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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Camunhengue

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na edição de 5 de janeiro de 1902 do jornal O Estado de São Paulo, nas páginas 1 e 2 (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 5/1/1902 (Acervo Estadão)

 

Camunhengue

Um belo dia, sem mais esta nem aquela, pegaram a aparecer pelo rosto do Zeca Estevo umas grossuras, uma vermelhidão, uma pressama que ninguém sabia como explicar. Engrossavam-se-lhe as asas do nariz, iam-se-lhe sumindo os olhos sob a carne tumefeita, que os vencia por todos os lados, recrescente, e as pestanas principiaram a fazer-se-lhe ralas, esfiapadas, ao mesmo tempo que a cabeça se despovoava de cabelos e uma quase contínua fraqueza lhe bambeava as pernas para baixo dos joelhos.

Às primeiras mensagens daquela doença incompreendida, que, aliás, passava por nada na opinião de todos da casa, não se alvoroçou nem se fez diferente o Zeca Estevo, acostumado como estava a tudo quanto é bom e quanto é ruim na terra. Mas, depois, quando se acentuaram os sintomas; quando deram os vizinhos de dizer que aquela empige vinha braba; quando notou que os estranhos já o olhavam com desusadas mostras de reparo e quase de asco: aí então foi que entendeu de cuidar de si, rebuscar uma mezinha com qualquer curandeiro ou surjão dos arredores.

Lá pelas covancas do Guaçu, numa tapera escangalhada e cheia de matos, assistia o tal Cabeludo, um prático de fama, que era a última palavra nestas moléstias desconhecidas. O Zeca Estevo preparou-se com todo o cuidado, mandou arrear a melhor besta de sela que tinha, escolheu o menor rapaz do sítio para camarada na viagem (porque tinha com que, o Zeca Estevo), e riscou chão uma madrugada, nem bem o galo pipuíra que morava em frente da janela acabou de bater as asas e cantar pela terceira vez.

Não se podia ler ainda uma carta, e além de tudo caía uma neblina muito fria, embora fosse no tempo do milho verde. Mas em riba dos espigões, que mal se divisavam através daquela cortina opaca, um grande vulto cor de cinza clara se movia já do chão para o céu, ligeiramente, e era a manhã que rompia.

O Zeca Estevo despediu-se da mulher com duas palavras apenas, porque a demora era pouca e a saudade que levava, muita, e o faria voltar ainda mais depressa. O filho mais novo, de cinco anos, que era a menina de seus olhos, como dizia, ainda teve jeito de lhe pedir um piquira lazão de crina branca, bonito e manso como o do Candinho, o irmão mais velho, que andava pelos oito anos e era pouco menos que um adomador. Ele ouviu o pedido, respondeu que sim que o piquira havia de vir, como não havia? – e passeou a ferramenta pelo vazio da mula, que se descanhotou logo estrada afora, violenta e macia no trote de cão.

Lá se foi o Zeca Estevo, alegre e confiado. Houve outros que partiram também confiados e alegres à procura do Cabeludo, deslembrados do horror que levavam dentro de si, no peito ou no coração, e que não puderam voltar, entretanto, e acharam melhor, decerto, deixarem-se ficar esquecidos e descansados nalgum lugarejo sem nome ou sem fama…

Mas o Zeca Estevo não concordava com esse abandono da vida longe dos seus: ou tudo ou nada, falava ainda na véspera da viagem. Ou sararia, e a volta havia de ser uma festa; ou então teria o desengano, e ainda assim tornaria ao sítio, morto e já desmanchado que fosse!

Não era coisa a que se pudesse chamar bonita aquela tapera onde assistia o Cabeludo. No fundo dum angola praguejado, em que a unha-de-gato, o cipó-caboclo e a japecanga se entrançava, caindo dos maricás ou dos ceboleiros, escurentada e escondida por um maracujazeiro de árvore, aparentava o jeito de um gato mourisco assanhado, que se encolheu e vai saltar de súbito à cacunda fremente do xintã. Toda a gente sabia, contudo, que um mundão de romeiros cheios de fé vingava diariamente aquele rincão em busca do milagroso experiente que distribuía a vida e a saúde a troco de uns sacos de mantimento ou de umas poucas cabeças de galinhas ou de leitões.

