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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Missa da Páscoa

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição de 5 de setembro de 1905 do jornal O Estado de São Paulo (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição, algumas palavras ilegíveis no original):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 5/9/1905 (Acervo Estadão)

 

Missa da Páscoa

Muito azafamada, a falar alto, entre risonha e aborrecida, a Maria Claudina começara, afinal, a vestir-se. A mãe estava na torra da farinha, que escasseou de repente, na véspera do dia santificado, o pai saíra a cavalo pelo bairro e só a negra velha, a Romana, andava mexendo pela casa.

Os sapatos de couro de bezerro, que tinham metido ao fundo de uma caixa, ressecaram demais, e agora brilhavam ao sol, besuntados de enxundia de galinha; o lenço azul claro, de ramagens vistosas, caía do cabide, passado de fresco; as duas saias brancas, amarradas pelo cós, enfunavam-se, duras de goma ao lado do lenço: e o vestido de riscadinho vermelho, novo em folha, já se estendera em cima da cama, descansadamente e sem rugas, como quem não quer saber de nada.

Mas a moça macucou de repente, sentou-se, falou firme e áspero:

- Ah! Romana dos meus pecados! Você bem sabe que eu não gosto de camisa suri, e é logo essa que eu tenho de ponhar no meu corpo?

A negra custou a mover-se da cozinha, onde arrematava o tempero de uma trapucaia com abobrinhas da última semana:

- Pois o remédio é fácil, nhá Clódina: é só levantar a tampa da caixa, que tem camisa com fartura, suri ou de manga, lisa ou de cabeção rendado, ó seu gosto!

Como a Maria Claudina resmungasse ainda, ela mesma abriu a caixa (o quarto rescendeu logo a raiz de junco), e apresentou à moça uma peça de roupa, muito alva, dobrada em forma de carta:

- Veja se serve essa: foi a que a sua madrinha deu.

No rosto de Maria Claudina espalhou-se logo uma doce satisfação:

- Esta sim, que me enche as medidas!

O sino da capela vibrou: era o primeiro toque da missa da Páscoa:

- E! Romana: 'tou vendo que a missa me escapa! O pobre do Grande é que havera de ficar bem xavi, se não me visse agora! Logo mesmo agora…

O Antonio Grande, que bebia os ares por ela, desde o milho verde do ano atrasado, esperava só acabar o empreito de formação duma invernada de morro a morro, para pedi-la em casamento. O empreito havia de ser entregue por aqueles dias, e no dia da festa ele queria sair com ela da igreja (na maneira de dizer!), rasgar a guaiuvira para o Lucas das Posses, e tratar dos papéis o mais depressa possível.

Ela riu-se com todos os dente:

- Ele falou, Romana! Falou que nas vesprinhas da Páscoa fechava o serviço do retiro e me pedia: mas porém quer por força que eu 'teja na missa de hoje: diz que é p'ra trazer felicidade. E eu quero tanto bem ele!

Endireitou as saias, puxando por aqui e por ali, fazendo-as ranger sob os dedos:

- E 'ocê, Romana? 'Ocê não acha o Grande muito bom de coiração e de cabeça?

A negra velha sacudiu as papadas, numa alegria quase convulsiva:

- Lá isso é! Também o demo de certo não é ruim!

Porque foi a Romana caçoar com ela, em tal momento? A Maria Claudina avermelhou-se toda, bateu os saltos no chão:

- Não faça galhofa de gente daquela qualidade, criatura, que inté provoca o castigo do céu! Eu arrenego duma coisa ansim: o sangue me trepa de repente p'r'os olhos, e a mó que me cega de vereda!

A Romana, calma e serena, tratou de acomodá-la:

- Ora deixemo' agora de libuzia! P'ra que tanta réiva agora?

E pôs-lhe medo, por ver que ela já não cuidava de aprontar-se:

- Pegue a pinicar na sombra, p'ra ver como a missa vai-se embora, e 'ocê não ascança mais!

Foi água na fervura: a Maria Claudina passou em três tempos a saia de riscado até a cintura, vestiu às carreiras a blusa, que apareceu muito alegre no corpo, com os botõezinhos brancos. Remirou-se a um caco de espelho: e como a Romana lhe perguntasse que tal, se estava bonita ou não estava, respondeu frouxamente:

- 'tou ansim, ansim… Não o sei o quê é que 'tá-me faltando, mas porém 'tá-me faltando argúa coisa!

O sino gritou finamente, dando o segundo toque:

- Acuda, Romana, que o segundo sinal já foi! Veja o que é que percisa ainda, que eu não posso-me alembrar!

Compôs o lenço no pescoço e nos ombros:

- A mó que 'tou tão sem graça, tão sem sal!

Em frente ao resto de espelho, virou-se de todos os lados:

- Inté 'tou-me achando meia jaruru!

De repente, porém, cuidou lembrar-se do que lhe faltava:

- Me 'ranja agora um colar de maravilha de tudas as cor' que é um enfeite que o Grande apreceia muito! É isso mesmo! Mas porém de carreira, já e já, Romana!

Vieram as maravilhas, brancas, azuis, vermelhas e cor de rosa: pôs umas noutras e todas no coque de cabelos, presas por grampos:

- Ficou o colar bem ermoso e bem pregado? Ficou?

A Romana chegou a admirar-se:

- Nem fale, nhá Clódina! 'ocê 'tá um brinco, de linda! E vá-se embora, passe por diante, que eu vou-me arrastando mais devagarzinho, como Deus me ajudar.

À porta, a Maria Claudina ainda segredou à negra velha:

- Ansim vai tudo muito bem, pois não é? Eu vou numa puba danada, de vestido novo e flor no cabelo! Despois da missa 'tou sendo pedida e o Grande 'tá sendo aceito: o mais não me esmorece, que ele me quer de devéra e é um home de conta e peso!

Passou-lhe um chabó, chilreando, junto ao ouvido, subiu pela claridade fora, até um monte de nuvens, e a moça esteve sempre olhando-o, cheia de alegria e de esperança. E ia caminha para a capela, peneirando-se de entusiasmo singelo no seu vestido de listras, quando a Romana, que estivera de conversa um instante com outra mulher, chegou a passo e passo, depois de acenar-lhe, e encaminhou-se para dentro de casa:

- Não bamo'mais, nhá Clódina: diz que um dourado picou o Antonho Grande, esta minhanzinha, e que ele já 'tá sem vista e sem fala: nós semo' do mundo, e o mundo é de Deus…

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 5/9/1905 (Acervo Estadão)

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