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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Mágoa oculta

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição de 9 de fevereiro de 1905 do jornal O Estado de São Paulo (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição, algumas palavras ilegíveis no original):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 9/2/1905 (Acervo Estadão)

 

Mágoa oculta

O Bento pulou do jirau, meteu-se nas calças de algodão ganga, foi ao córrego, lavou o rosto, voltou ao rancho, tomou um café quente de quatro quinas, pegou numa foice, pôs à cinta o facão de mato, quebrou o chapéu arriba dos olhos, e fez chão. Agora é que aquele sabiá-coleiro da grota seca havia de ver o bom e o bonito!

Abriu uma picada, mal e mal, desde uma arruda brava à beira do caminho. O facão foi cortando firme, à direita e à esquerda, e tão depressa, que não tinha ainda apontado o sol, e o Bento já estava no tapado da grota, olhando para todos os lados, numa pesquisa lenta e cuidadosa. Havia estorvos de toda a sorte: laceiras de cipó-guaió, raízes soltas de araticum-manteiga, montes de folharada seca, serapilheiras; mas tudo foi vencido, enfim, porque o casal de sabiás principiou a esvoaçar em torno de ûa moita de guaimbé,no esgalho de um pé de peito-de-pomba, e logo apareceram, alvoroçados de gula, os dois bicos abertos dos filhotes.

Ficou tão satisfeito o Bento ali no meio da grota, por haver descoberto o ninho daquele sabiá-coleiro de tão bom estilo, que pegou a rir, sozinho, sentou-se numa pedra, e assobiou a Araúna, dobrando regaladamente as notas, feito um japuíra:

- Aí! Passarinho de entusiasmo! Revirano ar, estrala as asas, pinta o sete, de zanga, que tu vai ficar amolado de devéra é quando a pauzama da arapuca te guardar debaixo dela! Mas olha que uma gaiola de taquara-do-reino com remelexos e missangas 'tá te esperando lá em casa! Já é um consolo, pois não é, morar num palácio tão fermoso ansim?

Tomou a foice, fez um grande alimpado, raspou no chão com a faca, afastou raízes e folhas; cortou varas, aparou-as; abriu a mucuta, sacou alguns rolos de embira: e dentro em pouco a arapuca estava pronta, toda verde, com desvãos pequenos, esbranquiçada nos cantos, bonita e assustadora. O Bento não se conteve:

- Qual! Quem pode, pode mesmo! C'uma armadilha destas não hai pass'o que conte histórias!

Andou esgaravantando entre as pequinhas, catou algumas baratas e minhocas, levantou a arapuca, amarrou-lh'as por baixo e aos lados, deixando-a presa no ar, porque não desarmasse: e muito alegre, cheio de esperança, alongou-se do claro, olhou-o ainda algum tempo, resmungando enlevado, sem saber o que estava dizendo, uma antiga velha:

Minha sinhá 'tá doente,

Suas cadeiras lhe dói;

Mandei chamar o doutor:

Aqui é, aqui é que me dói…

Tirou o chapéu da cabeça, passou os dedos da mão direita pelos cabelos úmidos de suor, agarrou na ferramenta, cerrou a mucuta, foi-se embora.

Rapaz de conta e peso era aquele! Estava ainda na casa dos vinte anos, ficara órfão de doze, e era um trabucador da vida: afora os dias santos, que gastava em andar caçando os passarinhos cantadores, não falhava no serviço. Ganhou fama de bom pelos arredores, fez-se um homem de crédito, e todos o tinham por a escora da família: cuidava da mãe, de dois irmãos mais moços e de uma irmã casadeira.

Quando se falava no Bento do Salto, o que todos afirmavam, sem remanchar na conversa, era uma coisa só:

- Sacudido e de palavra! A cachaça que ele tem é pegar os guaturamas e os pintasilvas, p'ra ponhar na gaiola: não tem outra!

O sabiá-coleiro da grota seca foi-lhe um sonho doirado, noites e noites. No trabalho, carpindo o talhão de cafezal do empreito, ouvia-o cantar pela manhã e à tardinha, e ficava tão fora de si, que muitas vezes o carrapicho e o picão se lhe entravam pelas pernas, ferindo-o e sangrando-o de leve, sem que ele os sentisse.

Ao acabar uma rua, no cair da noite, saia quase à disparada, exclamando festivamente:

- Soquei a enxada no mato, agora sou meu: não devo nada, 'tou com tudo que perciso, vou ver o folgazão da grota si 'tá bem cevado ou si não 'tá!