O Zeca Estevo escolheu a ocasião boa: chegou à tapera ao fechar da tarde, quando já ninguém de fora ali estava e os urus gargarejavam seu canto profundo e selvagem nos esgalhos das pindaíbras e dos cedros, ali perto. Salvou logo do terreiro: e como visse que o Cabeludo não se apressava a recebê-lo, entretido a tostar sobre as brasas uma cobra engraxada de manteiga, fez chorar no saco da garupa os dois marrõezinhos melhores que tinha no chiqueiro e lhe trouxera como presente especial, antes da cura. O Cabeludo, nesse ato, virou-se para ele, vagaroso e solene.

Medo, terror, foram tolices que nada conseguiram com o Zeca Estevo, nunca na vida. Mas agora, àquela hora duvidosa do lusco-fusco, naquele ermo, um inexprimível pavor se lhe foi apoderando pouco a pouco do espírito, à medida que o morador da tapera lhe respondia à salvação e lhe perguntava pela saúde, com uma voz pausada e um tanto rouca, em que havia muito de tempestade longínqua e também de voz contida e ferocíssima de tigre.

Sentiu curvarem-se-lhe os joelhos, uma corrente de água gelada passear-lhe pela medula, os poucos fios de cabelo do corpo todos se lhe porem a pino, e juntamente uma ânsia tão forte, tão sufocadora, que lhe constringia a garganta e lhe fazia correr um suor frio das mãos e pelos vãos dos dedos

Entrou na tapera, apesar de tudo. Contou sua vida ao outro, largamente, e acalmava-se à maneira que a narração se lhe ia fugindo dos lábios para os ouvidos do curandeiro atento. Fora, sob o maracujazeiro, o camarada assobiava enternecido uma tirana das derradeiras funções. E aquela tirana casada agora ao chiado monótono de uma cigarra já invisível, foi fazendo que o Zeca Estevo de todo volvesse em si, ganhando outra vez a paz de espírito de sempre, a calma que em todos os casos lhe servira de máxima fortuna.

O Cabeludo, porém, tirara com a mão esquerda o lampião de azeite, de um mancebo ao meio da casa, e com a direita lhe examinava suavemente as faces, que se arrepanhavam grossas por sobre as zigomas, donde pareciam debruçar-se para as maxilas como bambinelas rubras e extravagantes. Indagou-lhe dos pais e dos avós: se nunca tinham tido mal de gálico, se nem uma mulher na família quebrara resguardo de parto, por onde lhe tivesse vindo a doença triste que faz a mão ficar de vaca e perder as unhas.

E o Zeca Estevo, escutando semelhantes interrogações, para ele desnecessárias e estúpidas, entrou de novo a possuir-se de um enorme susto pânico, entremetido de raiva e de fúrias, durante as quais deixava de esganar o feiticeiro (parecia-lh'o naquele instante) só porque acreditava bem na certeza do tratamento.

Houve uma pausa embaraçosa e embaraçadora nas palavras do velho: foi a um canto da casa, ao pé do jirau em que dormia, puxou uma gamela, pôs-se a lavar as mãos com uma orelha de timburi, e já voltava para o Zeca Esteve, num passo ondulado e mole, quando este quis saber o nome da doença:

- Antão, meu patrão velho, o que é que eu tenho?

O Cabeludo olhou-o de frente, com os olhos parados e inexpressivos:

- O mal.

- O mal? Vancê 'tá cacoando!

- Caçoando 'tá você, menino. Pois antão você, quando veiu aqui, não sabia já que 'tava camunhengue? É olhe que é do jareré dos graúdos, é dos bravos! Tome conta disso, antes que ele tome conta de você!

O Zeca Estevo tinha o gênio desabrido: vieram-lhe repentes de sacar o punhal e sangrar no mesmo instante aquele bruxo desgraçado. Mas conteve-se:

- E o que é que eu bebo p'ra sarar?

- Não beba remédio, que p'ra isso não tem remédio, não hai mezinha. Coma carne de capivara sem sal, por todo o feitio, e a da onça, que 'tá são. Mas largue do sal, se quer mesmo ficar como dante!

