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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Pazes

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na edição de 15 de outubro de 1904 do jornal O Estado de São Paulo, nas páginas 1 e 2 (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 15/10/1904 (Acervo Estadão)

 

Pazes

O vento estava de feição, posto fogo à roça, queimou de alto a baixo, sem folhas nem saltos. Ao meio dia já tudo era cinza, mais escura ou mais clara, menos em uma antiga reboleira de dedais, em que os troncos, ainda não consumidos pelas chamas, tinham largas bocas amarelas, por onde uma fumaça fina e azul passava, dirigindo-se para a brancura do céu.

Já se vinham aproximando os primeiros caranchos e gaviões-pombeiros: e um bem-te-vi dos grandes, que não calculara bem a distância e a força do calor, andou muito tempo, cai-não-cai, a voar às tontas, entre um rolo e outro de fumaça.

O Chico Maria acabava também de cobrir o rancho, a palmas de guaricanga. Armara a tucuruva a um canto, e junto dela acamara lascas e rachões de ceboleiro e cuvitinga, lenha pobre, de decoada, a melhor que pôde aparecer por então. Trouxera do córrego uma purunga cheia d'água e umas folhas de taioba, e pusera-as ao lado da quarta de carás do mato que a mulher tinha avelado, com todo o carinho, para a entrada no ermo.

Mas decididamente, não se achava satisfeito com a vida, aquele dia. Faziam-lhe mal as faiscações do sol no raso da queimada, aborrecia-o por de mais o grazinar das tirivas e dos tuins errantes, dava-lhe tédio o mesmo arrulhar da pombinha-piranga que de cedo se ocultara na folharada de um sobragi vizinho.

Foi triste e amargoso assim que ele viu chegar a mulher e a filha, cada qual mais carregada de trouxas de roupa e de lenços cheios de miuçalha caseira. Acusou-as de muita demora, de o terem deixado até semelhante hora sem uma cuia de café ou uma pinga com gengibre, como se ele fosse um cachorro sem dono. Queixou-se de ardume nos olhos, de dor de cabeça, de moleza nas curvas:

- E enquanto eu 'tava aqui feito um mouro, de tanto trabalhar (disse, afinal, enxugando a testa com o dedo grande da mão esquerda, em forma de garra), enquanto isso o carretão 'tava em casa, mexe-mexendo, sem não se resolver a sair nem a ficar, e esta menina fogueta na certeza andava atrás dos poldros e das potranas, dos garrotes e das novilhas, pintando a moringuinha!

Nhá Zefa respondeu que não, defendendo-se frouxamente. A canseira da longa caminhada tornara-a sofrida e mansa. Empregou mais calor em falar bem da Mecía, que para o tempo do milho verde ia entrar nos sete anos, e não tinha obrigação de ter tanto juízo e ser tão boa lente como ele, Chico Maria, ou o doutor juiz dos órfãos.

Vendo-se em tão boa companhia, nas palavras de nhá Zefa, o patrão do rancho ficou menos azedo, por um instante. Porque de fato, em questões de leitura, tinha sua prosa e sua cisma, carregava um entusiasmo velho. Tanto assim, que gargarejava horas e horas, no meio da caipirada do bairro, pedaços do Carlos Magno e os testamentos da bicharia, explicando textos escuros, colhendo, muito justamente, milheiros de ahs! admirativos, e fazendo vir, ao lume dos rostos pasmados, visagens de susto ou rugas de viva alegria e riso.

Lembrou-se, porém, que estava com fome. E tudo foi uma dobadoura, de repente: Nhá Zefa, que fazia fogo, a Mecía, que rasgava as folhas de taioba, e o Trelém, paqueiro caduco, empurrado a pontapés para todas as bandas. Sob a tucuruva, com pouco desabrocharam ricas brasas: e um caratinga, logo depois, foi deitado a assar no borralho azul claro.

Tudo parecia ir numa vagareza insuportável. Apesar de que a água fervia, de há muito, com resmungos abafados pela tampa da chaleira, o Chico Maria reclamou:

- C'um foguinho manero ansim, o café não sai hoje. Encoste mais um pouco de lenha na mariquinha, bamó ver si a água chia!

Assado o caratinga, não se encontrava o caxerenguengue para fazer a repartição. E como a raiz estava muito quente, houve forte arrelia:

- Também na minha morada tudo suverte sempre, nunca vi! Só eu é que não sumo, isso mesmo não sei porque!

