Rabicho
Valdomiro Silveira
As guaricangas tremiam, sussurrando soluços, porque um
vento bravo passara pelo brejo e tivera o atrevimento de bulir com elas: vendo as palmeirinhas tremer assim e os sacis batendo as asas cheias de
riscas, fazendo tal e qual como quem está presa de susto ou dor, a gente - se fosse crendeira - diria que a tristeza andava passeando aquela tarde
pelo país do Rio Verdinho.
Na verdade, isso já não podia continuar. A madrugada rasgara-se acompanhada de
ventania; o sol aparecera, sem que a ventania abrandasse; e agora, com as primeiras fosquinhas do crepúsculo no ocidente, a ventania ainda se
tornara mais irada.
Vem a hora de passar o bando dos patos, a hora em que o pirís e as tabúas palpitam no
cimo d'água, saudando-os. A terra inteira pareceu recolher-se para receber no âmago o derradeiro espasmo do sol: assim que ele imergiu no fundo das
montanhas, ela agitou-se por instantes numa convulsão demorada, e cobriram-se de vivo sangue as copas dos angicos, até aí virginalmente brancas.
Mais tempo, menos tempo, saía de um rancho sufocado entre dois montes, a um lado do
Rio Verdinho, o Renato da Mantiqueira, montado num cavalo mouro. Arranjara o animal a capricho, lavando-o primeiro, raspando-lhe o pêlo depois;
selara-o com um socado de Sorocaba, dos bons, adicionando-lhe peitoral e caçambas de prata que tiniam. Teso e cheio de não-me-toques, ganhou a
estrada que dizia para a grama; assobiou a música da araúna, ergueu ao ar o chicote de bonito lavor, desceu-o às ancas do mouro, e seguiu com
vontade.
Seu coração batia forte, acompanhando quase o viajeiro da cavalgadura: chegou a pensar
umas cousas esquisitas, que eram comparações dos estrupidos das patas com o barulho do coração, perguntando a si mesmo o que seria que andava mais
ligeiro - o coração ou o cavalo?
Encontrou gente como formiga. Aborreceu-se um nada. Queria-se não visto e só, abrindo
e fechando porteiras, namorando a estrela do pastor que não tardaria a entrar no círculo imenso do firmamento; queria-se invisível entre andaaçús
marginais da estrada real: amaldiçoou, no íntimo, aquelas pessoas que o observavam com tal insistência, que se diria estarem resolvendo interrogá-lo
a cada sombra mais densa de gurrupiazeiro, onde luzia em triunfo a prataria dos bocais do mouro.
Deu-lhe na gana gritar que ia ver a Anica, a dona dos olhos mais perigosos de toda a
redondeza, a rapariga que ao andar tanto e tão bem rebolava o corpo, que o corpo dela fazia pensar-se numa colina de geléia deliciosíssima. Ia,
pois, vê-la: que importava isso aos bocós, agora? Teve desejos de livrar o peito da geriza que o oprimia. Quis mandar os importunos cavaleiros e
viandantes aos quintos dos infernos. Quis dizer muito: mas continuou sem dizer nada, mas continuou a assobiar a música da araúna.
O engraçado foi que no alto de um morrinho, por sinal que um morrinho todo florescido
de maravilhas, um nambú mineiro estava piando com delícias. Havia já pedaço, principiara uma série de pios, e não conseguira chegar ao fim, pois um
outro lhe volvera pronta resposta, escondido numa touceira de massambará. O Renato passou e, como recomeçasse a predileta canção, o senso do nambú
tomou vôo contra ele, cuidando-o por certo algum rival que requestava a mais que desejada nambú.
O Renato levantou o chicote, varejou-o, empuxando-o contra o chão. E reparando nele,
que se estorcia nas vascas do morrer, murmurou:
- Se até os passarinhos já têm ciúmes de mim, que dirá certa gente que se morre de
amores pela Anica!
Aquela idéia atravessou-lhe o espírito, como um morcego o silêncio de uma igreja.
Sobre ela acumularam-se outras, não menos ruins. Sobre estas, outras piores. De modo que o rapaz, de alegre que estava, se pôs a banzar. Lembrou-lhe
um fato, o de lhe haverem contado que o pai da moça jurara matá-lo, se o soubesse rondando junto às janelas do terreiro.
Isso já era de mais. Virava de zanga em ameaça. Enfurecesse-se o velho, tinha lá suas
razões. Mas ameaças, não as fizesse, que um peitudo da Mantiqueira não conta com desgraça de jeito nenhum!
Quem pagou tudo, foi o mouro. Vergastadas intercadentes lambiam-lhe com raiva as
paletas. Murros até - murros! - adormeceram-lhe as fibras de sob as crinas. Pés nervosos, descalços, correram-lhe as virilhas, por feição que o
deixaram mais do que triste. Um animal de estimação, como ele, apanhando à semelhança de burro chucro, já se viu só?
