lhe uns olhares cheios de fogo, mas no mesmo instante abrandou, e nada disse.
E o Zé Tucura clamou, cada vez mais estomagado:
- Essa tiriva que 'stá aí dentro que veja que mora c'um desgraçado que engole as maiores ofensas, mudo como um
peixe! Ela que veja de que relé é o miserave dono da casa. Sujeito que ronca que nem bugio, mas foge que nem lebre, quando vê as grandes ocasiões!
Nos olhos de sô Moraes relampeou uma faísca terrível: mas continuou quieto, a olhar aquele maluco que se esgoelava.
E o Zé Tucura trepou ao mais alto da ira:
- Enjeita a briga, antão, filho duma pulga?
Sô Moraes perdeu a paciência: avançou, num salto p'r'a beira do Zé Tucura, e antes que ele tivesse lado de puxar a
garrucha, riscou-lhe a argola do relho bem na coroa da cabeça: o Zé Tucura 'frouxou, falseou o corpo e caiu p'ra traz; no mesmo instante sô Moraes
tomou-lhe a arma e cantou o relho em cima daquele corpo estendido. Foi um chuveiro de guascadas, cada qual mais de sustância e deixando cada lanho e
cada vergão que era uma tristeza!
P'ra baixo, mesmo perto, havia uma furna – e o som das guascadas ia formando uma ecoaria que se alastrava pelo
fundão fora. Uns beneditos que estavam pinicando a peroba macota do fim da rua, procuraram a linha do mato, amedrontados e falando muito.
Nesse artigo a Oncinha, que estivera na porta e ficara quieta de todo até então, gritou p'ra sô Moraes:
- Olhe que chega! O home já 'stá castigado! Com mais um pouco ele é capaz de cochilar no capim!
Sô Moraes afastou-se, reparou na cara de Zé Tucura, que estava cheinha de melado da cabeça, e teve meia dó. Reparou
mais atento, e viu que as meninas dos olhos do Zè Tucura tinham a proporção de duas piúnas, de tão arregalados que ficaram; viu que nas barbas do Zé
Tucura havia uma camaçada de poeira muito grande; ouviu uma sororoca um tanto engasgada que saia por aquela garganta assim como que à força,
apertando-se e espremendo-se, e chamou a Oncinha:
- Venha depressa, venha depressa, que o rapaz tá p'ruma dependura! Nossa Senhora me valha!
A Oncinha correu ligeiro que nem uma visão, c'uma toalha de algodãozinho e uma bacia pequena, p'ra fazer uma lavage
nas feridas e botar-lhes um tiquinho de bálsamo e de rubim; garraram a cuidar do ofendido com tal carinho, que se pensava estarem ali dois irmãos,
tratando de um irmão; por fim, depois de postos os primeiros remédios e panos, sô Moraes pegou no referido pela cintura, amparando o corpo c'ûa mão
no alto das costas, e levou-o p'ra casa; deitaram-n'o em uma esteira de piri, onde logo depois ele deu de melhorar, respirando mais livre e
entrefechando os olhos; e o barulho na casa era uma coisa que até quase que nem se percebia, tanto dos passos como das vozes em porte de segredo.
Morrer, graças a Deus, o Zé Tucura não morria, estava-se vendo: mas tinha de se aguentar no balanço com tamanha
brecha uma porção de dias. Os donos da casa, então, era lavage e mais lavage: ora com bálsamo, ora com rubim, ora co arnica, iam curando o outro
c'um amor de admirar: depois dos curativos davam-lhe um de comer muito bem feito e gostoso: canjas de perdiz ou de nambú dos grandes, engrossadas de
farinha de milho com caldo de carne fresca, mingaus de mainzena e araruta, gemadas de café – e até mandaram buscar a uma botica de Santa Cruz uma
comida nome que tem um nome esquisito, a mó' que sagu.
