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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (1)

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Texto publicado na edição de junho de 1944 (ano XXIII, nº 6) da revista santista Flama (grafia atualizada nesta transcrição):


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Valdomiro Silveira

A data de 3 de junho assinala a morte de Valdomiro Silveira, no ano de 1941.

Junho, que nos relembra o falecimento de Martins Fontes, a quem, na passada edição, prestamos a homenagem devida, aviva na memória de todos os que o estimaram a figura singular de Valdomiro Silveira.

Homem de letras dos que mais souberam manejar com elegância a língua portuguesa, honrando e elevando a nossa literatura com obras de inestimável valor, porque somente coisas lindas lhe saíam da pena sempre fulgurante, Valdomiro Silveira foi ainda advogado dos mais brilhantes, orador e homem de governo, deixando, na trajetória iluminada da sua vida, traços inapagáveis.

Bastaria, a bem dizer, a sua obra literária para torná-lo sempre lembrado e apreciado. Mas as lides do foro deram-lhe, também, oportunidade de evidenciar qualidades incomuns. Advogava com a consciência de um jurista e expunha com a limpidez, com a precisão e a singeleza de estilista. Os seus trabalhos forenses eram páginas que se liam com agrado. Eram lições admiráveis, em que se revelava o homem de saber invulgar e o cultor do idioma.

Flama, registrando o acontecimento infausto de há três anos, presta a Valdomiro Silveira a sua homenagem muito comovida.

Também publicado na mesma edição da revista Flama:

Valdomiro Silveira

Rui Blaz

Tenho por Valdomiro Silveira uma admiração sem limites. Sobre ter sido meu grande amigo, dele ouvi as confortadoras palavras de entusiasmo que me animaram, nos primeiros degraus da minha vida nas letras. As minhas crônicas, os versos de puro diletantismo, os meus contos históricos e os originais do meu romance, ele os leu e de tudo me deu contas, com aquele eterno sorriso de indulgência e simpatia que tanto o caracterizou, na existência.

Daí, talvez, esse respeito, essa admiração que o seu nome me causa e a consternação que senti no dia em que se passou mais um ano da sua morte.

Mas o que mais impressionava no mestre querido era, sem dúvida, o seu talento de esteta nas letras, o seu originalíssimo estilo de quem sabia tratar no idioma dos clássicos sem se afastar, um nó, do linguajar da época. Os seus discursos são modelos para os mais exigentes. Primam pela beleza da forma. Agradam aos ouvidos, por que são harmoniosos. E têm, na sua impressionante precisão da medida, o tamanho das suaves estradas dos parques floridos, nos dias de primavera.

Ninguém o imitou na sua escola regionalista, em cuja cátedra pontificou, elegante, brejeiro e gracioso. A um pintor de recursos e bom gosto, os episódios dos seus livros se prestariam a telas de tonalidades magníficas. Cuidadoso, em todo extremo, quando escrevia, mas sem fazer penacho, ficou sendo o maior, o melhor, o mais perfeito, o mais completo escritor no gênero. Dizia-se, e com justiça, que foi fundador de uma escola literária, de que se tornara mestre sem discípulos.

Valdomiro não se tornou notável, apenas, nos seus escritos. Na intimidade, converteu-se num excelente conversador, espirituoso, engraçado, humorista, falando, sempre, com frases de tafues, singeleza de água múrmure, bonito, atraente, encantador.

Não se estranhe se por aí disserem esta coisa surpreendente: fazendo as suas razões, interpretando as leis, ajustando os códigos e os decretos, ainda nele se verá o estupendo artista da palavra, brincando com as idéias, enfeitando o pensamento.

Se não morreu moço na idade, moço ele foi, na inteligência, no brilho da sua maravilhosa personalidade de contista, no auge da sua imaginosa concepção de criar assuntos.

Pertenceu a uma geração de homens letrados, de poetas de grande quilate e, entre eles, o consideraram grande entre os maiores.

A sua família não se some com o tempo, nem com a morte; vem de gente boa, de intelectuais: uns, dos mais esplêndidos rouxinóis; outros, dos mais tersos cultores do idioma. E ele, mestre da elegância, epígono do regionalismo, estilista suavíssimo - um incomparável ourives que burilou, nos contos, nos versos e nos autos, as jóias mais finas, os mais límpidos diamães.

Valdomiro, ainda não te deram o valor com que engrandeceste a tua terra e inebriaste o teu tempo!

