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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Amor

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição de 3 de junho de 1905 do jornal O Estado de São Paulo (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição, algumas palavras ilegíveis no original):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 3/6/1905 (Acervo Estadão)

 

Amor

Bateu o tordilho nos Três Ranchos à hora triste do por do sol. Apeou-se, tirou as chilenas dos calcanhares, lançou-as, de cambulhada com o cabo-de-relho, para junto do oitão do rancho, puxou pelas calças, para baixo, levantou o chapéu desabado ao alto da cabeça, e parou um instante a olhar o cavalo.

- Aí, ruço queimado de truz! Com dez léguas no lombo, e daquelas cangotudas, inda você 'tá fresquinho que nem uma alfácia! Também agora você vai ver o quanto não vale um patrão agardecido: há de ter uma janta de oito espigas de cateto velho e uma rica ceia de catingueiro roxo em demasiado. Espere só!

Sacou-lhe o cochonilho e a sobrecincha, de uma feita; depois, de outra, o basto e os enchimentos; agitou-lhe sobre as costas, demoradamente, o baixeiro de aniagem, levando-o até a cola e subindo-o até a cernelha: e tanto que o atirou para um canto do rancho, ao pé dos mais arreios, passou a raspadeira por todo o pelo do animal, catando à mão os carrapichos e os picões da crina, e os centenares de amores-secos que se tinham entranhado na cauda. O animal, cuidado assim, rinchou num grande regozijo, fitou as orelhas ao chegar da ração, rabejou com ânsia, amassou o massapê sob as patas alvoroçadas, e pôs-se a mastigar sossegadamente, num compassado ranger de queixos a que a travagem não fez dano.

Acabada a ração, o cavalo voltou-se para o Sigismundo, com os olhos pardos escancarados e quase feitos de ouro pelos reflexos do sol, e matraqueou as orelhas, bem comido, muito satisfeito: o Segismundo chegou-se para mais perto, livrou-o do cabresto, abriu a porteira cansada, que chorou fanhosamente até dar na estaca de a uma banda, e soltou-o para o potreiro, cantando-lhe uma palmada nos quartos:

- Não é 'toa que você 'tá ficando com anca de viúva rica! Pois um trato ansim alisa inté matungo pesteado!

O tordilho negro, passada a porteira, atirou-se ao chão com delícias, espojando-se devagar e mandando ao céu a rápida ameaça de quatro ferraduras em linha; a poeira, batida e rebatida, tremeu no ar, fantasticamente afogueada: e foi caindo aos poucos, mansa como o sereno, pelas folhinhas estreitas da grama de Pernambuco.

Quando o cavalo, afinal, se alongou no rancho, o Sigismundo quis também tratar da vida: abeirou-se da mariquinha, onde fervia tranquila a água do marumbé e, vendo-a quase quieta assim, com leves arrepanhos apenas para os cantos do caldeirão, viu bem que o jantar estava mais que vizinho: só então reparou nas cercanias e se teve por inteiramente sozinho, não havendo sinal por onde soubesse da estada do rancheiro.

Tomou uma gamela pequenina, pegou a escolher o arroz que achou à mão.

- Si a gente não cuida de si, quem mais? E o diabo deste arroz de cana roxa, quando não é bem pilado, é um mundo de marinheiro, que dá medo!

Pesquisou de novo os arredores: nada. E como do sol já pouco aparecesse, e entrasse a correr pelos baixadões, ecoada saudosamente, a voz aguda das nhansanãs, voltou à tarefa:

- Arre, que o dia foi-se embora! Este seo Quim Pé-grande, por mal de pecados, não amostra a ponta do nariz! O remédio que eu tenho é perparar a minha manjuva, por mim mesmo: um feijão comprido, eu faço, porque é que não? Um arroz pixé também alfanjo; com qualquer raminho de agrião que eu vigie na fonte, e algum torresmo bem torrado, 'tou no téque do geriza!

De feito, dirigiu-se à fonte. Vendo-o ir, as borboletas de vária cor que lá estavam, apresentando e escondendo sucessivamente as bonitezas das asas, tomaram voo, assustadas, e ou de aborrecidas ou de medrosas pelo cair da noite, já não voltaram mais. O tijuco  da beira da água pareceu mais preto e mais traiçoeiro, por isso: e as folhas largas dos inhames principiaram a balancear…

Levando a mão à primeira ramada de agriões, o Sigismundo viu-se na água, por inteiro e muito escuro, porque a nova andava longe, no azul do céu. E porque a nova se espelhasse na água, alva e linda, que nem um lençol de linho sem barras, e ainda mais claro, pegou a contemplá-la, admirado e comovido. E os seus pensamentos foram descendo como a fonte, murmurando e sonhando à brandura do luar:

- Si esta hora não é de malinconia, eu não sei de outra que seje!

Indagou das vizinhanças se não haveria ninguém: ninguém. Para ao longe, na estrada que cortava o samambaial pelo meio, um gemido soturno de lobo desparceirado; na capoeira, que entestava com as samambaias, um confuso chiar de tararacas retardatárias: e nada mais.

Olhou para o rancho: o Quim ainda não surgira. E a cumiada de sapé, descendo quase a chão, prolongava-se pelo luar a dentro, numa sombra enorme e tapada.

O Sigismundo sentiu-se possuído de uma dolorosa canseira, sentindo-se largado assim: e perguntava a Deus como é que pode um homem sofrer um desamparo tão grande, sem desesperar, desde menino tearinho, estradeiro de jornal nas estradas da vida? Enternecia-se consigo mesmo, ia quase a chorar:

- De certo é por causa da lua, que é braba: mas o meu coiração 'tá doído mesmo! Pois eu já 'tou dobrando a serra, não tenho inté hoje ninguém por mim, hei de acabar a vida nos ermos, feito um excomungado?

A lua sumiu por um instante. E logo apontou mais branca ainda.

- Às vez 'diz que é sina…

Mas ouviu um áspero raspar de carnes na cerca do potreiro. Virou-se:

- É você, meu queimado, tão depressa?

Abriu a porteira, entrou no pasto. O tordilho varria o chão com a cola festiva:

- Antão? Não é que eu tenho de devéra quem me queira bem?

Passou o braço pela tábua do pescoço do animal, que resfolegava de manso, arejando-lhe o rosto com um bafo quente e azulado:

- Isso, meu negro! Agrade e alegre o seu patrão, que merece!

E como o cavalo começasse a passar-lhe a testa pela testa fria, botou-lhe uma ternura final, em troca:

- Ansim! Mais um pouco! Dês que mamãe morreu nunca eu tive, neste mundão de mundo, quem me fizesse um carinho tão amoroso ansim!

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 3/6/1905 (Acervo Estadão)

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