Poucas vezes teve de ir ver o alimpado: o sabiá-coleiro aceitou logo a figura estranha, ficou logo caucheiro daquele pedaço de chão, não enjeitou os bichinhos da ceva. Um belo dia, como, afinal, o Bento deixasse armada a arapuca, cedo, com todos os efes e erres, topou, ao escurecer, o pássaro preso, a debater-se entre os quatro ângulos das varas trançadas, piando pios de susto:

- Ara já se viu que fortuna! Isto é felicidade que deus me dá, 'tou no téque do geriza!

Desmanchou o feitio da armadilha, com todo o jeito, resguardando a aberta com o chapéu, espalmou a mão para dentro, colheu o sabiá pelo pescoço e costas, e trouxe-o violentamente diante dos olhos, beijando-o, como uma criança, na cabeça chata e arrufada:

- Não vá ficar jaruru, daqui por diante, hein? Eu quero é que tu cante logo, ver aquele piranga que eu tenho, sabe? Tu agora é a minha maior esperança!

[…(N. E.: trecho dilacerado no original)] abrisse um rico luar, que todo coava pelo pau a pique do rancho, deu de cantar formosamente, talvez de raiva, talvez de saudade, talvez de ambas as coisas juntas – porque até a raiva dos passarinhos, quando eles cantam, é formosa…

Passadas poucas semanas, um doutor da freguesia, reparando no estilo do coleiro, teve peito para oferecer ao Bento cem notas por ele. Mas o Bento esquivou-se ao negócio, com toda a cortesia.

- Perdoe, seu doutor, mas eu não posso! Vender o meu sabiá, que peguei numa tromenta de afadigação, com tanta amizade, com tanto carinho? Não posso, perdoe!

Quando se justou o casamento da Magdalena, a irmã do Bento, com um carapina da Cachoeira, moço bem apessoado e de muito boa tenência, foi um Deus nos acuda em casa. O tempo era de carestia, andava tudo por um preço endemoninhado, e por isso a noiva, a bem dizer, estava com a roupa do corpo: teve o Bento que sorti-la de tudo quanto é preciso, duma hora para oura, a ponto de ficar na viola. E como fazia toda a estima naquela criatura tão linda e tão boa, mandou aprontar-lhe um vestido de cassa, com todo o gosto, coisa que foi motivo de alta admiração pelo bairro.

Feitas as contas, porém, não bastava o dinheiro que havia, nem o que tinha de receber pela última limpa. Entrou a pensar, dias e dias,no como se sairia de semelhantes dificuldades – a feitura do vestido, o preparo dos papéis e a festinha do noivado. Não tendo muito de onde esperar, o que, com muito custo, resolveu foi oferecer ao doutor, na força do aperto, o sabiá-coleiro que lhe encantava as tardes cansadas e o arrancar das manhãs.

O positivo que levara o recado veio trazendo má notícia: o doutor já não dava o que prometera dantes, e sim metade. Num tempo que o feijão anda vigário, o gado pesteia e o arroz resseca, é de esperar desgraça sobre desgraça: o negócio foi fechado.

E ferviam os preparos da janta, no dia do casamento, quando vieram buscar o sabiá, trazendo uma gaiola tosca, de pinho mal aparelhado e arame grosso e escuro. O portador, um mulato de dentes saltados e olhos frios, puxou pelo dinheiro, recebeu o pássaro, despediu-se com poucas palavras, caminhou de torna-viagem.

O Bento, à porta do rancho, via-o ir indo, ir indo, e tinha o peito apertado, uma tremura de lábios, um singular agitar-se de mãos. Chegava até à cozinha:

- A mo' que você não matou o bicho, Salustiano!

Voltava, punha-se a contemplar a gaiola que bambeava na cabeça do mulato, já mais longe, e estremecia, suspirava, fazia-se de novo ao interior:

- Vocês não tenham coragem, antão p'ra bater uma cabreúva? Os ovos 'tão no cupiá, e a branca 'tá escuitando a cumbersa, naquele canto.

Chegava outra vez à porta da estrada. A gaiola apequenava-se, tremente no sumir, e ele sentia um grande nó na garganta, uma grande aflição. Quando o mulato quebrou a esquerda, para desaparecer num capoeirão cerrado, e de todo desapareceu, o Bento não pôde mais consigo: soluçou como um louco, as lágrimas caíram-lhe pesadamente pelo rosto abaixo, recostou-se, chorando, ao tronco de uma timbuva.

Mas a Magdalena devia estar de caminho, tornando ao rancho, casada. Ele enxugou os olhos como pôde, entrou pelo rancho, foi até a cozinha outra vez, chegou à varanda com muito riso no rosto e um lenço amarelo na mão:

- Adivirta, rapaziada! Bamos a ver quem não falou ainda c'a dona Branca! Vocês tejam alegre como eu! O dianho é que 'tou sentindo hoje uma fumaceira dos trezentos!

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 9/2/1905 (Acervo Estadão)

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