A sangueira perdida foi de mais, o Zé Tucura não podia sarar assim com dois arrancos: paciência e bom rejume
fizeram que ao cabo de duas semanas pudesse já andar seu pouco, meio encostado às paredes, até à porta da rua ou da cozinha, onde parava algumas
horas, pensa-pensando na vida; viu-se desfigurado e mole que nem esses bonequinhos de engonço que vem lá de fora, c'os olhos fundos e uma tremedeira
nas curvas.
Antes de inteirar um mês, deu-se por livre do perigo e com alma p'ra tratar da vida; assim mesmo ainda sô Moraes
aconselhou que era melhor que ele descansasse mais um bocado, não quisesse enricar da noite p'r'o dia, trabalhasse devagar, porque também devagar se
vai ao longe -, e rematava oferecendo-lhe o minguado dinheiro que havia em casa, mas que seria dado de muito bom coração. O Zé Tucura não aceitou
tantos oferecimentos, e saiu desenleado dos gestos e esperto como dantes: e no dia que saiu (decerto p'ra festejar sua alegria) foi a uma função
entusiasmada no sítio dum tal Nicolau.
A notícia que tinha corrido era que o Zé Tucura, quando repassava um macho todo cheio de histórias, caíra p'r amor
de um boleio (ora quem é que não cai, quando um burro boleia?) e por mal de pecados tomara no chatão da cabeça uns três coices; e como o caso tinha
acontecido na presença de sô Moraes, sô Moraes recolheu-o e enfermou-o daquele feitio. Bem se vê que as coisas foram perparadas como se perpara uma
cama p'r'um sono de regalo: sô Moraes não queria saber de prosa c'a justiça, e o Zé Tucura não havia de gostar de soubessem do quanto tinha
apanhado…
Foi botar o pé na porta da casa do tal Nicolau, e ouviu um verso que o folgazão lhe atirou:
Este verso é p'ra você,
meu querido Zé Tucura,
que escapou, sem mais aquela,
de tamanha arranhadura.
A moda que estavam cantando era ûa moda velha: a da Mariquinha que fugiu c'um português do Sapé, que tem uma toada
bonita, de fazer tristeza no coração mais arrivinido. Quando os parceiros do fandango pediram p'r'o cantador: - Mais um verso! -, o cantador saiu-se
logo com este:
Zé Tucura se aprecata,
pensando no sô Moraes,
e diz, triste e banzativo,
que na praça não vai mais.
Pouca gente podia entender aquela empulhação, porque só mesmo o folgazão, fulano Bento, foi quem viu a historiada,
sem contar nada a ninguém; agora, como sempre se teve por um cabra seco nos arreios, bulia c'o Zé Tucura, p'ra fazer graça. O Zé Tucura, se quisesse
ser ajuizado, havia de ficar quietao, como quem não dá pela coisa. Mas não: irou-se, que não teve mais altura, pôs nomes feios no dito Bento, fez um
banzé danado. E fulano Bento, no fim da moda, quando acabou de morrer o som da viola e o sapateado, ficou de ombro a ombro co'ele, e afiançou-lhe,
alto e forte, que não aceitava uma briga barata assim.
Entrou povo no meio, apartou a dúvida e a festa continuou. Mas o Zé Tucura repetia a cada instante:
- Co'este nho Bento eu nada tenho: aquele prosa de sô Moraes é que há de me pagar!
Pinga veiu, pinga saiu, pinga voltou. A rapaziada estumava o Zé Tucura, efeito de estarem todos bebidos; o Zé
Tucura ia-se esquentando de mais a mais: e ali por volta das quatro da madrugada, ao clarear, um terno deles amontou a cavalo, convidando o Zé
Tucura:
- Bamo'ver, Zé Tucura, bamo'ver se você é home!
O Zé Tucura amontou também, dizendo:
- O ver é nada!
E o bando de malucos rompeu pela estrada-mestra afora, gritando, cantando, fazendo mesmo a bulha de quem está na
água. Chegaram à capela quando o sol apontava.