Anoitecera de todo. Um fantasma apavorante caminhava entre as nuvens, serenamente, e no andar cadenciado e como que fraco imitava o do curandeiro, que, entretanto, se agachara encostado ao fogão, mudo e sombrio, onde recomeçava a tostar a cobra apetecida. O Zeca Estevo olhou-o, olhou depois aquilo que caminhava terrível entre as nuvens; sentiu-se aniquilado, transido de verdadeiro medo, e ia gritar pelo camarada, quando as nuvens se abriram, enchendo o arruinado casebre de uma claridade azulega de lata nova, e reparou que aquele fantasma era a lua nova, com seu São Jorge muito entusiasmado ao alto e algumas tênues fumaças brancas a enrolarem-na como numa túnica.

Desamarrou os sacos trazidos, pô-los à porta da tapera, e montou a cavalo:

- Temo lua boa, seu Chico: de madrugada 'tamos em casa: bamos embora!

Houve um forte e rápido rumor na estrada; se não fosse tão rápido e tão forte, poder-se-ia ouvir os gemidos do Zeca Esteve, homem que nunca tinha chorado na vida, de serra abaixo p'ra cá, tal qual se diz na moda velha.

Não era tão tarde assim, que o Zeca Estevo não tivesse lado de torcer um pouco da estrada e procurar o sítio dum conhecido antigo, um criador em cujo potreiro vira ao passar, com sol alto ainda, um poldro lazão de crina branca e palmatória, bonito e manso como o do Candinho, e bem ao modo do que lhe fora pedido pelo José, a menina de seus olhos, a quem não podia negar aquele gosto tão fácil. E foi preciso mandar campear o petiço àquela hora velha e pelo cultivado úmido de orvalheira, porque o José lhe estava a aparecer diante, todo risonho e satisfeito ao ver que a promessa fora cumprida.

Depois, quando se fez novamente ao caminho, entre um e outro voo de pássaros noturnos, que lhe causavam singulares vibrações de nervos, e no pensar naquela criança pequenina e querida para quem levava o cavalinho adestro, uma inefável piedade de si mesmo quase o fez soluçar e carpir-se: via-se repudiado de todos, porque o negro mal de Lázaro iria de mal a pior, não o duvidava, e o José lhe seria companheiro de sempre, apesar do imenso infortúnio, porque tinha uma alma afetuosa e cheia de bondade. E a mulher, Sa Januaria, que fora o anjo da guarda de sua mocidade turbulenta e rixosa, ia-se-lhe apresentando à memória vagamente aureolada de uma luz admirável, com as santas das oleografias.

A marcha troteada da mula soava pela estrada clara num ritmo acelerado e uniforme. E era tão sagaz, tão esperta, tão valente, que mal o sol apontava na multidão de montanhas distantes, quando o Zeca Estevo abriu a porteira do pátio, onde a criação renhia pelo milho atirado de pouco, Sa Januaria surgiu espantada da varanda, trouxe logo o café com rapadura, e não chegou a perguntar-lhe a razão da volta tão apressada e o que dissera o Cabeludo, porque logo o Zeca Estevo lhe foi cantando:

- O 'home lá me disse que'tou sofrendo do mal.

Mas Sa Januaria também não quis acreditar:

- Não é capaz, isso é poaiage sua!

- Verdade, mulher: o diabo inda me receitou capivara e onça.

Sa Januaria duvidava sempre: olhou-o, remirou-o com todo o sossego, convencida de que tudo aquilo não passava de uma cuca que o Cabeludo lhe botara no marido, para ganhar molhadura melhor. E o Zeca Estevo, banzativo escorara-se a um catre desmantelado, donde olhava para a mulher com ares muito alheios e remotos; por fim, como já pelos vãos das telhas coasse no chão a claridade crua do sol, disse a modo de distraído, como quem não quer:

- Só se ele cuida que é por causa deste inchaço que eu tenho há tantos dias nas orelhas.

Foi como se todo o mundo viesse abaixo!. Ela reparou-lhe então nas orelhas, que se haviam tornado intensamente escarlates, como queimadas de sol, empipocadas e grossas, pendentes para as faces num reviramento assustador dos bordos. Sa Januaria teve um arrepio de terror e um estremecimento fundo de compaixão: mas conteve-se logo, desviando a conversa com pedir ao Zeca Estevo a ajudasse em passar pelo pescoço de uns franguinhos pipuiruçús uma pena de galinha por livrá-los da pigarra.