Ainda na edição de junho de 1944 da revista Flama, foi publicado este conto escrito por Valdomiro Silveira (grafia atualizada):

Rabicho

Valdomiro Silveira

As guaricangas tremiam, sussurrando soluços, porque um vento bravo passara pelo brejo e tivera o atrevimento de bulir com elas: vendo as palmeirinhas tremer assim e os sacis batendo as asas cheias de riscas, fazendo tal e qual como quem está presa de susto ou dor, a gente - se fosse crendeira - diria que a tristeza andava passeando aquela tarde pelo país do Rio Verdinho.

Na verdade, isso já não podia continuar. A madrugada rasgara-se acompanhada de ventania; o sol aparecera, sem que a ventania abrandasse; e agora, com as primeiras fosquinhas do crepúsculo no ocidente, a ventania ainda se tornara mais irada.

Vem a hora de passar o bando dos patos, a hora em que o pirís e as tabúas palpitam no cimo d'água, saudando-os. A terra inteira pareceu recolher-se para receber no âmago o derradeiro espasmo do sol: assim que ele imergiu no fundo das montanhas, ela agitou-se por instantes numa convulsão demorada, e cobriram-se de vivo sangue as copas dos angicos, até aí virginalmente brancas.

Mais tempo, menos tempo, saía de um rancho sufocado entre dois montes, a um lado do Rio Verdinho, o Renato da Mantiqueira, montado num cavalo mouro. Arranjara o animal a capricho, lavando-o primeiro, raspando-lhe o pêlo depois; selara-o com um socado de Sorocaba, dos bons, adicionando-lhe peitoral e caçambas de prata que tiniam. Teso e cheio de não-me-toques, ganhou a estrada que dizia para a grama; assobiou a música da araúna, ergueu ao ar o chicote de bonito lavor, desceu-o às ancas do mouro, e seguiu com vontade.

Seu coração batia forte, acompanhando quase o viajeiro da cavalgadura: chegou a pensar umas cousas esquisitas, que eram comparações dos estrupidos das patas com o barulho do coração, perguntando a si mesmo o que seria que andava mais ligeiro - o coração ou o cavalo?

Encontrou gente como formiga. Aborreceu-se um nada. Queria-se não visto e só, abrindo e fechando porteiras, namorando a estrela do pastor que não tardaria a entrar no círculo imenso do firmamento; queria-se invisível entre andaaçús marginais da estrada real: amaldiçoou, no íntimo, aquelas pessoas que o observavam com tal insistência, que se diria estarem resolvendo interrogá-lo a cada sombra mais densa de gurrupiazeiro, onde luzia em triunfo a prataria dos bocais do mouro.

Deu-lhe na gana gritar que ia ver a Anica, a dona dos olhos mais perigosos de toda a redondeza, a rapariga que ao andar tanto e tão bem rebolava o corpo, que o corpo dela fazia pensar-se numa colina de geléia deliciosíssima. Ia, pois, vê-la: que importava isso aos bocós, agora? Teve desejos de livrar o peito da geriza que o oprimia. Quis mandar os importunos cavaleiros e viandantes aos quintos dos infernos. Quis dizer muito: mas continuou sem dizer nada, mas continuou a assobiar a música da araúna.

O engraçado foi que no alto de um morrinho, por sinal que um morrinho todo florescido de maravilhas, um nambú mineiro estava piando com delícias. Havia já pedaço, principiara uma série de pios, e não conseguira chegar ao fim, pois um outro lhe volvera pronta resposta, escondido numa touceira de massambará. O Renato passou e, como recomeçasse a predileta canção, o senso do nambú tomou vôo contra ele, cuidando-o por certo algum rival que requestava a mais que desejada nambú.

O Renato levantou o chicote, varejou-o, empuxando-o contra o chão. E reparando nele, que se estorcia nas vascas do morrer, murmurou:

- Se até os passarinhos já têm ciúmes de mim, que dirá certa gente que se morre de amores pela Anica!

Aquela idéia atravessou-lhe o espírito, como um morcego o silêncio de uma igreja. Sobre ela acumularam-se outras, não menos ruins. Sobre estas, outras piores. De modo que o rapaz, de alegre que estava, se pôs a banzar. Lembrou-lhe um fato, o de lhe haverem contado que o pai da moça jurara matá-lo, se o soubesse rondando junto às janelas do terreiro.

Isso já era de mais. Virava de zanga em ameaça. Enfurecesse-se o velho, tinha lá suas razões. Mas ameaças, não as fizesse, que um peitudo da Mantiqueira não conta com desgraça de jeito nenhum!

Quem pagou tudo, foi o mouro. Vergastadas intercadentes lambiam-lhe com raiva as paletas. Murros até - murros! - adormeceram-lhe as fibras de sob as crinas. Pés nervosos, descalços, correram-lhe as virilhas, por feição que o deixaram mais do que triste. Um animal de estimação, como ele, apanhando à semelhança de burro chucro, já se viu só?