Ora, nem que as coisas estivessem perparadas de má tenção: essa hora já sô Moraes estava de pé, junto d'uma
guarapereva p'r'uma banda da casa, passando o pente na crina do seu macho de estima e assobiando, sozinho e distraído. Quando sentiu aquele terno de
gente que vinha quase galopeando, largou de puxar os carrapichos do burro, e olhou: inhorou muito de ver o Zé Tucura tão cedo, naquele lugar donde
saíra na véspera, mas fez como quem não tinha visto nada.
Os tais chegaram também perto do çoita-cavalo e esbarraram os animais, salvando: ele respondeu e ficou depois
quieto duma vez, sem atentar em ninguém. Foi aí que o mais avariado do terno lhe falou:
- Sô Moraes, o Zè Tucura 'tá aqui p'ra liquidar uma conta velha com vassuncê.
- Pois eu 'tou aí, vancês 'tão vendo, às ordes de quem quiser.
Sô Moraes, neste artigo, retirou-se um pedacinho, e trouxe um embrulho debaixo do braço, mas sem explicar coisa nem
uma. O Zé Tucura – verdade, verdade! – não estava lá tão disposto como tinha dito, porque decerto se lembrou de tantos dias que tinha passado
co'aquele sô Moraes, sabe Deus de que maneira! Mas era perciso ficar co'a cara limpa, lá isso era: chegou-se, pois, um pouco mais p'ra perto da
árvore, sacou uma bica de dois canos, de fogo central, e resmungou levantando-a:
- Agora é que é o nosso ajuste, bamó ver quem deve mais!
Não teve tempo de botar a garrucha no peito de sô Moraes,porque ele pulou violento que nem uma paca do mato p'r'o
carreador, e segurou-o pelo mais folgado do colete, c'um talento de força e destreza que o Zé Tucura conhecia muito bem: desamarrou mais que
depressa o embrulho, abriu uma saia de mulher e desceu-a dos ombros do outro, sem trabalho nem um, até a cintura, onde puxou direito o cadarço do
cós, fazendo um arrocho forte; levou depois o Zé Tucura p'r'o largo, falando baixo e manso como quem está sonhando sonho bom:
- Você agora vai desse jeito mas é p'r'o cafezinho.
- P'r'a cadeia é que eu não vou, seu coisa-ruim!
Mas foi, e foi dali mesmo. Sô Moraes encostou-o ao cafezinho por uma embira dobrada, sem que ele pudesse dizer nada
que lhe valesse, porque o povo acordado era ainda pouco pelo arraial. Os companheiros, em vez de terem dó do coitado, pegaram a rir de longe: e uns
par de beneditos, acauso com certeza! – passaram pelo ar, num voo de muitas curvas e falando volta e meia.
Quando o inspetor do quarteirão, que era o Salvadorzinho, apareceu no largo e foi soltar o Zé Tucura, diz que o Zé
Tucura estava chorando feito uma criança: explicou ele que era de fúria, mas afinal ninguém não acreditou. Saiu dali tal e qual o boi quando sai do
picador, enveredou pela estrada de Pánema, e diz que se apinchou no rio, de desesperado da vida: mas ninguém não acreditou, porque veiu logo notícia
que ele andava lá por Nioac, junto c'os Dinizes, fazendo uma boa vida, por sinal.
Pois assim mesmo ainda mandou fazer uma carta p'r'a Oncinha, daquele distância!
A carta era, a bem dizer, uma choraria sem proporção. A Oncinha recebeu-a por volta das dez horas, quando batia
umas roupas, na fonte, e quem teve ordem de a ler foi o próprio sô Moraes. A moça estava cantando, na toada da cirandinha, um verso velho de catira:
Como veve quem não veve
junto com quem quer viver!
Acabou de ouvir ler a carta, fez uma ombreira, levantou uma peça de roupa p'r'o ar, e acabou de cantar o verso:
'tá que nem peixe em terra
Saluçando p'ra morrer!
Valdomiro Silveira
(Os caboclos)