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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Ingratidão

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na edição de 27 de janeiro de 1902 do jornal O Estado de São Paulo, na primeira página (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 27/1/1902 (Acervo Estadão)

 

Ingratidão

Encontraram-se debaixo do cipotá, rente ao corgo. Ela estava meia enleiada, a Theorfa, e ele, o pobre do João do Cruçá, triste deveras. Um tucanicho gritou no ramo mais alto do cipotá chamando o companheiro: mas assim que olhou p'ra baixo, arregalou bem os olhos, e viu aqueles dois (viu quatro, porque havia também duas sombras,na água), não quis saber de histórias, e abriu-se. O que foi motivo de a Theorfa arripiar-se um tiquinho, de puro susto.

Ela ia praticando por esta toada:

- …Pois é ansim, nho João. Papai não quer nem ver falar no nosso casamento, fica inté brabo, quando presente qualquer plano meu ou da mãe. Ora, eu, que não quero saber de mecê, tá empaleado comigo, perdendo o seu tempo, resolvi dar a minha resposta p'r'o primo Antonio, e caso c'o ele no fim da coresma. Sinto muito, mecê conhece que eu lhe tenho amor, mas o mundo é mesmo ansim: a gente põe e Deus dispõe…

- Mas, Theorfa, interrompia o João tremendo os beiços: mecê antão não tem corage de largar o seu povo por meu respeito? O ponto é mecê querer, que eu venho no meu tobiano buscar a moça do meu coração. Diga só: - Venha! -, p'ra ver se eu não venho.

- Não pode ser, nho João: as coisas não se fazem por essa maneira. Onde é que já se viu, agora, ûa moça de juízo fugir de sua casa? Não pode ser.

- Antão, Theorfa, mecê o que quis foi caçoar e mangar comigo, trazer-me como um seu cachorrinho, cumprindo todas as suas vontades, nada mais; quando chegou a hora de fazer o primeiro, o único sacrifício, mecê de tudo se esquece, p'r'amor de o mundo do seu pai?

- Ah! Nho João, mecê bem tem ouvido dizer que o que não tem remédio, remediado está. Cada qual de nós há de tratar de por o coração ao largo: eu, sofro muito, mas…

- Muito, de mais da conta, coitada da Thorfa… eu 'bem 'tou vendo!

O João encostou-se ao tronco da árvore raivento e banzativo, reparando na cara da Theorfa, que por sinal estava corada, que era uma boniteza. Parou naquele reparo um tempão esquecido. Depois, como a tirana quisesse ir-se embora, ele pediu-lhe que esperasse um pouco mais, só um pouco, pela derradeira vez que se viam, decerto.

E como a Theorfa olhasse de frecha p'ra ele, admirada, o João falou-lhe:

- Mecê cada vez mais linda, Theorfa! Foi por causa dessa lindeza que o Antonio ficou de asinha quebrada, pois não foi?

- Decerto. Se ele fala a verdade, foi.

- E mecê não tem amor por ele, Theorfa?

- Amor, não tenho, que a gente não pode ter dois amores no mundo; quando eu me esquecer de mecê, se eu me esquecer, pode que tenha.

- Mas se mecê enfeiasse, na certeza ele não havia de ter tamanhos entusiasmos, não é mesmo, Theorfa?

- Já se vê, nho João, que diacho! Mecê 'tá-me fazendo cada pregunta! Pois um rapaz de qualidade, como o Antonio, refuga pela certa as moças que não sejam fermosas.

O João do Cruçá afastou-se, escondendo-se por traz do tronco do cipotá. Mas voltou logo, c'uma durindana de ponta na mão, e foi-se chegando da Theorfa, que queria fugir e gritar, e não tinha força nem voz; foi-se chegando, foi-se chegando, e lanhou-lhe a maçã do rosto, macia e corada, donde rompeu um sangue vermelho que caía no corgo, de pinto em pingo, fazendo um barulhinho fino. Os lambaris pulavam de alegria, ao saborearem aquele sangue tão vermelho e tão doce, e faziam um guaiú forte na flor da água.

- Agora, Theorfa, o Antonio não há de querer antão casar mais com mecê!

E enquanto ela chorava e amaldiçoava o antigo namorado, ele varou feito um veado virá pelo mato, apagou-se, espantando nas sarapilheiras os nambus amoitados.

Valdomiro Silveira

(Os caboclos)

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 27/1/1902 (Acervo Estadão)

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