Vieram daí por diante os dias negros da tristeza e da desconfiança. O Zeca mandava a lugares longes, por mantas de capivara e carne fresca de pintada, tomava chá de raiz de inhame, todos os dias, fugia do sal, corria da chuva e do sereno, mas cada vez piorava mais. Deram de retirar-se os vizinhos; apenas algum mais corajudo ainda aparecia de vez em quando a bater uma mão de truque ou pontear uns toques novos na viola paranista.

E por mal de pecados chegara o tempo das águas, com uma ventania nunca vista e um poder de tempestade todo santo dia.

Agora, com um bandão de desculpas aumentativamente apertadas, Sa Januaria mudara de cama, dormindo com o José num quarto pegado ao de Zeca Estevo, donde, noites inteiras, o ouvia roncar e queixar-se de mil apoquentações e outras tantas dores. Fizera-se ele irritadiço e mau de gênio, esbordoava os povinhos à toa, botava chumbo nos leitõezinhos tatus mais estimados que se aventuravam até à varanda. Um dia que matara a um de brinco, e Sa Januaria lh'o censurava entristecida, ele respondeu rindo num riso rasgado e amargo:

- Ora, eu também tenho brinco, e se eu morrer ninguém não sente!

Ao ver que todos, pouco a pouco, o iam abandonando ou, quando nada, deixando, também um poderoso desejo de absoluta solidão o tomava, mesclada de raiva dos homens e desamor aos seus. Chegou a dizer a Sa Januaria, quando ela lhe explicava, certo dia, por palavras travessas, o motivo da separação:

- Eu aqui já não valo nada, todos me largam ao Deus-dará como se eu fosse um trapo velho. Há de chegar tempo de eu romper sem rumo por esse desespero de mundo! Você verá!

E voltava-lhe um calor da valentia da mocidade:

- Hei de sair, indas que seja pedindo esmola de casa em casa, p'ressas barrocas e serras. Quem não me der esmola eu quebro de manguara, porque ninguém não tem corage de me ponhar a mão, e o humbo em mim já não pega. Cama, eu faço em qualquer fundo de mato, em qualquer beirada de corgo, indas que a força das enxurradas me carregue c'o escuro da noite!

A chuva estiara de todo, certa manhã  de dezembro. O Zeca Estevo mandou que o Candinho lhe encilhasse a besta picaça quatrólha, uma mula velhaca e arengueira, para dar uma volta pelos arredores. Disseram-lhe que, doente assim, não devia montar naquele inferno de mula: foi tempo perdido, quis porque quis, e fez o que resolvera. Antes, porém, de montar o cavalo, chamou o José, com todo o carinho:

- Venha cá, meu filho, quero-lhe dizer uma coisa.

O José refugava-o desajeitadamente, com os olhos baixos de respeito e de medo. Não se lhe chegou para o pé.

- Pois antão inté você, meu filho, 'tá-me pondo de banda?

O José custou a responder, mas por último falou numa voz sumida e trêmula:

- Di que vancê 'tá macotena, nho pai.

- Era isso mesmo que eu esperava. Ai, meu São Bom Jesus do Pirapora, já não tenho mais ninguém por mim neste mundo! Fique p'ra lá p'r'o seu canto, José, que eu já não lhe digo mais nada, não tenha susto.

Montou a cavalo.

- Agora falta só as purungas e a baciinha p'ra mim cumprir o meu fadario!

Sa Januaria chamava-o, chorando desesperada. E ele perguntou-lhe de repente:

- Eu volto, sim, eu volto: você quer que eu deite na sua cama? Ah! Não quer, pois antão? O mundo é mesmo ansim!

Recomeçara a chover miudamente, o sol passava frouxo e sem quentura pelas cordinhas d'água, quando o Zeca Estevo bateu o tala nas ancas da mula e disse com uma voz em que havia uma tristeza infinita e um desespero inenarrável:

- Adeus, antão, meu povo dalgum tempo!

Voltou a ventania, primeiro quasi mansa, depois furiosa e uivante. E enquanto ele se sumia na reviravolta do caminho, a chuva engrossava, pouco a pouco, até se fazer outra vez um poder de tempestade.

- Ai, meu São Bom Jesus do Pirapora!

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 2 do jornal de 5/1/1902 (Acervo Estadão)

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