A noite, que era de lua, veio com todo o vagar. Suindaras gemiam perdidas numa lonjura incalculável e um beija-flor sem juízo trinava, apesar de vinda a noite, no ramo cimeiro de uma arvoreta. O Renato sentiu-se tomado de súbita melancolia: puxou as rédeas, parou, dirigiu ao pássaro a mágoa de que percebia inundados os próprios olhos, e ouviu-o cantar. A estrela do pastor já fulgia no céu e ele pensou entre si:

- Pode que o louquinho do beija-flor se esteja finando de paixão pela estrela!

E depois acrescentou:

- Mas é mesmo um louquinho o tal, que não pode ter certeza de ser correspondido. Eu, que gosto da Anica, sei pelo menos que ela gosta de mim. Gosta muito, mas mesmo muito!

Em seguida, abstraiu-se, com uma penetração estranha de vista para o mistério claro do luar, e murmurou:

- Homem, quem sabe?

Estalaram chicotadas. O mouro disparou num galopão. Porque? Porque o Renato precisava conhecer o amor que Anica possuía no coração de moça nova. Apresentara-se uma dúvida: pressa se dava ele em desvendá-la.

Para logo romperam, do lago de luar que transbordava pela estrada, ramalhetes de vegetação densa e altaneira. Eram três jatobás que assombreavam a casa da linda Anica, e, achando-se perto deles, o rapaz achou-se perto do peito dela...

Ai! que julgava já vê-la, num vulto visto à porta da casa! Mas não, não era! Talvez alguma pomba esquecida do ninho, enrufando as penas, pousou ali e contemplava a serenidade do espaço; quem sabe se uma travessa marrequinha, das alvas, estava perlongando aquelas regiões, antes de tornar à quentura do ninho? Não, não era a moça!

Não era, mas então o que seria?

Foi-se aproximando. O vulto deu de crescer, de crescer. Cresceu de tal modo que, afinal, o Renato reconheceu nele a Anica.

As madresilvas de uma cerca próxima rescendiam; as laranjeiras vestiam-se de noivas, e, noivas perfumosas, enchiam o ar de puras emanações; de vez em vez uma viração mais apressada mergulhava nas ramarias, e formava-se-lhes em torno uma atmosfera de inocência e de sonho.

O Renato achou-se envolvido na pureza dessa atmosfera e acreditou-se levado aos sete céus da felicidade.

A prova é que falou, numa voz que se diria de êxtase:

- Anica, está deveras distraída?

Ela respondeu numa voz que  era mais branda que um arrulho:

- Tenho motivos para distração.

- Para alegria?

- Antes fosse. Para distração que termina em sofrimento.

- Pois, Anica, uma coisa lhe juro: você empregava com acerto os seus pensamentos, se eles ficassem presos numa idéia.

- Qual idéia, Renato?

- A da nossa dita.

- Aí está um impossível!

- Impossível, se você quer que seja impossível.

- Não, eu não quero.

- Então, você tem estima por mim?

- Não sei.

Às vezes, o não sei é dito de tal forma que já é uma afirmativa. O Renato alegrou-se, e teve os olhos úmidos de satisfação. E daí sua voz banhou-se de satisfação também, como os olhos, saindo-lhe trêmula:

- Já vê que nós havemos de ser ditosos.

- Não, atalhou Anica: não, porque Papai não admite nem que se toque nesse assunto!

- Que me importa?

- Mas você bem sabe que eu sou de menor idade.

Nesse momento, reboou na calma da noite uma apóstrofe terrível:

- Desgraçado! Saia de lá, que, se não, corre perigo!

- É a voz de Papai, aventurou Anica: fuja! fuja!

O Renato, porém, quedou-se-lhe à beira. Tomou-lhe uma das mãos, e bradou com toda a energia:

- Quero muito bem a ela. Ela me quer muito bem. Deixe que nós casemos, é o que lhe pedimos.

- Maldito! - a voz continuou: nunca eu lhe entregaria minha filha!

- Nunca?

- Nunca.

O Renato perguntou à Anica:

- O seu amor é grande?

- É.

- Você faz loucuras que eu fizer?

- Faço.

- Suba à garupa do mouro.

Ela montou. Cingiu-lhe o corpo com os seus braços cor de leite, notou que ele os premia com afeição e creu-se venturosa.

O cavalo partiu num galopão desfeito. Viu-se uma fímbria de nuvem ondulando-lhe sobre a cauda, uma nuvem de cassa ou de cambraia, e um longo chapéu de feltro, de abas largas, a sumir na indecisão do luar. Depois, nada mais do que... poeira, poeira e mais poeira...

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