Nhá Zefa não fez mais que mover os ombros. Como dando a entender que aquele um andava a desaparecer volta e meia, sem dizer água vai, por dias e dias, por noites e noites, às vezes por semanas. E a pobre da pinhã catuzada que ficasse em casa, sozinha com a filha pequena, numa labuta louca!

A janta estava pronta. Afora os torresmos, que amarelavam num testo de panela, e a farinha de milho, que resplandecia, de alva, numa casca de tatu preparada, tudo o mais ficara nas próprias caçarolas e no caldeirão. O Chico Maria pegou na colher de pau, serviu-se do marumbé. Mas fez uma careta:

- Eta! Feijão paã, meu Deus do céu! Adonde é que você 'tava, nhá Zefa, quando temperou isto?

- O feijão 'tá brabo? (retrucou a mulher, meio azaranzada). Pois não coma! Bote no prato o arroz, enquanto 'tá quente: esse arroz é cana-roxa e 'tá feito bem solto.

Entretanto, provado o arroz, o Chico Maria ainda ficou mais zangado:

- Qual solto, nem meio solto! O que ele 'tá é olhando p'r'a cara da gente, sem sal e sem gordura. Vai ver agora, que a carne que você escolheu também é muxiba pura, vai ver só!

Não chegou a experimentar se a carne era só muxiba. O Trelém rosnara de repente e pulara para o mato, aos gritos, num requinte de rasto picado; acuava ao longe, firmemente. A Mecía como que fantasiou.

- Vancê quer ver, pai, que o Trelém 'tá fuçando alguma onça?

Ora, onça! Bem mostrava, a Mecía, que só depois do milho verde é que que havia de passar para os oito anos! Uma onça em tais arredores! Mas, pouco a pouco, foi  ficando banzativo, à medida que a acuação aumentava:

- Olhe, nhá Zefa, como aquela acuação 'tá tapada! E se for mesmo um bichinho daqueles da pinta miúda?

Tomou, às pressas, a cuia de café:

- Arre, Nossa Senhora! Que um café, comprido assim, inté dá intojo!

Pegou na Laporte de dois canos, a rajadinha quebra, e escorvou-a e esfogueteou-a, à medida que estumava o cachorrinho:

- Aí, Trelém! Aí vai! Aí vai!

E foi, realmente a correr como um doido que o Chico Maria afundou no mato. Não tardou muito que a espingarda trovejasse, rijo e seco, e um baque se fizesse ouvir, de corpo despenhado bem do alto de alguma árvore. Logo depois, a voz do patrão do rancho:

- Acuda, nhá Zefa, que o gato apeou!

Quando nhá Zefa e a Mecía chegaram, já a pintada tinha expirado. O Trelém mordia-a pelas orelhas e pelos quartos, irritadíssimo, enquanto Chico Maria se lhe assentava sobre o lombo, vitorioso, com o rosto alegre como uma festa de natal, e começava a abrir-lhe os olhos e a desafiá-la com muita ironia:

- Faísca esses olhos, gatinho, bamo' ver! Alumeia essas brasas, afia essas unhas, perpara esse pulo!

Nhá Zefa, então, admirou-se:

- Apelo! Como é que você tem corage' de matar quem devêra de ser a sua mulher, porque era tão irosa como você mesmo?

O Chico Maria, contudo, pensava de modo diverso:

- Eu, iroso? Você 'tá enganada! Eu inté que tenho muito bom coiração, a cara só é que é enfezada, às vezes! Agora, vista a roupa desta salmilhadinha, p'ra se saber quem é que fica de jeito pior! Quem vê cara, não vê coiração: este bicho é tão patife, que um cachorro já nem regula, abasta p'r'ele!

E a Mecía, alisando o pelo macio da pintada, raciocinou docemente:

- O pai 'tava gabirova duma vez, não 'tava? Pois se você fez que ele ficasse tão munarca, tão importante, tão cheio de si, é porque você é muito boa! Agora o que é verdade é que quem morre fica sempre do pior partido!

Uma laçada de cipó-caboclo serviu de corda: a onça foi arrastada até o rancho. Como o grupo, entretanto, passasse por umas caneleiras, uma juruti, que por ali andava às frutas, voou do chão a um ramo, bateu a cauda nas folhas, e começou a espichar e encolher insistentemente o pescoço, dando mostras de duvidar daquele sossego e daquelas pazes…

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 2 do jornal de 15/10/1904 (Acervo Estadão)

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