A noite, que era de lua, veio com todo o vagar. Suindaras gemiam perdidas numa lonjura
incalculável e um beija-flor sem juízo trinava, apesar de vinda a noite, no ramo cimeiro de uma arvoreta. O Renato sentiu-se tomado de súbita
melancolia: puxou as rédeas, parou, dirigiu ao pássaro a mágoa de que percebia inundados os próprios olhos, e ouviu-o cantar. A estrela do pastor já
fulgia no céu e ele pensou entre si:
- Pode que o louquinho do beija-flor se esteja finando de paixão pela estrela!
E depois acrescentou:
- Mas é mesmo um louquinho o tal, que não pode ter certeza de ser correspondido. Eu,
que gosto da Anica, sei pelo menos que ela gosta de mim. Gosta muito, mas mesmo muito!
Em seguida, abstraiu-se, com uma penetração estranha de vista para o mistério claro do
luar, e murmurou:
- Homem, quem sabe?
Estalaram chicotadas. O mouro disparou num galopão. Porque? Porque o Renato precisava
conhecer o amor que Anica possuía no coração de moça nova. Apresentara-se uma dúvida: pressa se dava ele em desvendá-la.
Para logo romperam, do lago de luar que transbordava pela estrada, ramalhetes de
vegetação densa e altaneira. Eram três jatobás que assombreavam a casa da linda Anica, e, achando-se perto deles, o rapaz achou-se perto do peito
dela...
Ai! que julgava já vê-la, num vulto visto à porta da casa! Mas não, não era! Talvez
alguma pomba esquecida do ninho, enrufando as penas, pousou ali e contemplava a serenidade do espaço; quem sabe se uma travessa marrequinha, das
alvas, estava perlongando aquelas regiões, antes de tornar à quentura do ninho? Não, não era a moça!
Não era, mas então o que seria?
Foi-se aproximando. O vulto deu de crescer, de crescer. Cresceu de tal modo que,
afinal, o Renato reconheceu nele a Anica.
As madresilvas de uma cerca próxima rescendiam; as laranjeiras vestiam-se de noivas,
e, noivas perfumosas, enchiam o ar de puras emanações; de vez em vez uma viração mais apressada mergulhava nas ramarias, e formava-se-lhes em torno
uma atmosfera de inocência e de sonho.
O Renato achou-se envolvido na pureza dessa atmosfera e acreditou-se levado aos sete
céus da felicidade.
A prova é que falou, numa voz que se diria de êxtase:
- Anica, está deveras distraída?
Ela respondeu numa voz que era mais branda que um arrulho:
- Tenho motivos para distração.
- Para alegria?
- Antes fosse. Para distração que termina em sofrimento.
- Pois, Anica, uma coisa lhe juro: você empregava com acerto os seus pensamentos, se
eles ficassem presos numa idéia.
- Qual idéia, Renato?
- A da nossa dita.
- Aí está um impossível!
- Impossível, se você quer que seja impossível.
- Não, eu não quero.
- Então, você tem estima por mim?
- Não sei.
Às vezes, o não sei é dito de tal forma que já é uma afirmativa. O Renato alegrou-se,
e teve os olhos úmidos de satisfação. E daí sua voz banhou-se de satisfação também, como os olhos, saindo-lhe trêmula:
- Já vê que nós havemos de ser ditosos.
- Não, atalhou Anica: não, porque Papai não admite nem que se toque nesse assunto!
- Que me importa?
- Mas você bem sabe que eu sou de menor idade.
Nesse momento, reboou na calma da noite uma apóstrofe terrível:
- Desgraçado! Saia de lá, que, se não, corre perigo!
- É a voz de Papai, aventurou Anica: fuja! fuja!
O Renato, porém, quedou-se-lhe à beira. Tomou-lhe uma das mãos, e bradou com toda a
energia:
- Quero muito bem a ela. Ela me quer muito bem. Deixe que nós casemos, é o que lhe
pedimos.
- Maldito! - a voz continuou: nunca eu lhe entregaria minha filha!
- Nunca?
- Nunca.
O Renato perguntou à Anica:
- O seu amor é grande?
- É.
- Você faz loucuras que eu fizer?
- Faço.
- Suba à garupa do mouro.
Ela montou. Cingiu-lhe o corpo com os seus braços cor de leite, notou que ele os
premia com afeição e creu-se venturosa.
O cavalo partiu num galopão desfeito. Viu-se uma fímbria de nuvem ondulando-lhe sobre
a cauda, uma nuvem de cassa ou de cambraia, e um longo chapéu de feltro, de abas largas, a sumir na indecisão do luar. Depois, nada mais do que...
poeira, poeira e mais poeira... |