Muito azafamada, a falar alto, entre risonha e aborrecida, a Maria Claudina começara, afinal, a vestir-se. A mãe
estava na torra da farinha, que escasseou de repente, na véspera do dia santificado, o pai saíra a cavalo pelo bairro e só a negra velha, a Romana,
andava mexendo pela casa.
Os sapatos de couro de bezerro, que tinham metido ao fundo de uma caixa, ressecaram demais, e agora brilhavam ao
sol, besuntados de enxundia de galinha; o lenço azul claro, de ramagens vistosas, caía do cabide, passado de fresco; as duas saias brancas,
amarradas pelo cós, enfunavam-se, duras de goma ao lado do lenço: e o vestido de riscadinho vermelho, novo em folha, já se estendera em cima da
cama, descansadamente e sem rugas, como quem não quer saber de nada.
Mas a moça macucou de repente, sentou-se, falou firme e áspero:
- Ah! Romana dos meus pecados! Você bem sabe que eu não gosto de camisa suri, e é logo essa que eu tenho de ponhar
no meu corpo?
A negra custou a mover-se da cozinha, onde arrematava o tempero de uma trapucaia com abobrinhas da última semana:
- Pois o remédio é fácil, nhá Clódina: é só levantar a tampa da caixa, que tem camisa com fartura, suri ou de
manga, lisa ou de cabeção rendado, ó seu gosto!
Como a Maria Claudina resmungasse ainda, ela mesma abriu a caixa (o quarto rescendeu logo a raiz de junco), e
apresentou à moça uma peça de roupa, muito alva, dobrada em forma de carta:
- Veja se serve essa: foi a que a sua madrinha deu.
No rosto de Maria Claudina espalhou-se logo uma doce satisfação:
- Esta sim, que me enche as medidas!
O sino da capela vibrou: era o primeiro toque da missa da Páscoa:
- E! Romana: 'tou vendo que a missa me escapa! O pobre do Grande é que havera de ficar bem xavi, se não me visse
agora! Logo mesmo agora…
O Antonio Grande, que bebia os ares por ela, desde o milho verde do ano atrasado, esperava só acabar o empreito de
formação duma invernada de morro a morro, para pedi-la em casamento. O empreito havia de ser entregue por aqueles dias, e no dia da festa ele queria
sair com ela da igreja (na maneira de dizer!), rasgar a guaiuvira para o Lucas das Posses, e tratar dos papéis o mais depressa possível.
Ela riu-se com todos os dente:
- Ele falou, Romana! Falou que nas vesprinhas da Páscoa fechava o serviço do retiro e me pedia: mas porém quer por
força que eu 'teja na missa de hoje: diz que é p'ra trazer felicidade. E eu quero tanto bem ele!
Endireitou as saias, puxando por aqui e por ali, fazendo-as ranger sob os dedos:
- E 'ocê, Romana? 'Ocê não acha o Grande muito bom de coiração e de cabeça?
A negra velha sacudiu as papadas, numa alegria quase convulsiva:
- Lá isso é! Também o demo de certo não é ruim!
Porque foi a Romana caçoar com ela, em tal momento? A Maria Claudina avermelhou-se toda, bateu os saltos no chão:
- Não faça galhofa de gente daquela qualidade, criatura, que inté provoca o castigo do céu! Eu arrenego duma coisa
ansim: o sangue me trepa de repente p'r'os olhos, e a mó que me cega de vereda!
A Romana, calma e serena, tratou de acomodá-la:
- Ora deixemo' agora de libuzia! P'ra que tanta réiva agora?
E pôs-lhe medo, por ver que ela já não cuidava de aprontar-se:
- Pegue a pinicar na sombra, p'ra ver como a missa vai-se embora, e 'ocê não ascança mais!
Foi água na fervura: a Maria Claudina passou em três tempos a saia de riscado até a cintura, vestiu às carreiras a
blusa, que apareceu muito alegre no corpo, com os botõezinhos brancos. Remirou-se a um caco de espelho: e como a Romana lhe perguntasse que tal, se
estava bonita ou não estava, respondeu frouxamente:
- 'tou ansim, ansim… Não o sei o quê é que 'tá-me faltando, mas porém 'tá-me faltando argúa coisa!
O sino gritou finamente, dando o segundo toque:
- Acuda, Romana, que o segundo sinal já foi! Veja o que é que percisa ainda, que eu não posso-me alembrar!
Compôs o lenço no pescoço e nos ombros:
- A mó que 'tou tão sem graça, tão sem sal!
Em frente ao resto de espelho, virou-se de todos os lados:
- Inté 'tou-me achando meia jaruru!
De repente, porém, cuidou lembrar-se do que lhe faltava:
- Me 'ranja agora um colar de maravilha de tudas as cor' que é um enfeite que o Grande apreceia muito! É isso
mesmo! Mas porém de carreira, já e já, Romana!
Vieram as maravilhas, brancas, azuis, vermelhas e cor de rosa: pôs umas noutras e todas no coque de cabelos, presas
por grampos:
- Ficou o colar bem ermoso e bem pregado? Ficou?
A Romana chegou a admirar-se:
- Nem fale, nhá Clódina! 'ocê 'tá um brinco, de linda! E vá-se embora, passe por diante, que eu vou-me arrastando
mais devagarzinho, como Deus me ajudar.
À porta, a Maria Claudina ainda segredou à negra velha:
- Ansim vai tudo muito bem, pois não é? Eu vou numa puba danada, de vestido novo e flor no cabelo! Despois da missa
'tou sendo pedida e o Grande 'tá sendo aceito: o mais não me esmorece, que ele me quer de devéra e é um home de conta e peso!
Passou-lhe um chabó, chilreando, junto ao ouvido, subiu pela claridade fora, até um monte de nuvens, e a moça
esteve sempre olhando-o, cheia de alegria e de esperança. E ia caminha para a capela, peneirando-se de entusiasmo singelo no seu vestido de listras,
quando a Romana, que estivera de conversa um instante com outra mulher, chegou a passo e passo, depois de acenar-lhe, e encaminhou-se para dentro de
casa:
- Não bamo'mais, nhá Clódina: diz que um dourado picou o Antonho Grande, esta minhanzinha, e que ele já 'tá sem
vista e sem fala: nós semo' do mundo, e o mundo é de Deus…
Valdomiro Silveira